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CAPÍTULO 2: Formas do educar-se nas organizações das classes trabalhadoras

2.4 Indícios de práticas democráticas

Apesar dos limites acima expostos à participação nas associações, elas representaram muito

representante. A Casa dos Marceneiros e dos Carpinteiros proibia os sentimentos desleais e as canções políticas. (…) Considerados em conjunto, eles [sindicatos e clubes de trabalhadores] indicam a aquisição de autodisciplina e a difusão de experiências, num grau impressionante” (THOMPSON, 2002).

mais um movimento de abertura da ação política às classes subalternizadas da sociedade. Prova disso estava na determinação presente em quase todos os estatutos: “a sociedade é composta por ilimitado número de sócios...” e nos baixos valores de joias de entrada, subscrições ou mensalidades, situações também encontradas por Thompson (2004) nos estudos sobre a formação da classe operária inglesa. Para ele, esta era uma das características que permitiam identificar uma “organização operária”, e entre os anos de 1790 a 1850 significou o término das noções de exclusividade e de política como reserva de uma elite hereditária ou de um grupo proprietário.

Eis o trabalhador como secretário. Eis a baixa subscrição semanal. Eis o entrecruzamento de temas políticos e econômicos. Eis a função da reunião tanto como ocasião social quanto centro para a atividade política. Eis a atenção realista para as formalidades de procedimento. Eis, acima de tudo, a determinação de propagar opiniões e de organizar os adeptos, contida na diretriz: “Que o número de nossos membros seja ilimitado”. (...) Abrir as portas à propaganda e à agitação dessa forma “ilimitada”, implicava numa nova noção de democracia que punha de lado as velhas inibições e confiava nos processos de auto-ativação e auto-organização da gente simples (THOMPSON, 2004, p. 20).

A relevância do papel da assembleia geral que funcionava como espaço democratização de informações e tomada de decisões fundamentais: política de finanças, reformas de estatutos, bem como quaisquer assuntos para os quais fosse convocada pelo conselho60 fundamenta a afirmação que a gestão dessas associações destoava da macropolítica imperial que punha a margem a maioria daqueles que eram os “sócios comuns” dessas entidades, fosse pelo critério de renda, ou pelo critério de alfabetização estabelecido com a reforma eleitoral de 1881.

No item “Patrimônio” do relatório da Protetora dos Artistas Sapateiros e Classes

Correlativas é apresentada a quantia em caixa de 3:038$874 e em seguida a afirmação de que “a assembleia geral ordenará a sua colocação mais acertada”. A assembleia também era espaço de regulação da gestão em vigor por análise de seus relatórios e balanços que prestavam contas por ocasião do seu encerramento, além de deliberar sobre reformas nos estatutos. É difícil dizer qual o uso feito pelos sócios comuns de tais informações, ou qual seu grau de ingerência sobre o destino desses fundos, cabe salientar que faz diferença, para a possibilidade de uma prática democrática, a disponibilização desses dados num fórum coletivo.

60 Art 20º: Compete à Assembleia Geral: § 1º: Ouvir e examinar o relatório dos trabalhos do Conselho que finda, e o balanço geral da receita e despesa que este lhe apresentar, tomando a este respeito, todas as medidas necessárias a bem da Sociedade, sempre em observância dos estatutos.

§ 2º: Aproveitar ou rejeitar em todo, ou em parte, e de modo prescrito nos estatutos a reforma ou modificação dos mesmos, proposta pelo conselho.

§ 3º: Resolver todas as proposições feitas pelo conselho, quando por este convocada ou consultada. (Estatutos da Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente dos Sócios e de Suas Famílias)

Todos os cargos das direções, conselhos e comissões eram exercidos por sócios. No caso da

Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente dos Sócios e de Suas Famílias, o artigo sétimo

indicava que “o conselho é composto de 31 membros, eleito pelos sócios em colégio eleitoral, de seis em seis meses”. Nesta mesma entidade, todo sócio podia votar, mesmo os ausentes podiam enviar suas cédulas assinadas e fechadas ao colégio eleitoral. Ainda após a transmutação desta associação para Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes Mecânicas e Liberais e Beneficente sua diretoria demonstra perfeito conhecimento de exercer um mandato submetido aos mandatários: os sócios, operários, que poderiam julgar se “a gerência da associação, respeitou e fez observar todas as disposições de nossa lei orgânica; manteve ilesos os direitos e deveres dos sócios, e aumentou os capitais dos cofres, limitando as despesas às proporções legais”.

Além de democráticas estavam previstas também práticas de direitos. No que diz respeito aos empregados das associações, todos os estatutos apresentam a disposição de caso houvesse um processo de demissão, abrir espaço para a defesa do funcionário em questão. No parágrafo terceiro do artigo décimo dos estatutos da Sociedade Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente dos Sócios e Suas Famílias estabelece-se que: “Compete ao Conselho: suspender a todos os empregados em geral e demitir unicamente os de sua nomeação: tudo por causa motivada e depois de ouvidos os acusados”. E quanto aos sócios: “assim como todos aqueles que não o sendo, estiverem a serviço da sociedade, podem reclamar seus direitos perante o conselho”. Aos sócios desta entidade estava previsto ainda o direito de formular propostas e defendê-las junto ao conselho. Segundo os estatutos “todo conselheiro tem direito de propor ao Conselho medidas que sejam úteis à Sociedade”. Mas, vai além:

Em geral, todo sócio pode propor ao conselho, medidas em benefício da Sociedade, e terá assento no Conselho em lugar separado na ocasião em que se discutir sua proposta e então gozará de todas as prerrogativas concedidas aos conselheiros, aos quais, todavia é privativo o direito de votar, devendo ele retirar-se do círculo do Conselho logo que se conclua a discussão.

Reconhecendo as “inovações” na cultura política vigente própria do Antigo Regime, é importante salientarmos que essas organizações eram sujeitos de seu tempo e tanto democracia como direitos tinham limites em seu interior. As próprias assembleias realizavam-se, em quase todos os casos, uma ou duas vezes ao ano, em geral nas datas de aniversário de fundação das associações, quando também se encerravam gestões das diretorias. Em todo o restante do tempo, eram os conselhos diretores que dirigiam as entidades. Mas, outros limites mais explícitos interpunham-se a democracia. O próprio voto era restringido de diferentes formas nas associações e tanto a presença como a participação de mulheres era reduzidíssima. A Sociedade União

feminina. Nos anexos entre os muitos nomes de sócios que ali aparecem, encontramos de 10 a 15 mulheres, ao que parece, em geral, fazem parte de casais que se associavam juntos (marido e mulher). Entre os sócios que têm direito ao título de benfeitor encontramos duas mulheres: Anna Luiza do Coração de Jesus e Maria da Glória e Silva.

Havia mais ou menos um padrão para a restrição de votos, como também observamos haver para as penalidades e perdas de direitos. Constituía este padrão elementos como não estar quite com suas mensalidades ou estar preso. Entretanto, não raro, encontramos restrições ao voto feminino nas associações que aceitavam mulheres. O Congresso de Beneficência e Instrução, antigo Operário de

Beneficência, determinava em seus estatutos que “as sócias maiores de 18 anos poderão votar mas não ser votadas para os cargos administrativos do Congresso”. Surpresa maior foi, porém, encontrar em algumas associações a restrição ao voto de analfabetos antes mesmo da reforma eleitoral, como na Sociedade de Beneficência dos Artistas da Construção Naval, cuja reforma dos estatutos impondo tal limite foi submetida ao Conselho de Estado em 1879.

Seguindo a mesma lógica, vemos os estatutos da Sociedade Concórdia Beneficente Vinte e

Oito de Abril estabelecerem em seu artigo onze que “Todo sócio tem direito a votar e ser votado excetuando-se: 1- Os menores de 21 anos e os que não souberem ler e escrever que poderão votar, mas não ser votados; 2- Os que não estiverem quites de suas contribuições, ausentes, ainda que com participação, e os que residirem fora de Niterói; 3- Os que estiverem presos ou pronunciados; Os do sexo feminino”. Vemos somarem-se a reprodução de antigos preconceitos difundidos por uma sociedade de origem patriarcal que vedava a cidadania ativa às mulheres com novos preconceitos contra aqueles que não sabiam ler e escrever, parte do processo de construção do analfabeto como sujeito ignorante, incapaz politicamente como alguém que não tivesse atingido a maturidade.

As limitações prescritas na legislação podiam ser surpreendidas por ações imprevistas dos sócios, como pode ser constatado no relatório da Sociedade União Beneficente Niteroiense, que registra, no ano de 1885, a organização dos sócios para revogar uma decisão do conselho. “A quinta sessão efetuou-se em 23 de agosto em virtude de requerimento assinado por vários associados, no qual protestavam fazendo um apelo a mesma assembleia, contra o ato do conselho que eliminara do grêmio social a Srª D. Herculana da Silva Nunes, por achar-se em débito das suas mensalidades. Essa assembleia em sua sabedoria entendeu destruir o ato do conselho”. Dessa forma, entre interesses comuns e situações conflituosas, entre desacordos e consensos era tecido o “aprendizado da política” entre as classes trabalhadoras do Rio de Janeiro oitocentista. Tais diversidades e divergências serão abordadas no item a seguir.