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ARTIGO 2 – ANÁLISE EXPANDIDA DO DESEMPENHO DOS BUROCRATAS DE

5.2. Perspectiva individual

5.2.1. Incentivos

A investigação dos incentivos foi realizada a partir das variáveis incentivos intrínsecos e incentivos extrínsecos. Os tipos de incentivos foram selecionados a partir de estudos empíricos já realizados, como o de Klein e Mascarenhas (2016) e Reis Neto (2006).

Não estava previsto no marco legal do Programa e nem no processo de execução nas instituições mecanismos de controle e coordenação, como metas de desempenho e indicadores de produtividade, evidenciado na perspectiva estrutural e nem incentivos e sanções, mecanismos necessários para alinhar os comportamentos individuais com os interesses institucionais (CLINE, 2000). Segundo essa lógica da ação individual-racional, coerente com a Teoria da Escolha Racional e com a Teoria da Agência, o indivíduo tende naturalmente a tomar decisões alinhadas com seus interesses pessoais, frequentemente desviantes dos objetivos organizacionais (BONELLI et al., 2019). A inexistência desses mecanismos sobre os burocratas de nível de rua na implementação do PAA-CI pode estar relacionada à inexistência de mecanismos para medir o desempenho e estabelecer recompensas e penalidades no nível organizacional e também pela inexperiência dos escalões superiores com o dia a dia da implementação do Programa e, assim, ao desconhecerem as demandas reais da população alvo, não teriam como orientar decisões e ações (FERREIRA; MEDEIROS, 2016), conforme afirmação de um dos informantes “Agora, que todos esses fatores contribuíram [para a descontinuidade] pela falta de alguém realmente mais a frente, a falta de punição e cobrança dos órgãos superiores, isso tudo contribuiu para que não tenha acontecido.” (UFV 9).

96 Não observamos nos dados da pesquisa evidência de sistemas estruturados de avaliação individual do trabalho dos implementadores, o que implica em menos influência do sistema de gestão sobre as ações desses implementadores. Logicamente um sistema de avaliação no qual os implementadores pudessem participar ativamente e ter feedbacks poderia ser útil para um melhor desempenho organizacional que pode ter como consequência um melhor desempenho dos objetivos da implementação da política. A não existência desses instrumentos de controle implica no enfraquecimento da accountability pública, principalmente, quando consideramos o exercício da discricionariedade pelos implementadores, sem que haja instrumentos adequados de gestão.

Ao tratar dos possíveis conflitos entre objetivos dos implementadores de linha de frente e os objetivos organizacionais, Lipsky (2019) evidencia a importância do compartilhamento dos mesmos objetivos entre os profissionais dos níveis operacionais e seus superiores de modo a incentivá-los a desenvolver suas atividades para alcançar os objetivos da organização e da política. O desencontro de interesses entre a organização, representada pelos gerentes ou gestores, e o burocrata de nível de rua pode ter implicações para o desempenho da política (MEYERS; VORSANGER, 2010). Neste sentido, o desafio da gerência passa a ser como melhorar a satisfação no trabalho, mantendo a produtividade (LIPSKY, 2019). Concluímos que a existência de resistência dos burocratas em realizar a compra da agricultura familiar, como apontado nas falas abaixo, somada à inexistência de mecanismos de controle e coordenação contribuiu para a descontinuidade da política pública, como observado na UFV. Desta forma, o estabelecimento de metas de desempenho, o treinamento e conscientização desse grupo de atores são ações importantes para manter a satisfação no trabalho dos burocratas de nível de rua e o desempenho do Programa.

Só que a gente tinha tido tantos problemas e a resistência era tão grande das nutricionistas do restaurante, que era 5, que aí a gente ficou, como faz né? E elas questionavam o tempo todo “Não, não volta a comprar não. Era muito problema” (UFV 4).

Eu acho que o edital foi se inviabilizando por conta desses argumentos técnicos: de que seria muito difícil, que os agricultores não são organizados, precisávamos de um projeto de extensão que possibilite a organização, existem meios mais efetivos (UFV 5).

Receio de desabastecimento sim. A gente percebia isso mais mesmo no operacional nosso ou seja, DMT cuidou da parte burocrática. Nós da assessoria, a gente fazia a ponte entre a parte burocrática e o operacional. Então, assim, a grande preocupação das nutricionistas nossas era exatamente essa falta de padronização, que poderia gerar a questão do próprio desabastecimento (UFV 5).

97 As dificuldades de supervisionar, monitorar e avaliar o trabalho desses implementadores também é resultado do fato de grande parte da produção da burocracia de nível de rua assumir a forma de serviços intangíveis em interações diretas com o cidadão (LIPSKY, 2019; MEYERS; VORSANGER, 2010). Mesmo que a compra da agricultura familiar seja um bem tangível e não determinante do sucesso, vide a possível compra de atravessadores, aspectos como incentivo à diversificação, à organização coletiva, melhoria da qualidade de vida, valorização da categoria social, entre outros benefícios da política são de difícil mensuração e observação. Apesar de não ser tarefa simples, o estabelecimento de metas, monitoramento de resultados e recompensas de acordo com o desempenho tende a contribuir para realizar os objetivos organizacionais (BEHN, 1991).

Investigamos a influência de incentivos extrínsecos, como reputação, autonomia, satisfação no trabalho, reconhecimento por parte da organização, empoderamento/capacitação dos trabalhadores, relevância das atividades desempenhadas e sua compatibilidade a descrição do cargo.

Na satisfação do trabalho, observamos que, apesar de haver dificuldades no processo de implementação, a maioria dos burocratas das duas universidades se mostraram satisfeitos com o trabalho e ressaltaram o empenho e dedicação em contribuir para o papel social das instituições. As frases a seguir ilustram este pensamento “Eu acho que o próprio gestor, pregoeiro, a universidade se sente que está fazendo uma contribuição social mais relevante. O papel eu acho que está sendo cumprido” (UFRN 1), “Olha, eu acho que é um Programa que tem que ser incentivado cada vez mais. Que pela experiência que nós tivemos assim, do retorno, de quem nos atendeu foi muito positivo.” (UFV 2).

O empoderamento dos atores por meio de capacitações poderia influenciar positivamente a percepção de desempenho dos gestores. Conforme já apontado, não houve oferta de capacitações e treinamentos, comprometendo esta percepção. Observamos em algumas falas que houve reconhecimento pela administração superior das universidades do trabalho desenvolvido pelos gestores no Programa, entretanto, ocorreram em situações isoladas, não existia um reconhecimento amplo e institucional.

Apesar de os informantes ressaltarem o papel social da instituição na implementação e da relevância de ações como a capacitação e interação com os agricultores, as demais atividades desempenhadas eram consideradas burocráticas e rotineiras, compatíveis com os cargos e com as atividades que já desempenhavam e representam carga maior de trabalho. Por outro lado, apesar de representar atividades de

98 interesse dos professores participantes na comissão, as ações de extensão para capacitação dos agricultores não são previstas em suas funções e não havia suporte previsto nas universidades.

A compatibilidade entre as atividades burocráticas e rotineiras do Programa e as atividades já desempenhadas pelos autores está relacionada à própria racionalidade instrumental que prevalece nos procedimentos de compras no serviço público brasileiro, conforme observado nas falas dos informantes. A teoria aponta que comumente os usuários estão em situação desfavorável na relação de poder com os burocratas, e que, geralmente, esses beneficiários enfrentam forte pressão dos burocratas para se familiarizar com os procedimentos burocráticos, e segui-los (GODWIN; MARKHAM, 1996). Ao condicionar a participação dos agricultores aos processos e rotinas comumente praticados pelas instituições, haveria nessas interações uma “moldagem” ou “construção” do comportamento dos agricultores, já que o poder burocrático seria superior ao poder dos usuários.

Mas, assim, aparentemente, a gente não tinha esse impacto muito grande não. Tanto que nós procuramos na especificação tentar padronizar, mais ou menos, com o do CEASA para não ter muita dificuldade na linha de produção (UFV 2).

As discussões mais importantes eram “Quais são as normas internas para compra? E como que o edital, a gente tinha discussão sobre o novo edital, não poderia contrariar essas normas internas”. Essa era a discussão maior (UFV 5).

Outro incentivo extrínseco verificado foi a visibilidade que o trabalho com as compras do PAA poderia viabilizar. A fala de um dos informantes exemplifica a satisfação do trabalho e como o voluntarismo contribuía para aumentar a satisfação.

Aí, como eu achei que o trabalho ficou legal, eu chamei as meninas pra fazer como que fosse uma análise da diferença da participação do nutricionista no planejamento da chamada pública. Aí a gente selecionou, elaborou alguns indicadores da primeira chamada e da segunda e fez, ficou no formato de trabalho científico e mandamos para o concurso em 2018. E aí ganhamos o terceiro lugar viu. Eu percebi uma diferença grande (UFRN 7).

Os burocratas tinham autonomia para tomada de decisão, mas esta autonomia estava relacionada ao papel de cada setor envolvido em consonância com as práticas já estabelecidas e vigentes na instituição. Nas duas instituições as decisões sempre passavam pelas UANs que detinham o poder de definir os produtos demandados, pela Diretoria de Materiais que definia a forma de contratar e como se daria a seleção dos fornecedores. As chamadas públicas só eram publicadas após anuência dos setores jurídicos de cada instituição. Os informantes da UFV relataram reações contrárias do setor jurídico em substituir as licitações convencionais pela chamada pública.

99 Os dados sugerem que fatores como desempenho, recompensas e penalidades (MEYERS; VORSANGER, 2010) não determinam o comportamento dos burocratas nos casos estudados. Conforme sugere Ferreira (2016), isso se deve a inexistência de padrões de desempenho individual na implementação de políticas sociais, como o PAA-CI, e, consequentemente, não há como estabelecer recompensas e punições.

Para Lipsky (2019), as métricas de desempenho nos serviços sociais não são adequadas porque essas medidas são desenvolvidas, muitas vezes, para se transformarem em ferramentas de controle, mesmo que sejam inapropriadas e contraproducentes ao propósito. Defendemos parcialmente essa visão, uma vez que acreditamos que a utilização de métricas de performance direcionadas a atingir os propósitos da política são necessárias para garantir a continuidade de implementação e bom desempenho do Programa. Por outro lado, ressaltamos que a utilização de mecanismos genéricos de para medir resultados dos burocratas pode desvirtuar os objetivos da política e levar a compra de atravessadores com intuito de apenas cumprir a legislação. Essas preocupações foram recorrentes durante a coleta de dados, principalmente com o grupo de burocratas cujo preocupação recaia sobre os objetivos da política.

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