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“Por me ter forrado de positivismo é que acaso escapei à ‘crise’ a que outros contemporâneos não puderam escapar”. (AMADO, 1958a, p. 113). A crise a que Gilberto Amado se refere diz respeito à leitura de Friedrich Nietzsche, segundo o autor, “tônico vivificante do espírito, droga poderosa que aguça a vista, faz ouvir mais quebra os limites da vida neutra e nos transporta a um plano que o impossível se torna possível. (AMADO, 1958, p. 113).

O jovem Amado teria comprado os livros que vieram. O conhecimento teria ganhado um novo olhar “um banho diferente que depurou muita coisa e fez ressaltarem outras.” A Grécia deixou de sorrir num equilíbrio de linhas harmoniosas, sendo bem diferente da civilização que os manuais helenizantes haviam mostrado. O bem e o mal passam a ser vistos numa nova perspectiva no quadro dos valores humanos (AMADO 1958a, p. 108).

Os jornais do Recife, à época, testemunharam o impacto que Nietzsche exerceu sobre a geração de Gilberto Amado. Em artigo para o Correio do Recife, de 20 de junho de 1907, um autor de pseudônimo Chilon constata e crítica ferozmente o fascínio que o filósofo alemão exerceu sobre os rapazes de sua época:

Nietzsche formou em seu torno uma multidão de admiradores que são realmente interpretes dos desvarios do philosopho. (...) Estas almas que vibram ao contacto de suas ideias, procurando vêr atravez da nebulosa irreductivel formada pelos conceitos de Nietzsche, verdades de grande alcance, são casos para um demorado estudo de psychiatria.22

Chilon evoca Max Nordau para chamar Nietzsche e seus adeptos, em especial Amado, de loucos e histéricos. A partir de então trava um intenso debate com o jovem Gilberto, marcado por troca de acusações e até mesmo de insultos bizarros. Gilberto Amado chega a chamar Chilon, cujo nome era Jeronymo Rangel Moreira de “Jeronymo das Orelhas.”23 O debate travado pelos dois autores é carregado por uma discussão densa que indicam as preocupações conceituais da época. Temas como estabilidade social, histeria, degenerescência, moral, anarquismo, individualismo. Nietzsche chega a ser categorizado como individualista. O conceito de super-homem seria, segundo Chilon, a negação completa das lei sociais, “é o ser humano isolado do círculo do seu egoísmo, sem a compreensão da sociedade que será banida sem a necessidade de lei que serão apenas as que lhe regem o funcionamento exclusivo do seu eu”.24 Os autores seguem em discussões ardorosas, nas quais

se acusam de plágios e de leitores superficiais, “provenientes de catálogos bem organizados.”25 Os conceitos se misturam e a filosofia de Nietzsche é, de fato, pouco debatida

por Amado e Jerônymo Rangel. Os autores acabam restringindo o filósofo alemão a categorizações que pouco tem a ver com seu pensamento: anarquismo, individualismo, niilismo.

A discussão entre Gilberto Amado e o Correio do Recife não se esgotaria em 1907. Em matéria de primeira página do jornal em 3 de agosto de 1908, intitulada O filante Gilberto

Amado. Um artigo sobre Vianna da Motta filado pelo Gilberto Amado do Diário de Pernambuco, o Correio do Recife acusa Amado de plágio. Amado teria copiado trechos de

um texto de Jaime Batalha Reis sobre a música de Vianna da Motta que foi publicado no

Diário de Notícias de Lisboa e no Diário de São Paulo em 5 de julho de 1908. São apontados

no artigo trechos que jovem Amado teria copiado do autor português:

Disse o Gilberto Amado:

Aos motivos technicos juntam-se os motivos de interpretação e, nas narrações musicais é importante o verdadeiro valor descritivo de cada incidente.

Está realmente bem feito o período, mas o de Jayme Batalha Reys é perfeitamente igual. Publicou Jayme Batalha Reys:

Aos porquês technicos acresceu, desde então, a consideração dos “porquês” de interpretação e, nas narrações, musicaes cada incidente adquirido o seu verdadeiro valor descriptivo.26

23 Diário de Pernambuco- Recife, 23 de junho de 1907, p. 1 24 Correio do Recife, Pernambuco, 23 de junho de 1907, p.1. 25 Correio do Recife, Pernambuco, 21 de junho de 1907, p. 1. 26 Correio do Recife, Pernambuco, 3 de agosto de 1908, p. 1.

A acusação a Amado perdura por três dias em matéria de destaque na primeira página do jornal. Amado é acusado de gatuno, filante, degenerado. A matéria de 4 de agosto, de 1908 chega a mencionar o sucesso da tiragem do dia anterior: “de toda tiragem ficamos apenas com cinco números da coleção.”27 E repete os trechos copiados por Amado. Segundo a matéria,

nas ruas do Recife, o sucesso do artigo do Correio era total:

Nos bondes, nos cafés, nas esquinas e até nas casas de distinctas famílias foi assumpto obrigado das conversas o artigo formidável do CORREIO DO RECIFE.

O nome do gatuno andava de bôca entre os risos de chacotas de uns e as palavras de conhecimento de outros (...)

No “Ruy”, a rapazeada entre gaitados valentes, commentava o facto, dando um tom delicioso da pandenga.

Alguns moços festejavam o acontecimento á cerveja.28

O escárnio a que o Correio do Recife submete Amado deve-se, dentre outras razões, ao fato de que Amado se arvorar como mentor das letras, filósofo, poeta, crítico musical, jornalista “e o mais que sua arrogância empavezada concebe”. Segundo a matéria, Amado se apresentava como um espírito raríssimo.

E assim Gilberto Amado prega filosofia, faz estudos sociaes, critica livros e autores, analysa versos e publica estudos musicaes sobre a personalidade de artistas de reputação universal.

O Diário já disse que o Gilberto era uma das maiores celecbrações da atual geração acadêmica e com isso augmentou no cerebro do seu redactor a quantidade de arrogância com que elle se apresenta ao público, quer vestindo o seu bem talhado paliot a Ganyinedes quer publicando os seus suporiferos artigos á La Palise.29

Em 6 de agosto de 1908, o ataque a Gilberto Amado continua. Iniciando o texto de primeira página uma chacota em versos de Sylvio Murat:

Oh! Profundo Gilberto! Oh glória de Sergipe! Como foi tudo aquilo? Onde foi que encontraste

o artigo que tu lestes, o artigo que furtaste como no hotel se furta o melhor acepipe?

Vamos eu brindo a ti! Hurrah! Hip! Hip! Hip! Hip! E viva teu talento agora que mostraste!

Podes certificar de que os louros ganhaste

Como um cavalo bom que de que vae de equipe a equipe!

27 Correio do Recife, Pernambuco, 4 de agosto de 1908, p. 1 28 Idem, p. 1.

Mas não faça assim teu cerebro se esgota, Toma o meu parecer, Gilberto, e toma nota: é bom não trabalhar assim como trabalhas Depois és obrigado a novos roubalheiros Idéas mil furtando e furtando os inteiros

Phrases de Jayme Reis, dos Reis e das batalhas30.

Não seria a primeira vez que Amado seria massacrado pelos jornais nem apontando como degenerado. Como já foi dito em outra oportunidade, acerca de sua vivência no Rio de Janeiro: Gilberto Amado repudiava grande parte dos escritores daquele início de século e exibia opiniões que eram intoleráveis a muitos. (CAVALCANTE, 2009). O próprio autor constata o que ele chama de falta de savoire-faire.

Minha falta de savoir-faire era total. Dei rata sôbre rata. Incapaz de negociar meu julgamento na Bôlsa do elogio mútuo magoei a quem não queria magoar. Caminhava no plano do absoluto, exagerado e cego, não via os perigos a que me expunha, os despenhadeiros que me debruçava. Na minha falta absoluta de cabotismo – não me sentia bem com a comédia que muitos dos literatos representavam, chamando-se ‘irmãos’, beijando-se na face, abraçando-se entre lágrimas (AMADO, 1956, p. 49).

Sobre o caso do plágio em Recife, Amado dedica um pequeno espaço após a sua crônica de 4 de agosto de 1908 para o Diário de Pernambuco, afirmando que não leu Batalha Reis e “não sendo músico tinha que ler algo em alguma parte”. Segundo o autor, as noções que escreveu eram patrimônio universal. Amado também contra-ataca os redatores do

Correio, chamando-os de animais que, na semana anterior, repetiram um artigo de sua autoria.

Quarenta e sete anos depois, Amado volta aos arquivos do Diário de Pernambuco para escrever Minha Formação no Recife. Confessa experimentar “sentimentos diversos, ora de vergonha, ora encabulamento, ora de surpresa em presença de achados, anotações, reflexões e felicidades de expressão.” (AMADO, 1958a, p. 144). E afirma: “Ninguém foi mais do que eu em Pernambuco nesse tempo.” (Idem, p. 152)

Como se vê, o pedantismo não abandonou Gilberto Amado. O autor se constrói, em sua narrativa, enquanto personificação do que seria um espírito ilustrado necessário a nação brasileira. Um sujeito de saber que fala em primeira pessoa advogando o imperativo da razão e da verdade. Obviamente, a chacota de que foi alvo no Recife é silenciada em seus escritos

memorialísticos. Amado recorta imagens, discursos, palavras. Veste sua máscara de intelectual dotado de razão e idealiza um projeto em que o Brasil tenha a sua cara.

A memorialística de Amado é uma reivindicação de si, uma luta contra as diversos ataques que sofreu, contra o seu ostracismo, em favor de fundamentos racionalistas que o autor não quer ver se esvair no tempo, uma vez que o desaparecimento de tais fundamentos seria também um desaparecimento de si. É uma luta arrogante assim como é a razão que o fundamenta. Luta em que suas armas são as palavras. Logo elas que não possuem essência alguma. Logos elas que podem se transfigurar, sofrem, a todo momento, sob os punhos de Amado a pressão para se calcificar e calcificar a “ossatura da nação e suas vértebras.” (AMADO, 1958 a, p. 270)

Discussões, como as de Amado e os redatores do Correio do Recife, eram constantes na imprensa pernambucana. A preocupação da imprensa, nessa época, não se restringia à informação pura e simplesmente, mas tendia à interpretação do fato, algo inclusive reivindicado pelo mestre da Escola do Recife, Tobias Barreto, para o qual o jornal teria como função a “evangelização da verdade”: “Fora bom que o apparecimento de um jornal sempre tivesse por fim a evangelisação de uma ideia... uma ideia! – é muito vago - digamos antes, a evangelisação de uma verdade.” (Apud. ATAÍDE e SÁ, 2015, p. 12)

As ideias divulgadas nos jornais não constituíam uma atividade secundária na trajetória intelectual dos mestres da Escola do Recife. Os periódicos funcionaram como fonte fundamental de defesa da visão de mundo daqueles homens. Os bacharéis tinham o papel de divulgar as ciências sociais e de atuar como formadores de opiniões. Segundo Gilberto Amado (1958a, p. 143), os alunos das Faculdade de Direito do Recife seguiam essa lógica, “aspiravam a fama de filósofos, continuadores de Tobias Barreto.”

Além disso, segundo Roberto Ventura (1991, p. 144), a polêmica nos jornais era uma constante no Brasil desde o século XIX. Os intelectuais se digladiavam por meio de críticas e questionamentos acerca das origens das raças, o conhecimento de línguas estrangeiras, minúcias gramaticais até desembocarem em críticas de caráter personalista. “Das ameaças e xingamentos, os adversários chegavam a processos de difamação nos tribunais e mesmo ao suicídio, recurso extremo em defesa da honra ultrajada.” De acordo com Ramos (2011, p. 333), a polêmica está na própria raiz do pensamento iluminista. Era prerrogativa do métier intelectual, “criadora e criatura da escrita.”

O escárnio a que Amado foi submetido pelo Correio do Recife também pode ser interpretado como uma tentativa de apuração de uma verdade sobre Amado. A imprensa, nessa perspectiva, também estava imbuída do objetivo de se desvendar e apurar verdades. No

entanto, mesmo que os intelectuais estivessem envolvidos nos debates sobre as verdades científicas acerca dos fatos abordados, permeava ainda na imprensa brasileira certa preocupação com as questões de honra e valentia, a coragem. Esse código de honra se sobressaia no Brasil devido à relativa inoperância dos aparelhos de polícia e de justiça.

O debate na imprensa pernambucana dá indícios de uma efervescente discussão de ideias nos jornais do Recife de início do século XX, algumas dessas ideias acabaram sendo deturpadas à luz do debate científico, como vimos com as categorizações que a filosofia de Nietzsche foi submetida, sendo denominada de individualista, anarquista, niilista. As grades conceituais a que estavam agarrados esses autores, presos ao cientificismo, não permitiram que autores como Gilberto Amado explorassem outras leituras possíveis, como é o caso da filosofia nietzschiana. Tais ideias parecem não encontrarem espaços em mentes e corpos forrados de positivismo. Prossigamos nosso percurso sobre o itinerário de formação de Gilberto Amado e continuamos com nossa pergunta: existiu na trajetória intelectual de Gilberto Amado a possibilidade de gestação de um outro Gilberto Amado? Passamos agora às suas leituras de Kant e Nietzsche.