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4 INCLUSÃO SOCIAL URBANA EM SENTIDO ESTRITO

4.4 INCLUSÃO SOCIAL E SERVIÇO PÚBLICO: UMA RELAÇÃO INTRÍNSECA

Pela leitura do capítulo até este momento, nota-se que as condições de exclusão e de vulnerabilidade social estão intrinsecamente associadas à infraestrutura urbana básica e à oferta de serviços públicos. Sem dúvidas, o combate à pobreza passa por essa análise, em que o papel do Estado é central, seja como agente executor principal, seja como julgador e organizador em licitações para escolha de melhores parceiros no setor privado para execução de serviços de interesse necessários a coletividade.

Apesar de aparentemente envolver uma conceituação simples, a definição sobre serviços públicos é controversa na doutrina, variando de visões orgânicas a subjetivas. Porém, conforme alerta Celso Antônio Bandeira de Mello250, a idéia de serviço público necessariamente deve abraçar dois fatores: o primeiro diz respeito ao substrato material consistente na prestação de utilidade ou comodidade usufruída diretamente pelos administrados; e o segundo, o aspecto formal, que é a submissão ao regime jurídico de direito público, o que significa a sujeição a uma unidade normativa a qual privilegia a supremacia do interesse público e que envolve alguns princípios como generalidade, eficiência, modicidade, cortesia e continuidade.

Na prestação de serviço público é imprescindível a observância do princípio constitucional da legalidade, o qual aufere à Administração prerrogativas e limites distintos no exercício da atividade estatal, buscando sempre a salvaguarda dos interesses coletivos. Mas, o que envolve a idéia de interesse público? Essa questão é tão

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AFFONSO, Nazareno Stanislaus, BRITO, Juliana Machado e GRANADO, Clovis. Mobilidade Urbana e Inclusão Social. Brasília: MDT, 2010, p.9

250

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5 ed. São Paulo: Malheeiros, 1994, p.350)

importante que é nela que estão alicerçadas discussões envolvendo legalidade e discricionariedade nas decisões judiciais, envolvendo concretização dos direitos sociais, elaboração do orçamento público e carências coletivas na oferta e prestação de serviços básicos pelo Estado à população.

Assim, esclarece-se que o interesse público é considerado como conceito jurídico indeterminado, por ter em sua natureza um elevado grau de indeterminação e de complexidade e que envolve um aspecto econômico definido por metas de execução -, que objetivam assegurar o regular funcionamento da economia-, e de realização -, as quais envolvem proposta de desenvolvimento, de aplicação de recursos de maneira mais apropriada a garantir bem-estar e qualidade de vida para o povo251. Nota-se, portanto, que embora a titularidade do interesse público seja da sociedade, o papel de gestor é do Estado.

Desse modo, a discricionariedade administrativa na escolha das políticas públicas a serem implantadas ocorre através do interesse público, fundamentado no próprio poder de polícia estatal e na intervenção indireta na ordem econômica. O interesse público apresenta-se em graus diferentes de indeterminação252: quando aplicado como sinônimo de bem comum, de fim do Estado, a indeterminação apresenta- se em grau mais elevado. Essa indeterminação diminui gradativamente quando o princípio é considerado nos diferentes setores de atuação do Estado, como saúde, segurança, educação e transportes, cada qual com um interesse público delimitado pela Constituição Federal e demais legislações ordinárias. Em havendo interesses públicos conflitantes, deve ser realizada a devida ponderação253.

O limite na ponderação entre interesses públicos conflitantes apresenta-se muito tênue, em alguns casos, em relação a interesses privados e geralmente é neste ponto que o Poder Judiciário legitima suas decisões em casos concretos que,

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BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 132-133.

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Aqui é importante frisar as considerações de Eros Grau ao explicar que o problema de indeterminação não está no conceito, mas sim na linguagem, por isso o correto seria mencionar termos indeterminados de conceitos e não de conceitos indeterminados. (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p.146).

253

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; RIBEIRO, Carlos Vinícios Alves (coor.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 98.

aparentemente, envolviam apenas escolhas, discricionariedade administrativa, mas, entretanto, com um olhar mais atento acusam a preponderância de interesses privados sobre o público ou que simplesmente ferem o bom senso de aplicação orçamentária por privilegiar setores dispensáveis – como publicidade – em detrimento à prestação de serviços essenciais – como assistência à saúde.

Partindo-se do princípio da legalidade, depreende-se que a discricionariedade está vinculada: à ausência de norma específica; a previsão legal de mais de uma possibilidade de atuação estatal e às normas por preceitos obscuros; ou nos casos em que a lei emprega conceitos jurídicos indeterminados. Em todas essas hipóteses, observa-se que há “uma prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, dentre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e

oportunidade para o interesse público” 254

.

Porém, é necessário ir além e observar a discricionariedade da atuação estatal com um pouco mais de profundidade sob o enfoque dos valores constitucionais. Assim, questão importante a ser mencionada é que não há mais como se falar discricionariedade como espaço livre de decisão do administrador, em decorrência de que todas as decisões e atos da Administração pública precisam estar vinculados à Constituição Federal.

Deve-se, na verdade, perceber graus diferentes de vinculação, que permitem maior ou menor controle jurisdicional, com relação às decisões e a procedimentos adotados pela Administração. Porém, diga-se que essa é uma interpretação que pode ser construída desde Kelsen255, o qual já defendia que toda e qualquer atuação estatal deve ser justificada dentro do sistema jurídico, como um poder emanado da norma legal. Assim, o princípio da legalidade determina que cada uma das ações administrativas seja condicionada por uma lei. Deste modo, a discricionariedade tem que ser vista como poder jurídico, limitado e, portanto, não-livre.256

Ora, os valores constitucionais aspiram bem-estar e justiça social e é por isso que na execução e no gerenciamento da atuação de prestados de serviço público deve

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.18 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.42.

255

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.324.

256

PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constitução de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 27

ser dada primazia às decisões que melhor aproveitem a população. Sem dúvidas, para isso é importante uma reflexão sobre a relação entre Estado, sociedade e iniciativa privada, bem como sobre o poder que cada um desses atores exerce nas decisões envolvendo aplicação de recursos públicos, o que será aprofundado em capítulos subseqüentes desse trabalho.

Essa vinculação é percebida de forma tão íntima pela Carta Política brasileira, que a par do título Da Administração pública, o trato sobre execução de serviços públicos ocorreu no título Da Ordem Econômica. Assim, importa salientar que o artigo 175 da Constituição Federal257 incumbiu ao Poder Público a execução de serviços públicos diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, através de procedimento licitatório.

Os recursos públicos, insuficientes ao atendimento de todas as demandas sociais, levaram o Estado a transforma-se de executor em regulador. E este processo se deu através do processo de destatização, ocorrida, no Brasil, durante a década de 1990, reduzindo a intervenção direta e privilegiando o modo indireto de intervenção. Sem dúvidas, essa uma conseqüência da globalização, que segundo o cientista português Vital Moreira258 trouxe a Administração Pública a reprivatização e a reliberalização dos mercados de forma sucessiva e com isso conjugou a regulação pública e autorregulação profissional, nos mecanismos de regulação econômica. E aqui é válido ressaltar que a delegação de serviço público não se confunde com privatização. Esta além de transferir a atividade para iniciativa privada, como ocorre na delegação, há a transferência da própria empresa259.

Na realidade brasileira notou-se que, ao passo que no decurso do século XX houve a estatização e o nascimento de grandes empresas estatais, a partir de 1986 e mais notadamente na década de 1990, ocorreu movimento inverso. Empresas estatais de telecomunicações e de fornecimento de energia elétrica, por exemplo, foram

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BRASIL, CF/88, Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.Parágrafo único. A lei disporá sobre:I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;II - os direitos dos usuários;III - política tarifária;V - a obrigação de manter serviço adequado.

258

MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e Administração Pública. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p.19 e 21.

259

MUKAI, Toshio. Concessões, permissões e privatizações no setor público. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.90.

privatizadas, em busca da eficiência econômica, redução de gastos públicos e pelos anseios de alcance de investimento e universalização do acesso ao serviço, trazendo repercussões à inclusão social e obrigando um maior controle do Estado, para que a iniciativa privada mantivesse tarifas módicas e inclusivas às populações marginalizadas. Esse complexo processo é tratado por Di Pietro260. A autora explica que as

privatizações refletiram um processo de transformação de um Estado “monoclasse” para um “pluriclasse”, significando a necessidade de satisfazer demandas crescentes,

apresentadas ao Estado em nível econômico e social, não só pelas classes privilegiadas, mas por vários setores da sociedade civil. Como resultado, o Direito passou a ser percebido como instrumento da atuação estatal, havendo diminuição das barreiras entre o setor público e os demais setores sociais, consubstanciando-se estes em uma sociedade pluralista, representada por vários segmentos.

Além disso, no início do século XXI, verificou-se a ocorrência da própria expansão de infraestrutura urbana e econômico e social. Segundo o Banco Mundial261, em países em desenvolvimento, serviços de oferta de água, de saneamento, de eletricidade, de telecomunicações contribuem para o aumento da produtividade em âmbito individual e coletivo de forma significante, atingindo particularmente mulheres, que passam a ter a possibilidade de investir e exercer alguma atividade rentável em seus próprios lares e das crianças, as quais passam a ter acesso a melhores condições de qualidade de vida, propiciados pela higiene e pelo aumento da renda familiar.

Dessa perspectiva corroboram-se mais uma vez a conexão entre a proposta de enfrentamento da pobreza, de inclusão social e o desenvolvimento econômico, ou seja, a relação íntima entre as ordens social e a econômica, entre prestação de serviço público e concretização de direitos sociais para sociedade. Essa relação, bem como a transformação do Estado Executor, para o Estado Regulador será aprofundada a seguir.

4.5. INSTRUMENTOS REGULATÓRIOS DO MERCADO PARA INCLUSÃO