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3 A RATIO DECIDENDI COMO ELEMENTO ESSENCIAL À FORMAÇÃO DE

3.2 APLICAÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL COMO FORMA DE DAR-LHE VALIDADE E SEGURANÇA

3.2.1 A INAPLICABILIDADE DO STARE DECISIS E SEUS EFEITOS NA J URISDIÇÃO

INTERNACIONAL

Em linhas gerais, ao tratar-se de precedente é necessário fazer remissão ao conceito de stare decisis que, conforme explica Hussain (1969, p. 6), diz respeito à vinculação que um precedente terá perante os julgadores do futuro. Ora, se a existência de precedentes serve ao aumento da segurança jurídica, por assegurar maior previsibilidade às decisões de similares contextos fáticos, nada mais claro do que a essencialidade de estabelecer o que é ou não vinculante. Daí se extrai o conceito de stare decisis.

Não obstante essa já citada importância, o presente trabalho não se debruçará sobre os elementos que indicam um precedente ser ou não obrigatório, visto estar esse questionamento distante de seu escopo. Insta saber, nessa toada, se no Direito Internacional o stare decisis tem alguma aplicação, ou seja, se é possível tratar de vinculação de decisões internacionais pelas que lhe precederam.

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A resposta a esse questionamento específico não tem grandes nuances e, adiante-se, é negativa. O Direito Internacional não comporta a vinculatividade de um sistema de precedentes como o sistema interno dos países, tal qual ensina Marques (2014, p. 59). Esta afirmativa se extrai dos arts. 38 e 59 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça13, sendo este o Tribunal Internacional no qual os demais tendem a se espelhar, como já explicado em tópicos anteriores.

Assim, às Cortes Internacionais não seria dada à possibilidade de constituição de precedentes, no sentido de vinculação de decisões posteriores faticamente semelhantes.

Isso parece, contudo, um tanto quanto estranho, especialmente considerando a importância da Jurisdição Internacional no que tange à solução de controvérsias que envolvem, primordialmente, Estados e cuja essencialidade de previsibilidade parece cristalina.

Assim, embora não haja efetivamente a aplicação do stare decisis nas Cortes internacionais, Mello (2002, p. 316) analisou que a Jurisdição Internacional tende, relativamente, a normatizar em suas decisões, indicando a possibilidade de utilização, em casos posteriores, dessas normas criadas concretamente – e, por óbvio, sua fundamentação.

Tanto é assim que Brownlie (1997, p. 33) constata que, embora haja realmente a preocupação de não vinculação dos casos posteriores – que envolvem Estados distintos e casos distintos e cuja obrigatoriedade potencialmente feriria a soberania estatal –, a Corte Internacional de Justiça tem uma visão não tão restritiva da inaplicabilidade do stare decisis.

Isso não quer dizer, por óbvio, que as previsões dos arts. 38 e 59 do Estatuto sejam inócuas ou desimportantes. Realmente não há um sistema de precedentes obrigatórios no Direito Internacional, como as regras estabelecem. Todavia, é comum a menção a decisões prévias, sua fundamentação e dispositivo

13 Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça: “1. The Court, whose function is to decide in accordance with international law such disputes as are submitted to it, shall apply: a. international conventions, whether general or particular, establishing rules expressly recognized by the contesting states; b. international custom, as evidence of a general practice accepted as law; c. the general principles of law recognized by civilized nations; d. subject to the provisions of Article 59, judicial decisions and the teachings of the most highly qualified publicists of the various nations, as subsidiary means for the determination of rules of law. 2. This provision shall not prejudice the power of the Court to decide a case ex aequo et bono, if the parties agree thereto.”

Artigo 59 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça: “The decision of the Court has no binding force except between the parties and in respect of that particular case.”

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(MARQUES, 2014, p. 59), o que demonstra preocupação da Corte Internacional de Justiça quanto à estabilidade de sua “jurisprudência”, no sentido não restritivo da palavra.

Claro que essa preocupação é indispensável, tendo em vista o desejo de manutenção, por este Tribunal, de seu prestígio e força no cenário internacional. Caso as decisões fossem eivadas de contradições entre si, para casos de similitude óbvia, a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória – à qual poucos países se filiam – teria um número de adeptos ainda menor, fato que reduziria o objetivo da Corte a cinzas.

Nesse contexto, insta analisar se o exame feito no subtópico anterior, relativo à necessidade de ressignificação do conceito da ratio decidendi, tem alguma importância à jurisdição internacional e, em caso positivo, se a mesma lógica pode ser-lhe aplicada, considerando a diferença de tratamento do stare decisis.

Inicialmente, note-se o reconhecimento pela doutrina da essencialidade de a Jurisdição Internacional ser coesa, sem correntes quebras de expectativa. É por tal razão que Brownlie (1997, p. 33) diz que a Corte Internacional de Justiça, conquanto não adote o sistema de precedentes, tem uma “consistência judicial” em suas decisões, frisando, outrossim, que para questões processuais a “técnica do precedente” é bem aceita.

Já Mocayo, Vinuesa e Gutiérrez Posse (1990, p. 153) explicam o caráter efetivamente instrumental da referência, em decisões posteriores, daquelas que as antecederam, afirmando que esse ato não implica que a Corte seria a criadora da norma aplicada, mas que essa alusão auxiliaria na identificação da existência de normas jurídicas de cunho internacional.

A partir dessas constatações, percebe-se de imediato a impossibilidade de desconsiderar o precedente no cenário internacional. Embora não sejam tomados de vinculação e, portanto, divirjam da noção comumente atribuída aos precedentes, o mesmo ímpeto de previsibilidade e coerência se exige do Direito Internacional, motivo pelo qual as Cortes não abandonam as referências às decisões anteriores nem deixam de utilizá-las como norte.

A ratio decidendi, dessa feita, continua a ser importante, posto ser impossível ao julgador internacional, nessa busca pela manutenção de entendimentos, pautar-se unicamente no dispositivo das decisões internacionais sem analisar que fundamentação o embasou.

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No que tange à forma de aferição da existência ou não de uma ratio que geraria um precedente, continua-se a defender a maneira mais correlata ao interesse de manutenção de coesão do direito, que rechaça o modelo anterior. Não é necessário, portanto, que tenha havido uma maioria simples de julgadores com mesmo fundamento para que este instrumento seja utilizado, como já explicado em tópicos anteriores.

Essa lógica fica ainda mais clara no contexto do Direito Internacional e das decisões emitidas em suas Cortes. Isso porque a exigência de um número fixo – imposição atrelada ao critério da maioria quantitativa – de julgadores com mesma fundamentação dificultaria, por demais, a utilização da lógica dos precedentes, especialmente num sistema no qual eles são despidos de vinculação.

Esperar que, para poder fazer menção a um caso anterior de substrato fático similar, os magistrados tenham que se assegurar que a maioria simples daquele tribunal concordou com uma só fundamentação é situação de difícil concretização. Naquele caso concreto, o juiz terá de ver se o fundamento normativo que ele deseja aplicar é compatível com o efetivamente utilizado na decisão anterior, tenha sido num número igual, superior ou inferior ao da maioria quantitativa.

Como se defende a desnecessidade de um número fixo majoritário para extrair uma ratio decidendi, é mais simples ao magistrado do caso futuro buscá-la nos casos anteriores caso menos critérios sejam utilizados para sua existência. Assim, a doutrina dos precedentes, mesmo sem a conotação obrigatória que lhe é comum, pode e deve se perpetrar no Direito Internacional, sob o mesmo motivo do Direito Interno: a previsibilidade e coesão das decisões.