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DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011

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P U C - S P

Cibele Fernandes Dias Knoerr

Decisões intermediárias da Justiça Constitucional como mutação da

Constituição

D O U T O R A D O E M D I R E I T O

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Decisões intermediárias da Justiça Constitucional como mutação da

Constituição

D O U T O R A D O E M D I R E I T O

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em

Direito, área de concentração Direito

do Estado, sob a orientação do

Professor Doutor André Ramos

Tavares.

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proferidas pela jurisdição constitucional. Para tanto, parte da teoria do poder constituinte para demonstrar que a Constituição não se esgota no texto promulgado pelos founding fathers. Os preceitos normativos são passíveis de mudanças formais e informais. Aquelas ocorrem mediante reforma e revisão. Estas acontecem por mutação constitucional, que comporta meios legítimos (interpretação e prática) ou ilegítimos (quebra). A mutação decorre da integração, no interior da norma constitucional, de dois elementos interdependentes: o normativo e o fático. Para fundamentar essa conclusão, são analisadas as principais construções doutrinárias acerca do tema. Isso leva a questionar o fundamento da mutação constitucional. Ele reside no poder constituinte difuso, o qual, na expressão de BURDEAU, visa a completar e continuar a obra do constituinte originário. Uma vez compreendida a mutação como fenômeno interno à norma, devem-se identificar os limites da tarefa interpretativa, dado o risco de asfixia política por saturação jurídica. A relação entre jurisdição constitucional e democracia é estudada a partir do direito norte-americano, em que se desenvolveram o controle difuso de constitucionalidade e a problemática de sua legitimidade frente ao princípio democrático. Buscam-se esses limites nas doutrinas de WALDRON, favorável ao primado do legislador; DWORKIN, defensor do controle judicial mesmo quando se exige um juiz mítico como Hércules; e ACKERMAN, que tenta equilibrar a equação na busca por consensos. O estudo segue para o papel ambivalente das decisões intermediárias como fruto e instrumento de mutação. Por fim, conclui-se que o desenvolvimento das decisões intermediárias transforma a interpretação judicial num mecanismo supremo de mutação constitucional, dada sua eficácia

erga omnes e efeito vinculante. Os resultados obtidos com a pesquisa permitem avaliar que a mutação constitucional depende de uma mudança legítima do sentido da constituição, a qual é reconhecida, em última instância, pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional.

PALAVRAS-CHAVE: MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL, DECISÕES

INTERMEDIÁRIAS, JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA,

INTERPRETAÇÃO.

AUTOR: Cibele Fernandes Dias Knoerr

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This work analyzes the phenomenon of constitutional change made by trials intermediaries of constitutional jurisdiction. Therefore, it begins from theory of constituent power to demonstrate that the Constitution is not only the text promulgated by the founding fathers. Regulatory provisions are subject to formal and informal changes. The first occurs by reform and review. The latter occurs by constitutional change, which can be legitimate (interpretation and practice) or illegitimate (break). Constitutional change results from the integration of two interdependent elements within the constitutional provision: the normative and factual. In order to support this conclusion, we analyze the main doctrines about constitutional change. This leads us to question the foundation of the constitutional change, which resides in the diffuse constituent power, which, in the expression of BURDEAU, aims to complement and continue the work of the original constituents. Once constitutional change is as something internal to the legal standard, we must identify the limits of the interpretive task, given the risk of suffocation by saturation of legal policy. The study about the relationship between democracy and constitutional jurisdiction is based on the American Law, where the theory of judicial review was first developed. So, the legitimacy of judicial review facing the democratic principle is seriously discussed in that Country. These limits are sought in the doctrines of WALDRON, favorable to the primacy of the legislator; DWORKIN, defender of judicial review even when it requires a mythical judge like Hercules, and ACKERMAN, who tries to balance the equation in the search for consensus. The study then goes on to the ambivalent role of trials intermediaries as the result of a constitutional change and also as an instrument of change. Finally, we conclude that the development of trials intermediaries transforms the judicial interpretation in a higher mechanism of constitutional change, given its

erga omnes and vinculative effects. The results obtained in this research allows to assess that constitutional change depends on transformation of the legitimate sense of the Constitution, which should be recognized by the Supreme Court in the exercise of Constitutional jurisdiction.

KEYWORDS: CONSTITUTIONAL CHANGES, INTERMEDIATE DECISIONS, CONSTITUTIONAL JURISDICITION, DEMOCRACY, INTERPRETATION.

AUTHOR: Cibele Fernandes Dias Knoerr

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INTRODUÇÃO ... 11

PRIMEIRA PARTE A CONSTITUIÇÃO E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo 1. Estabilidade e mudança constitucional ... 16

1.1 Poder constituinte e nascimento da Constituição ... 16

1.2. O sujeito constituinte ... 22

1.3 Vinculações jurídicas ao poder constituinte originário ... 24

1.4 O imperativo da alteração constitucional ... 31

1.5 Rigidez e flexibilidade constitucional ... 36

1.6 Constitucionalismo e supremacia constitucional ... 42

Capítulo 2. As mudanças formais da Constituição ... 53

2.1 O poder constituinte derivado e suas formas de manifestação ... 53

2.2 Limites da reforma constitucional e emendismo ... 56

2.3 Controle de constitucionalidade das emendas constitucionais ... 61

Capítulo 3. A mutação constitucional ... 68

3.1 A contribuição da Escola Alemã para a teoria da mutação constitucional ... 70

3.1.1 A teoria do formalismo: Paul LABAND e George JELLINEK ... 71

3.1.2 As teorias da dinâmica constitucional ... 78

3.1.2.1 A integração: SMEND e DAU-LIN ... 79

3.1.2.2 A conexão entre normalidade e normatividade: Hermann HELLER ... 86

3.1.2.3 A mudança no interior da norma: Konrad HESSE e Friedrich MÜLLER ... 90

3.1.3 A negação da mutação como conceito autônomo: Peter HÄBERLE e H. STERN 94 3.1.4 A teoria dogmática da mutação: Ernst W. BÖCKENFÖRDE ... 98

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3.4 Identificando limites à mutação constitucional ... 112

3.5 A mutação constitucional como processo no interior da norma constitucional ... 115

3.5.1 A compreensão dos limites da mutação na perspectiva da mudança no interior da norma constitucional ... 117

3.6 Mecanismos de atuação da mutação constitucional ... 124

3.6.1. Mutação constitucional por interpretação constitucional ... 126

3.6.1.1 Interpretação constitucional ... 128

3.6.1.2 Interpretação e concretização constitucional ... 136

3.6.1.3 Cânones de interpretação constitucional ... 138

3.6.1.4 Os intérpretes constitucionais ... 141

3.6.2 Mutação constitucional por interpretação constitucional judicial ... 143

3.6.3 Mutação constitucional por interpretação constitucional legislativa e administrativa 160 3.6.4 Mutação constitucional pelos costumes constitucionais ... 164

SEGUNDA PARTE: DECISÕES INTERMEDIÁRIAS E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo 1. Jurisdição Constitucional em mutação ... 168

1.1 Origem e desenvolvimento da garantia judicial da Constituição ... 168

1.1.1 O modelo americano ... 171

1.1.2 O modelo europeu e o Tribunal Constitucional de Hans KELSEN ... 177

1.1.3 Desenvolvimento do sistema brasileiro ... 181

1.2 Supremacia da Constituição e supremacia do Judiciário ... 193

1.3 A busca por consensos sobre a posição da jurisdição constitucional na tensão com o Legislador ... 200

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2.1.2 Decisões manipulativas de efeitos aditivos ... 219

2.1.3 Decisões substitutivas ... 237

2.2 As decisões transitivas ou transacionais ... 239

2.2.1 Declaração de inconstitucionalidade sem efeito ablativo ... 240

2.2.2 Declaração de inconstitucionalidade com ablação diferida ... 243

2.2.3 Decisões apelativas ou declaração da constitucionalidade provisória ... 261

2.2.4 Decisões de aviso ... 263

2.3 Decisões intermediárias e jurisdição constitucional ... 265

Capítulo 3. A jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito ... 268

3.1 A mutação constitucional no paradigma da linguagem ... 268

3.2 O papel do Judiciário diante do desacordo entre Estado de Direito e democracia .. 285

3.3 Aplicação judicial da Constituição e democracia ... 297

3.4 Jurisdição constitucional e legalidade ... 310

3.5 Validade discursiva: internalismo e externalismo ... 317

3.6 Controle concentrado e controle difuso: a mutação constitucional em cada modelo323 CONCLUSÕES ... 328

(10)

O conceito de Constituição levanta controvérsias desde o surgimento da primeira

Constituição escrita. Seja considerada como soma dos fatores reais de poder, como definiu

LASSALE, ou como documento superior dotado de força normativa, conforme defendeu

HESSE, o fato é que a Constituição interage ininterruptamente com a realidade. Não se pode

separar a realidade das normas constitucionais.

De fato, as normas constitucionais, porquanto dotadas de força normativa,

conformam a realidade social. Por outro lado, são influenciadas por essa mesma realidade, na

medida em que sua aplicação é mediada e orientada por valores cambiantes, cuja identificação

não pode ser positivada. Ou seja, as normas constitucionais determinam um dever-ser, mas a

compreensão desse dever-ser é informada por valores cujo conteúdo não está expresso no

texto constitucional.

Essa constatação remete diretamente à distinção de Friedrich MÜLLER entre

programa normativo (texto) e norma – o resultado da compreensão da norma pelo intérprete.

Se os valores cultuados por uma sociedade em determinado momento histórico mudam, então

deve mudar também a compreensão das normas regentes dessa sociedade, ainda que o texto

constitucional permaneça inalterado. A Constituição, assim, está permanentemente sujeita a

processos informais de mudança.

A mutação constitucional constitui um processo informal de mudança da

Constituição e de mais difícil teorização, dada a variedade de intérpretes que podem ensejá-la.

E, dentre os diversos intérpretes da Constituição, é especialmente problemática a legitimidade

mutação constitucional por interpretação judicial.

(11)

constitucionalidade tradicional, em que ou a norma é inconstitucional e nula ou é

constitucional e válida. As decisões intermediárias, assim chamadas porque representam um

meio termo entre a validade e a invalidade, possibilitam uma extensa gama de provimentos

jurisdicionais, além da simples e mera declaração de inconstitucionalidade.

A título exemplificativo, são representativas dessa modalidade as decisões que

declaram a inconstitucionalidade de uma norma sem redução de texto, as decisões aditivas e

as declarações de inconstitucionalidade sem efeito ablativo. Todas essas técnicas reconhecem

a inconstitucionalidade de uma norma, mas mantém a higidez do texto, seja em razão da

polissemia de normas dele decorrente; da possibilidade de se interpretar o texto com maior

amplitude que aquela desejada pelo legislador; ou ainda pela preservação da norma

inconstitucional em respeito a outros valores igualmente constitucionais.

Como se observa, as decisões intermediárias outorgam à jurisdição constitucional

um poder consideravelmente superior àquele de simples retirada da norma do ordenamento. É

possível modular os efeitos da norma questionada no tempo e mesmo ampliar ou restringir o

alcance normativo. Tudo isso com efeitos erga omnes e eficácia vinculante, o que torna ainda mais importante a sistematização do uso de decisões intermediárias como forma de promover

mutação constitucional.

A construção das decisões intermediárias no Brasil é doutrinária, jurisprudencial e,

em alguns casos, reforçada pela interpretação constitucional legislativa. É curioso perceber

que a própria utilização de decisões intermediárias não decorre, no Brasil, de previsão

constitucional. Mesmo a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, embora

prevista legislativamente no controle concentrado, teve seu alcance ampliado

(12)

decisões intermediárias são fruto de mutação constitucional e, ao mesmo tempo, instrumento

de mutação.

As decisões intermediárias da justiça constitucional como forma de mutação geram

reflexos diretos sobre a teoria democrática e sobre o princípio da separação de poderes.

Cumpre questionar o fundamento de legitimidade desse papel atribuído ao Judiciário, além de

buscar traçar os limites dessa atividade. Em outras palavras, além de se justificar por que a

jurisdição constitucional pode ampliar ou restringir o âmbito de incidência normativa e

conformar os significados dos preceitos elaborados pelo constituinte originário, impõe-se

identificar em que medida isso pode ser realizado sem quebra do princípio democrático e do

princípio da separação de poderes.

O presente trabalho visa fornecer as bases teóricas que sustentem esses dois

objetivos. Para tanto, está dividido em duas partes. Na primeira, busca-se sistematizar o

processo de mutação constitucional. Na segunda, expõem-se as modalidades de decisões

intermediárias e procura-se compatibilizar o exercício da jurisdição constitucional com o

Estado Democrático de Direito.

A abordagem da mutação constitucional abre a primeira parte do trabalho com o

estudo sobre a estabilidade e a mudança constitucional. O objetivo é demonstrar que, embora

os preceitos constitucionais tendam à permanência, o mesmo não se pode dizer das normas

extraídas do texto. A Constituição está sujeita, portanto, a mudanças formais - tema do

segundo capítulo - e informais, a mutação. É no terceiro capítulo da primeira parte que se

analisam as principais doutrinas acerca desse fenômeno, com ênfase para a localização da

mudança: seria ela uma alteração exterior ao direito, porém reconhecida pelo intérprete, ou um

fenômeno interno à estrutura normativa? Abordam-se também os mecanismos de atuação da

(13)

e os costumes constitucionais. Finalmente, o fundamento de legitimidade da mutação como

instrumento de mudança da Constituição.

As decisões intermediárias são objeto da segunda parte do trabalho, dedicado a

investigar os fundamentos da jurisdição constitucional e seus instrumentos decisórios. São

analisadas, assim, as decisões normativas e as decisões transitivas, bem como suas espécies.

Essa sistematização das decisões intermediárias seguiu, na medida do possível, a classificação

proposta por José Adércio LEITE SAMPAIO, pioneiro no estudo dessa espécie decisória no

Brasil. O estudo buscou ainda ilustrar cada técnica de decisão com precedentes coletados na

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

O risco de que a utilização das decisões intermediárias, como instrumento de

mutação constitucional, desequilibre o princípio democrático justifica o estudo da relação

entre decisões intermediárias e jurisdição constitucional no Estado Democrático. A fim de

encontrar um ponto de equilíbrio entre a mutação e a separação de poderes, situa-se

inicialmente a mutação constitucional no paradigma filosófico contemporâneo, qual seja, o

paradigma da linguagem. Em seguida, esclarece-se o conceito de Estado de Direito

substancialista, de modo que a jurisdição constitucional possa se ajustar à teoria da

democracia. Para isso, impõe-se o estudo das relações da jurisdição constitucional com a

legalidade e a validade discursiva de suas decisões. Finalmente, são analisadas situações

extremas decorrentes da falta e dos excessos da jurisdição constitucional, para concluir que

tanto uma quanto outra são indesejáveis, do ponto de vista sistêmico. Eliminar a jurisdição

constitucional é tão arriscado quanto hipertrofiá-la. A mutação constitucional é um fenômeno

inerente ao sistema normativo, e a utilização de decisões intermediárias é recomendável,

desejável e necessária, desde que compatibilizada com o princípio democrático - algo que nem

(14)

Já na clássica obra O Federalista se encontra a presunção de que o Judiciário tem

papel determinante na mediação entre os valores sociais e a aplicação da lei, porquanto

razoável “a suposição que a Constituição quis colocar os tribunais judiciários entre o povo e a legislatura, principalmente para conter essa última nos limites das suas atribuições. A

Constituição é e deve ser considerada pelos juízes como lei fundamental; e como a

interpretação das leis é a função especial dos tribunais judiciários, a eles pertence determinar o

sentido da Constituição, assim como de todos os outros atos do corpo legislativo”.1 Impende,

portanto, determinar os fundamentos e os limites dessa atribuição no contexto das decisões

intermediárias da Justiça Constitucional e a mutação constitucional. É o que se passa a expor.

1 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo

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C A P Í T U L O 1 . E S T A B I L I D A D E E M U D A N Ç A C O N S T I T U C I O N A L

1.1 PODER CONSTITUINTE E NASCIMENTO DA CONSTITUIÇÃO

A ideia de um poder constituinte como instituto jurídico surgiu

contemporaneamente às Constituições escritas. Historicamente, editadas as primeiras

Constituições (a Americana, em 1787 e a Francesa, em 1791), se concebeu a existência de um

Poder originário, ilimitado e autônomo, estabelecedor da estrutura político-jurídica do Estado.

Os antecedentes do constitucionalismo norte-americano remontam ao pensamento

de John LOCKE. De acordo com sua clássica doutrina jusnaturalista, pode-se traçar uma

distinção entre estado de natureza e estado civil. No estado de natureza (state of nature), os indivíduos têm uma esfera de direitos naturais (property) que engloba o poder de fazer aquilo que se considere apropriado para a preservação de sua propriedade (direito de resistência) e o

de punir as transgressões ao direito natural (poder executivo). A passagem para o estado civil

ocorre em duas etapas. Primeiro, os indivíduos transferem à comunidade o poder executivo

por meio de um contrato. Em seguida, a comunidade transfere ao governo o poder executivo

por meio de uma relação de confiança (trusty). O estado de natureza, todavia, não desaparece nessa passagem. O contrato social não confere ao governo um poder geral, mas limitado e não

arbitrário. Os indivíduos conservam o seu direito natural de resistência, assim como

permanecem as relações de estado de natureza no âmbito de uma sociedade política.1

(16)

Ainda que a expressão - poder constituinte - não apareça no discurso de John

LOCKE, o autor já sinaliza a distinção entre poder constituinte do povo, como poder de o

povo alcançar uma nova forma de governo por meio do exercício do direito de revolução, e o

poder ordinário do governo e do legislativo para elaborar e aplicar as leis.2

De todas as doutrinas contratualistas, todavia, é a de ROUASSEU a que mais se

aproxima da ideia embrionária de poder constituinte. Para ele, o contrato social estrutura a

sociedade a partir do comando da vontade geral. Por isso, o governo legítimo seria o governo

democrático. Esse pensamento criticava as instituições políticas europeias, constituídas sob o

fundamento de um poder soberano absoluto. Sua intenção era refazer o pacto social,

substituindo-se as instituições existentes por novas, baseadas na liberdade individual, no

respeito ao direito natural e na participação dos governados no governo. O instrumento para

tanto seria a Constituição escrita.3

A tese do contrato social fundamentou o pensamento político dos whigs na base na Declaração de Independência de 1776. A distinção entre legislação ordinária e atos políticos extraordinários, como a elaboração e aprovação das Constituições, ganhou corpo com a

Constituição de Massachsetts de 1780 e de New Hampshire de 1784 (constitutional

convention). Num processo que durou até 1781, os Articles of Confederation adotados pelo Congresso, três anos antes, foram ratificados pelas assembleias legislativas dos treze Estados.

O fato de nunca terem sido submetidos à ratificação popular permitiria ao povo revogá-lo.

Posteriormente, a Convenção de Filadélfia de 1787, a Constituição elaborada pelos Fouding

Fatherse a influência do ―The articles of federalism‖ de Alexander HAMILTON, John JAY e James MADISON estavam radicados na concepção do ―people at large‖ como depositário da

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.

7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 72.

3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 5. ed. São Paulo:

(17)

soberania e a Constituição como um contrato entre os indivíduos, e não entre o povo e os

governantes, para limitação do governo. 4

No contexto de um governo de poderes limitados, até mesmo o poder constituinte

não tem autonomia, pois serve para "dizer a norma", "registrar num documento escrito" um

conjunto de limitações aos poderes (checks and balances), fazendo uma constituição "oponível aos representantes do povo". 5

O federalismo dos fundadores estava pautado num dualismo: da política

constitucional (constitucional politics) e a política do dia a dia (normal politics). A preocupação dos federalistas não era somente teorizar a política constitucional, mas formular

mecanismos constitucionais através dos quais a normal politics poderia fluir sem trair a herança da Revolução.6 O princípio legitimador da Constituição americana foi muito mais a

federação, do que a democracia.7

A teoria da representação política, e não o apelo à virtude pública, serviu como

instrumento ao governo republicano. Os federalistas estabeleceram um sistema capaz de

atingir por si os resultados que o povo somente conseguiria alcançar nos raros momentos

constitucionais de mobilização e atuação segundo um espírito de virtude política. A

4 BRITO, A Constituição constituinte..., op. cit., p. 46.

5 CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição..., op. cit., p. 70.

6 ACKERMAN, Bruce. We the people: foundations. Massachusetts: Harvard University

Press, 1991. p. 177-178.

7 COMPARATO, Fábio Konder. Direito público. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 33. No

mesmo sentido, Maria Lucia do AMARAL sustenta que o constitucionalismo americano nasce sob o

signo da federação: ―Ora federar significa agregar, juntar, contratar num resultado final vontades plurais à partida divergentes. O ethos da tradição constitucional norte-americana tem por isso uma palavra chave. Esta palavra é contratualismo.” AMARAL, Maria Lucia do. A forma da república:

(18)

proliferação de instituições representativas previstas na Constituição impediria que os

representantes usurpassem os poderes transferidos pelo povo.8

Para os federalistas, vitoriosos no processo constituinte de 1787, a virtude de uma

República não poderia ser encontrada na virtude dos seus cidadãos, mas na virtude das suas

instituições. A criação de instituições, comuns a todos os Estados da federação, com

capacidade para, pelos seus freios e contrapesos, impedir os excessos de um poder distante e

central como o federal, seriam alcançadas com a federação, para congregar a força da União e

a moderação e o equilíbrio do seu poder.9 TOCQUEVILLE escrevia em 1875, sobre o sistema

americano, que se tratava muito mais de dar ao povo a faculdade de escolher os mais capazes

para governar, do que de encontrar uma maneira de fazer o povo governar.10

No ambiente da revolução francesa, a tese de Emmanuel SIEYÈS de um ―pouvoir

constituant‖ (poder constituinte) da nação em constante estado de natureza e o “pouvoir constitué” (poder constituído), veiculada na famosa obra – Que é o terceiro Estado?

representou um ícone da articulação dos principais conceitos da ciência política de seu tempo.

8 BRITO, Manoel Nogueira de. Autoridade e argumentação numa ordem constitucional.

In: ARAÚJO, Antonio de et al. Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 377-378.

9 Para os antifederalistas, a virtude da República radicaria nos seus cidadãos e na

possibilidade de sua participação nos assuntos públicos, que restaria de impossível exercício em grandes espaços territoriais, que acabaria por afastar governantes e governados, causando a indiferença dos últimos e a ausência de controle dos primeiros. AMARAL, Maria Lucia do. A forma da república: uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 61. No mesmo sentido, Hannah ARENDT explica que o problema principal dos fundadores era ―criar um

sistema de poderes que se refreassem e se equilibrassem de tal forma que nem o poder da União nem o poder de suas partes, os estados devidamente constituídos, viessem a se diminuir ou se destruir

mutuamente.‖ ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 200.

10 BURDEAU, Georges. A democracia: ensaio sintético. 3. ed. Mira-Sintra: Publicações

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Para SIEYÈS, a Constituição, nascida de um poder constituinte, gera os poderes do

Estado (poderes constituídos), sendo assim superior a eles. O poder constituinte não está

vinculado à Constituição, porque a precede originariamente como o seu criador. A nação,

titular do poder constituinte, tem plena liberdade para criar uma Constituição. Daí esse poder

não estar sujeito a formas ou limites pré-existentes, e, nesta medida, ser ilimitado pelo direito

anterior.11

A teoria de SIEYÈS rompeu dois círculos viciosos, um intrínseco à criação humana

de leis e outro inerente à petição de princípios que acompanha todo início político, inerente à

própria tarefa de fundação. Em relação ao primeiro problema, da legitimidade do novo poder,

resolve no sentido de que o poder constituinte originário não era e nunca poderia ser

constitucional, pois anterior à própria Constituição. A nação, titular do poder constituinte

originário, é, como o príncipe absoluto, fonte de toda justiça, e, por essa razão, não poderia

estar submetida a nenhuma lei positiva. E o segundo problema, da legalidade das novas leis,

que exigiam uma lei superior de onde derivariam sua validade, resolve com a Constituição,

obra do poder constituinte originário.12

A Revolução Francesa trouxe novos contornos ao tema do poder constituinte, se

comparado com a experiência americana. Além da centralidade política da Nação como titular

do poder constituinte, fez-se evidente a ideia subjacente ao poder constituinte como um

criador dotado de aptidões divinas que encontra na Constituição a sua criatura. Ele "cria a

norma constitucional" destruindo o direito anterior.13 Uma espécie de demiurgo da

11 FERREIRA FILHO, O poder..., op. cit., p. 11-18. Como salienta Geraldo ATALIBA,

"toda convocação de Constituinte é, por definição, ato de agressão à Constituição vigente." O poder constituinte originário manifesta-se por meio da revolução, justamente porque quebra, rompe com o direito anterior sem nada lhe dever. ATALIBA, Geraldo. Constituinte derivada? Folha de São Paulo, São Paulo, p. a. 3, 30 dez. 1987.

12 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.

212.

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Constituição.14 Desconstitui (a forma monárquica) e reconstitui (a forma republicana), agindo

por meio do veículo da revolução:

―Os Modernos não imaginavam um poder constituinte que não fosse revolucionário. [...] A Constituição era assim, para os vencidos, a bandeira da violência e da usurpação dos títulos de legitimidade; enquanto para os vencedores era o fim da tirania ou do despotismo, o selo de uma nova era.‖15

Não se ignore, entretanto, a advertência de ZIPPELIUS, para quem:

Os limites fácticos do poder estatal podem (...) ser também juridicamente relevantes. Na verdade, uma faculdade jurídica, entendida como direito garantido, vai sempre apenas até ao ponto onde chega a possibilidade real de seu exercício eficaz. É que o direito inclui – na sua eficiência – também uma componente fáctica (...). Quando, portanto, as circunstâncias fácticas cerceiam a potencialidade do poder estatal de impor eficazmente determinadas disposições, então, cerceiam em igual medida também a soberania das competências.16

Na visão de SIEYÈS, o poder constituinte é soberano e inaugural, juridicamente

incondicionado e instituidor da organização política do Estado. É ele que ―explica, em

qualquer momento, uma perene possibilidade de auto-organização do Estado, poder que nunca

desaparece, mas que fica latente – qual ‗vulcão adormecido‘ – em momentos não constituintes (de ‗não atividade vulcânica‘), sendo a partir dele que todos os outros poderes derivam.‖17

O poder constituinte originário é insuscetível de transferência, destruição, alienação

ou absorção. Ele permanece sempre com a possibilidade de continuar existindo e se encontra,

14 ―As leis fundamentais do Estado estão hoje contidas em documentos escritos que

resultam do exercício de um poder que, embora situado na história, se ‗arroga‘ a ambição demiúrgica

de fundar as comunidades políticas, prescrevendo, como é que, de futuro, estas devem viver.‖

AMARAL, A forma da república..., op. cit., p. 36.

15 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 350.

16 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbekian, 1997. p. 80.

17 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional. Volume I. Coimbra:

(21)

ao mesmo tempo, acima da Constituição e de toda demarcação legal-constitucional dela

derivada.18

1.2 O SUJEITO CONSTITUINTE

Durante o período medieval, predominava a concepção de que todo poder vinha de

Deus, titular da potestas constituens. Durante a Revolução Francesa, Emanuel SIEYÈS desenvolveu a doutrina da Nação como titular do poder constituinte. Tratava-se de uma nação

em ―estado de natureza‖, à margem do Estado e da Constituição. ―Por esta via afastava não apenas os poderes do monarca e os poderes existentes no Estado, fundando a possibilidade de

que ‗os Estados Gerais‘, convocados pelo soberano, se reconhecessem a si próprios como ‗Assembleia Nacional Constituinte.‘‖19

A marca da Revolução Francesa - como a gênese do poder constituinte - reside na

autoconsciência da existência desse poder. Ideia que não teria sido teorizada na Revolução

Americana de 1776. Uma vez conquistada a independência, as treze colônias americanas

fundaram um Estado completamente novo. Na França, diferentemente, o Estado foi mantido,

porém uma nova ordem jurídica foi conscientemente inaugurada. Houve uma opção

consciente pelo estabelecimento, por representantes do povo reunidos em assembleia, do

modo e forma de sua própria existência política. Como a doutrina do poder constituinte do

18 SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. 2. reimpresión. Madrid: Alianza, 1996.

p. 108. Segundo Francisco RUBBIO LLORENTE, a problemática da legitimidade do poder das gerações presentes para limitar o poder das gerações futuras pela Constituição traduz-se na impossibilidade que esta destrua o poder constituinte originário. LLORENTE, Francisco Rubio. Rigidez y apertura en la Constitución. Cuadernos y Debates, Madrid, n. 198, p. 24, 2009.

19 QUEIROZ, Cristina. Direito constitucional: as instituições do estado democrático e

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povo pressupõe uma vontade consciente de existência política e, portanto, uma Nação, a teoria

do poder constituinte teria nascido na França revolucionária.20

A teoria do poder constituinte de titularidade da Nação ofereceu um campo fértil

para o desenvolvimento da ideia de representação. Por isso, esse poder deveria ser exercido

mediante representantes: para compatibilizar as diversas vontades particulares, extraindo dela

a vontade geral.21 SIEYÈS, divergindo de muitos revolucionários, prefere o governo

representativo em virtude do seu valor técnico e moral superior ao governo direto.22

A intenção de estabelecer um representante ou intérprete regular da vontade

popular, todavia, contradiz essa doutrina. Isso porque a legitimidade do poder constituinte

reside na efetiva representação dos interesses da Nação, não em requisitos formais como um

processo eleitoral, um mandato ou mesmo a institucionalização de um poder constituinte

permanente. O que importa para caracterizar o poder constituinte, para SIEYÈS, não são os

elementos formais, mas o fato de que ele pode remitir-se contra o poder estabelecido em nome

da vontade da Nação. Assim, o mesmo sujeito, que cedeu o exercício do poder constituinte a

determinado representante, pode cassá-lo quando não mais se sentir representado.23

Todavia, "os sistemas contemporâneos subsumiram a teorização de Sieyès,

transferindo, todavia, a titularidade da Nação para o Povo."24 Ao prever no art. 1º que "todo poder emana do povo que o exerce diretamente ou através de representantes eleitos", a

Constituição de 1988 deixa claro que o povo é o titular do poder constituinte, o sujeito

constituinte. Trata-se do povo, conforme Friedrich MUELLER, como ―a totalidade dos

20 SCHMITT, Teoría..., op. cit., p. 95-97.

21 FERREIRA FILHO, O poder..., op. cit., p. 13-23. 22 BRITO, A Constituição constituinte..., op. cit., p. 74. 23 SCHMITT, Teoría..., op. cit., p. 97.

24 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte do Estado-Membro. São

(23)

indivíduos realmente residentes no território do Estado: como uma multiplicidade em si

diferenciada, mista, constituída em grupos, mas organizada de forma igualitária e não

discriminatória.‖25

Ainda que o agente constituinte possa ser uma Assembleia Nacional Constituinte

ou uma autoridade que outorga a Constituição em nome do povo, nas Constituições

democráticas a titularidade da função constituinte originária pertence ao povo.

O poder constituinte representa, portanto, o ponto mais nítido no qual a política se

converte em normatividade jurídica. Na esfera do poder constituinte, realiza-se a fusão entre

direito e valores. É, ao mesmo tempo, a fonte de criação das normas constitucionais e o sujeito

desta produção. Na concepção de Constantino MORTATI, o poder constituinte tende a

identificar-se com o conceito de política, na forma que é entendida em uma sociedade

democrática.26

1.3 VINCULAÇÕES JURÍDICAS AO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

Se o poder constituinte originário funda uma nova ordem jurídica, qual a sua

natureza? A doutrina diverge quanto a esse tema. Vislumbram-se genericamente duas teses: a

juspositivista e a jusnaturalista.27

Para a teoria juspositivista, o poder constituinte originário é um poder de fato, uma

força social ou energia política que cria uma nova ordem jurídica a partir de uma Constituição,

25 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São

Paulo: Max Limonad, 1998. p. 110.

26 CALABRO, Gian Petro. Potere costituente e teoria dei valori: La filosofia giuridica

di Costantino Mortati. Lungro: Marco Editore, 1997. p. 7.

(24)

podendo para tanto destruir o regime constitucional anterior, tudo segundo sua vontade

soberana. Não há limites jurídicos ao exercício deste poder constituinte. Inexistem direitos

adquiridos em face dele. Não há condições jurídicas ao seu exercício.

A teoria juspositivista fecha "o debate sobre o fundamento de validade da

Constituição: ela seria válida incondicionalmente porque procedente de quem tinha o poder de

instituí-la de forma absoluta.‖ 28

Em oposição à tese juspositivista, há a jusnaturalista. Essa tese defende que o

direito não se reduz ao direito positivo. Anterior ao próprio direito positivo, existe o direito

natural, que não é posto pelo Estado, mas pressuposto. Como o direito natural vincula o poder

constituinte no momento da elaboração da Constituição, este passa a ser um poder de direito e

não mero poder de fato.

Manoel GONÇALVES FERREIRA FILHO sustenta expressamente a tese

jusnaturalista, pois ―o direito não se resume ao Direito Positivo‖ e ―há um direito natural, anterior ao Direito do Estado e superior a este‖ do qual decorre as liberdades dos homens de estabelecer as instituições pelos quais serão governados.29

Sem evocar diretamente o direito natural, os constitucionalistas portugueses

afirmam a limitação do poder constituinte originário. Para José Joaquim GOMES

CANOTILHO, o povo, na condição de sujeito constituinte, obedece a padrões e modelos de

condutas espirituais, culturais, éticos e sociais conformadores da "consciência jurídica geral da

comunidade". Se é assim, o poder constituinte originário está vinculado juridicamente aos

28 SAMPAIO, A Constituição..., op. cit., p. 347.

29 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São

(25)

princípios de justiça (como princípios suprapositivos ou supralegais, mas intrajurídicos) e aos

princípios de direito internacional. Trata-se da "jurisdicização" do poder constituinte.30

No mesmo sentido, Jorge MIRANDA defende que o poder constituinte originário

não é soberano absoluto, pois não tem ―capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições‖. Vislumbra três categorias de limites materiais do poder constituinte originário: (i) transcendentes, (ii)

imanentes e (iii) heterônomos.31

Os limites transcendentes decorrem dos imperativos de Direito Natural, valores

éticos superiores e de uma consciência jurídica coletiva. Os limites imanentes estão ligados à

―configuração do Estado‖ ou à ―própria identidade do Estado de que cada Constituição representa apenas um momento da sua marcha histórica‖. Finalmente, os limites heterônomos de direito internacional, atinentes a princípios, regras ou atos de Direito Internacional, do qual

resultem obrigações para o Estado, e de direito interno, que se constituem em limites

recíprocos num pacto federativo.32

No Brasil, também há uma extensa corrente a favor da limitação jurídica do poder

constituinte originário, enquanto função historicamente situada, que não parte do zero para

elaborar a Constituição.

30 CANOTILHO, Direito constitucional e teoria..., op. cit., p. 81.

31 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: Constituição. Tomo II. 6. ed.

Coimbra: Coimbra, 2007. p. 132;134.

(26)

Para Celso RIBEIRO BASTOS, ―o órgão incumbido de fazer a Constituição não goza de liberdade plena‖ de maneira que ―não poderia ela, no ápice de um movimento de

cunho democrático, responsável pela sua convocação, decidir-se por uma Constituição não

democrática.‖33

Walter Claudius ROTHENBURG refere-se expressamente a limites jurídicos.

Argumenta que o poder constituinte originário sempre conheceu limites jurídicos

historicamente construídos e relacionados à realidade, à consciência que a comunidade tem do

que é Direito, ao respeito a direitos humanos consensualmente admitidos como básicos. ―Já é

hora de pararmos de repetir, acriticamente a (falsa) ausência de limitação jurídica do poder

constituinte originário. Não se ignora, contudo, a problemática do reconhecimento dos limites,

ligada à justificação, à identificação, à limitação deles. Isso traduz um desconforto com o qual

a democracia convive e que deve conseguir superar.‖34

André RAMOS TAVARES, na esteira de Nelson de SOUSA SALDANHA,

sustenta ser necessário distinguir o poder constituinte propriamente originário, característico

de momentos de ruptura como revoluções e independência de Estados, do poder constituinte

posterior, contraposto ao originário e historicamente situado, muitas vezes instituído legal e

até admitido pela ordem jurídica anterior. Este poder constituinte historicamente situado deu

origem à Constituição de 1988, cujo processo constituinte foi deflagrado por uma emenda à

Constituição de 1969. 35

33 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva,

2011. p. 39.

34 ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito constitucional. São Paulo: Verbatim,

2010. p. 74.

35 TAVARES, André Ramos. Reflexões sobre a legitimidade e as limitações do poder

(27)

O poder constituinte historicamente situado é constituído, porque limitado. E os

seus limites estão radicados no ―respeito à situação histórica da comunidade política, aos ideais de justiça, ao direito internacional, a um direito natural, a grupos de pressão (presentes

em toda assembleia constituinte), a crenças ou a uma realidade social subjacente limitadora

(normalidade na teoria do jurista Hermann Heller), ou a princípios superiores de convivência

humana.‖36

Uma das principais consequências dessa discussão é o reconhecimento (ou não) do

controle judicial de constitucionalidade das normas constitucionais originárias. Se o poder

constituinte originário é um poder de fato, juridicamente ilimitado, o Poder Judiciário,

enquanto poder constituído, não dispõe de legitimidade para controlá-lo. Em segundo lugar, se

a obra originária encontra-se no vértice de uma pirâmide jurídica composta exclusivamente

pelo direito positivo, não há parâmetro normativo para tanto. Do contrário, se o poder

constituinte originário é poder de direito, limitado juridicamente, abre-se a possibilidade (pelo

menos em tese) da fiscalização judicial de suas normas.37

Na doutrina alemã, é conhecida a doutrina de Otto BACHOF que admite a

inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias em face de violação do direito

supralegal positivado na própria Constituição: "a incorporação material (Ipsen) dos valores

supremos na Constituição faz, porém, com que toda infracção de direito supralegal, deste tipo,

36 TAVARES, Reflexões sobre a legitimidade..., op. cit., p. 346-347. No mesmo sentido:

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 68. Manoel GONÇALVES FERREIRA FILHO defende que a Constituição de 1988 não é obra do poder constituinte originário. Todavia, radica-a no resultado de uma ―reforma constituinte‖: ―a Constituinte de 1987/1988 não era senão o Congresso Nacional – inclusive com os senadores eleitos em 1982 – investido de poderes especiais de reforma por força da Emenda n. 26/85 à

Constituição de 1967.‖ FERREIRA FILHO, Manoel. Significação e alcance das ‗cláusulas pétreas.‘

In: CLÈVE, BARROSO; Doutrinas essenciais..., Volume I, op. cit., p. 709.

37 Em sentido contrário, para quem a discussão entre a tese juspositivista ou jusnaturalista

ultrapassa as fronteiras do direito constitucional para constituir objeto da filosofia: BASTOS,

(28)

apareça necessária e simultaneamente como violação do conteúdo fundamental da

Constituição."38

O Supremo Tribunal Federal tem entendido que a Constituição de 1988 constitui

obra de um poder constituinte originário, inicial, ilimitado e incondicionado.39 A

consequência imediata é a impossibilidade da declaração de inconstitucionalidade de normas

constitucionais originárias. Se o poder constituinte originário é ilimitado juridicamente, não há

nenhuma norma superior à própria Constituição apta a atuar como parâmetro para invalidar

normas constitucionais originárias.

Nesta ótica, argumenta Gilmar FERREIRA MENDES que ―sendo o poder constituinte originário ilimitado e sendo o controle de constitucionalidade exercício atribuído

pelo poder constituinte originário a poder por ele criado e que a ele deve reverência, não há

que se cogitar de fiscalização de legitimidade por parte do Judiciário de preceito por aquele

estatuído.‖40

Como destacou o Ministro Néri da SILVEIRA no julgamento da Ação direta de

inconstitucionalidade 2356/Medida Cautelar/Distrito Federal, "a eficácia das regras jurídicas

produzidas pelo poder constituinte (redundamente chamado de 'originário') não está sujeita a

nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do

exercício de um poder de fato ou suprapositivo."41 De forma que "não se admite controle

38 BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Almedina,

1994. p. 62-63.

39 Com adesão de parte da doutrina nacional, como Luiz Alberto DAVID DE ARAÚJO e

Vidal SERRANO JÚNIOR. ARAÚJO, Luiz Alberto David de; JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 30.

40 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 288.

41 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI MC 2356/DF - Distrito Federal. Medida

(29)

concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte

originário."42

De outro lado, decidiu o Supremo Tribunal Federal que uma norma constitucional

originária não pode ser tomada como parâmetro para invalidar outra, também originária,

considerada a inexistência de hierarquia entre elas:

Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Constituição Federal. A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é impossível com o sistema de Constituição rígida. Na atual Carta Magna, 'compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição' (artigo 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação as outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.43

42 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4097 Agr/DF - Distrito Federal. Agravo

regimental na ação direta de inconstitucionalidade. Relator: Ministro Cezar Peluso. Julgamento: 08.10.08. Tribunal Pleno. Diário de Justiça da União n. 211, publicado em 07.11.2008. Ementário vol. 02340-02, p. 00249.

43 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 815/DF - Distrito Federal. Ação direta de

inconstitucionalidade. Relator: Ministro Moreira Alves. Julgamento: 28/03/1996. Tribunal Pleno. Diário de Justiça da União de 10.05.1996, p. 15131. Ementário volume 01827-02, p. 00312. No mesmos sentido, na ADI 4097-Agr, foi indeferida a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido que se dirigia à declaração de inconstitucionalidade da norma que afirma serem inelegíveis os

analfabetos: ―AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI. Inadmissibilidade. Art. 14, § 4º, da CF. Norma constitucional originária. Objeto nomológico insuscetível de controle de constitucionalidade. Princípio da unidade hierárquico-normativa e caráter rígido da Constituição brasileira. Doutrina. Precedentes. Carência da ação. Inépcia reconhecida. Indeferimento da petição inicial. Agravo improvido. Não se admite controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de

normas produzidas pelo poder constituinte originário.‖ SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI

(30)

Ao adotar a tese juspositivista, o Supremo Tribunal Federal combate o perigo do

recurso a normas extrapositivas para conduzir a uma jurisdição constitucional que "ultrapassa

os seus limites quando queira ir, sem autorização especial, além da interpretação e aplicação

do direito vigente".44 Se o Direito Natural não é acessível a uma regulamentação legal, não é

de modo algum controlável. Sustentar a presença de limites jurídicos ao exercício do poder

constituinte originário, num sistema como o brasileiro dotado de jurisdição constitucional,

poderá redundar, ao final e ao cabo, na declaração de inconstitucionalidade de todas as normas

da Constituição de 1988 pelo Poder Judiciário.

1.4 O IMPERATIVO DA ALTERAÇÃO CONSTITUCIONAL

Thomas JEFFERSON já vislumbrava o aparente paradoxo da democracia, de um

poder constituinte originário que condiciona, no presente, o poder constituinte de amanhã.

Por isso, sustentava que a Constituição deveria ser modificada por cada geração para garantir

que o passado não vinculasse o presente. Para ele, os vínculos constitucionais seriam

limitações injustificadas e antidemocráticas ao poder presente e futuro: ―no society can make a

perpetual constitution, for the earth belongs always to the living generation.‖45 Perpétuo é o poder constituinte, e não a Constituição.

publicado em 07.11.2008. Ementário volume 02340-02, p. 00249. Ao comentar este precedente,

Gilmar FERREIRA MENDES: ―Foi abonado o magistério de Gilmar Ferreira Mendes, Clèmerson

Clève, Marcelo Neves e Jorge Miranda no sentido de ser incogitável o controle de constitucionalidade de deliberação do constituinte originário.‖ MENDES et al, Curso..., op. cit., p. 288.

44 BACHOF, Normas constitucionais..., op. cit., p. 28.

45 AMARAL, Maria Lucia do. Constituição e organização do poder político:

(31)

Esta ideia também inspirou os constitucionalistas franceses na redação do art. 28,

da Constituição de 1793: ―Um povo tem sempre o direito de rever, reformar ou mudar sua Constituição. Uma geração não pode submeter as suas leis às gerações futuras.‖ Antes, a Constituição de 1791, título VII, artigo 1º já havia firmado o mesmo princípio: ―a Nação tem o

direito imprescritível de mudar sua constituição.‖

Na realidade, o problema da alteração da Constituição suscita a questão de se saber

como as gerações futuras podem exercer o seu consentimento em relação à Lei Fundamental.46

―Os homens podem – tanto nas suas existências individuais quanto na sua dimensão colectiva –imaginar para si mesmos um ser e um viver de outro modo. O tema do poder constituinte é, portanto, indissociável do tema moderno da liberdade.‖47

Na deflagração da revolução americana, Thomas PAINE preocupou-se em justificar

a necessidade da previsão de um processo de reforma da Constituição tendo em vista o direito

de cada geração de dispor a respeito do seu próprio destino contra o controle pela ―autoridade

dos mortos‖.48

Para Thomas PAINE, o governo por meio da distância temporal equivaleria ao

governo através da distância espacial, pois ambos são estranhos aos seus súditos e às

imposições naturais. Logo, governar do túmulo seria a mais ridícula e insolente tirania. A

tentativa de tornar uma Constituição perpétua importaria admitir o direito de controle da

opinião das futuras gerações, o que equivaleria a legislar para cidadãos de outro país ou

46 Como ensina Nelson de SOUSA SAMPAIO, ―uma constituição imutável dificilmente se

pode conceber em nossos dias, pois, enquanto vigorar o princípio da soberania popular, continuará prevalecendo o direito de o povo mudar o que foi decidido anteriormente.‖ SAMPAIO, Nelson de

Sousa. O poder de reforma constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Nova Aurora Edições LTDA, 1995. p. 54.

(32)

continente. Para este pensador, o passado é como um país estrangeiro. Governar para o futuro

é como governar para quem está distante, e ambos são ilegítimos pelas mesmas razões. 49

Os americanos foram os primeiros a adotar uma Constituição escrita e a prever um

procedimento especial para alterar suas disposições. O poder de reforma teve origem na

própria história pré-constitucional norte-americana. Seus antecedentes mais antigos remontam

à Carta de Privilégios da Pensilvânia (início do séc. XVIII). Além disso, entre 1776 e 1787,

diversas constituições estaduais americanas distinguiam o procedimento de reforma do

procedimento legislativo ordinário. Os procedimentos variavam entre a exigência de maioria

qualificada, a necessidade de que a emenda votada em uma legislatura fosse aprovada também

pela Assembleia seguinte e o sistema de convenção.50

A vocação de permanência da Constituição exige sua mutabilidade. Como ensina

José AFONSO DA SILVA, ―a modificabilidade da Constituição constitui mesmo uma garantia de sua permanência e durabilidade, na medida mesma em que é um mecanismo de

articulação da continuidade jurídica do Estado e um instrumento de adequação entre a

realidade jurídica e a realidade política, realizando, assim, a síntese dialética entre a tensão

contraditória dessas realidades.‖51

49 A crítica a essa ideia é que, embora os ―fundadores‖ tenham vivido anos atrás, são os

fundadores daquela nação. Não se trata de uma relação entre estrangeiros, mas de beneficiários e herdeiros, pais e filhos ou comunidade entre gerações. HONIG, Bonnie. Between decision and deliberation: political paradox in democratic theory. American Policial Science Review, vol. 101, n. 1, p. 9, feb. 2007.

50 CERQUEIRA, Marcello. A constituição na história: origem e reforma. Rio de Janeiro:

Editora Revan, 1993. p. 390-391. Seguno o autor, ao contrário do que se poderia pensar, o poder de reforma, previsto na Constituição americana de 1787, não foi inicialmente pensado como uma forma de adaptar a Constituição às novas necessidades sociais, mas como uma maneira de consolidá-la, alargando o pacto político para englobar um rol de direitos e liberdades individuais. Essa consolidação tomou corpo em 1791, com a aprovação das dez primeiras emendas. Diante da extrema dificuldade inerente ao processo de emendas, o poder constituinte reformador não se mostrou historicamente eficiente para atualização das normas constitucionais. Por isso, o judicial review se encarregou de compatibilizar o texto constitucional com as alterações históricas.

51 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a

(33)

Se a permanência da Constituição é ―ideia inspiradora do constitucionalismo

moderno,‖52 exigem-se procedimentos para que a Constituição se adapte como processo

público aos acontecimentos de sua época, sem detrimento do seu sentido.53 Uma Constituição

imutável estará fadada a uma morte anunciada. A previsão de instrumentos para reforma

constitucional funciona como garantia de longevidade constitucional.

Afinal, como sustenta G. JELLINEK, a Constituição, assim como as leis em geral,

expressa um dever ser cuja transformação em ser nunca se consegue plenamente, porque a

vida real produz sempre fatos que não correspondem à imagem racional desenhada pelo

constituinte. O lado irracional da realidade não significa somente uma discordância entre a

norma e a vida e muitas vezes se resolve contra a norma. A Constituição se estabelece como

norma fundamental no curso dos acontecimentos históricos.54

Justificando a necessidade da mudança constitucional como imperativo de

sobrevivência, as lições de José AFONSO DA SILVA:

A estabilidade das constituições não deve ser absoluta, não pode significar imutabilidade. Não há constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois não é ela apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo, também de progresso social. Deve-se assegurar certa estabilidade constitucional, certa permanência e durabilidade das instituições, mas sem prejuízo da constante, tanto quanto possível, perfeita adaptação das constituições às exigências do progresso, da evolução e do bem-estar social. A rigidez relativa constitui técnica capaz de atender a ambas as exigências, permitindo emendas, reformas e revisões, para adaptar as normas constitucionais às novas necessidades sociais, mas impondo processo

52 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey,

2002. p. 97.

53 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. 1a reimpressão. Mexico: Instituto de

Investigaciones Jurídicas, 2003. p. 3.

54 JELLINEK, G. Reforma y mutacion de la Constitucion. Madrid: Centro de Estudios

(34)

especial e mais difícil para essas modificações formais, que o admitido para a alteração da legislação ordinária.55

Como salienta Konrad HESSE, a Constituição transita entre a polaridade de dois

elementos: a permanência e a mobilidade. A abertura e amplitude da Constituição permitem

responder às mudanças históricas, assim como à diversidade das situações vitais e, ao mesmo

tempo, suas disposições vinculantes gozam de uma virtude estabilizadora, capaz de preservar

a vida da comunidade da dissolução de uma mudança contínua, inabarcável e incontrolável. O

persistente não pode converter-se num obstáculo em que o movimento e o progresso se

impõem, do contrário a mudança ocorrerá à margem da ordem jurídica. Ao mesmo tempo, a

mudança não pode eliminar a virtude estabilizadora das disposições vinculantes, sob pena de

restarem incumpridas as normas constitucionais e a ordem fundamental da comunidade.56

Os mecanismos de alteração constitucional devem conciliar os elementos do

progresso e da estabilidade. Atuar como uma válvula de segurança, para, de um lado, evitar

que a Constituição seja alterada ao sabor dos ventos, resguardando-a dos humores partidários

e, de outro, não impedir que a dificuldade para reforma seja tão intensa que a força necessária

para a sua realização seja suficiente para destruir toda ordem constituída.

―As melhores constituições não são as mais bem pensadas e mais bem escritas, mas as que mais exactamente correspondam à feição de um povo, demonstrada por uma longa e sincera experiência colectiva.‖57

55 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo:

Malheiros, 2002. p. 42. No mesmo sentido, Anna Cândida da CUNHA FERRAZ: "Estabilidade, todavia, não significa imutabilidade. Bem ao contrário. A eficácia das Constituições repousa, justamente na sua capacidade de enquadrar ou fixar, na ordem constitucional, as vontades e instituições menores que a sustentam. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 5.

56 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional: selección. Madrid: Centro de

Estudios Constitucionales, 1983. p. 24.

57 CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e de direito constitucional. Tomo

(35)

Desde a perspectiva da realização do Direito Constitucional, Constituição e

realidade devem andar de mãos dadas.

1.5 RIGIDEZ E FLEXIBILIDADE CONSTITUCIONAL

A dificuldade da modificação do texto da Constituição será maior ou menor

conforme se trate de uma Constituição flexível ou de uma Constituição rígida. Enquanto na

primeira o processo de alteração do texto é igual ao de alteração das leis, na segunda exige-se

um processo mais dificultoso para sua modificação. Esta classificação é devida a James

BRYCE58 e toma por critério de distinção exclusivamente o processo de alteração formal (do

texto) da Constituição.

Aparentemente poder-se-ia deduzir que as Constituições flexíveis seriam menos

estáveis do que as rígidas, em virtude da maior facilidade do processo de alteração do seu

texto. Todavia, isto não ocorre no plano da realidade. Como sustenta Nelson de SOUSA

SAMPAIO, na seara sociológica ou da realidade, uma constituição flexível pode ser de mais

difícil ou lenta reforma do que outra classificada como rígida. A maior ou menor estabilidade

das constituições vai além das dificuldades jurídicas para sua alteração: "uma sociedade

tradicionalista, de esclarecido tato político e senso da medida, prescindirá dos freios jurídicos

para a reforma constitucional, porque estes serão compensados pela existência de outros

elementos estabilizadores. Num povo sem tais virtudes, há, porém, necessidade de mecanismo

mais complexo para a reforma constitucional."59

58 BRYCE, James. Constituciones flexibles y constituciones rígidas. 2. ed. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1962. p. 48.

(36)

A rigidez constitucional decorre da distinção entre o poder constituinte (originário

ou derivado) e os poderes constituídos. Ela permite a ―discriminação entre as do Constituinte

e do Legislador.‖60 A aceitação dessa premissa levou à necessidade de se instituir uma

distinção entre as normas constitucionais e a legislação ordinária. Nessa senda, as lições de

Hans KELSEN:

A estrutura hierárquica da ordem jurídica de um Estado é, grosso modo, a seguinte: pressupondo-se a norma fundamental, a constituição é o nível mais alto dentro do Direito nacional. A constituição aqui é compreendida não num sentido formal, mas material. A constituição no sentido formal é certo documento solene, um conjunto de normas jurídicas que pode ser modificado apenas com a observância de prescrições especiais cujo propósito é tornar mais difícil a modificação dessas normas. A constituição no sentido material consiste nas regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais, em particular a criação de estatutos. [...] Por causa da constituição material existe uma forma especial para as leis constitucionais ou uma forma constitucional. Se existe uma forma constitucional, então as leis constitucionais devem ser distinguidas das leis ordinárias. A diferença consiste em que a criação, isto é, decretação, emenda, revogação, de leis constitucionais, é mais difícil que a de leis ordinárias.61

De outro lado, em razão da rigidez, constitui-se uma relação de hierarquia

(fundamentação/derivação) necessária entre Constituição e leis. A supremacia formal da

Constituição depende da rigidez. Se a Constituição é o fundamento de validade de todos os

demais atos do Estado, o Poder Legislativo não pode ter acesso à alteração das normas

constitucionais. Da rigidez, decorre a ideia de um poder constituinte derivado responsável pela

reforma constitucional por um meio de processo oneroso e distinto do processo de alteração

das leis.

Entretanto, ainda que a supremacia formal da Constituição seja corolário da teoria

do poder constituinte, as primeiras Constituições europeias, embora rígidas, não detinham

60 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 32.

61 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,

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