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CAPÍTULO 2: Formas do educar-se nas organizações das classes trabalhadoras

2.3 As normas disciplinares e penalidades

Os estatutos de todas as Sociedades pesquisadas dão ênfase aos critérios disciplinares tanto para admissão como para a manutenção dos sócios. Questões de moralidade e ordem eram muito importantes entre organizações que pleiteavam reconhecimento público e jurídico, compostas por sujeitos tidos pela ideologia dominante como viciosos, desordeiros, perigosos. Práticas como o alcoolismo eram passíveis de penalidades prescritas, como o caso de Vitorino da Costa Mó, sócio da Protetora dos Sapateiros e Classes Correlativas, diagnosticado pelo Dr. Cardoso Fontes como sofrendo de alcoolismo crônico, por este motivo teve suspensa a beneficência de que desfrutava por

meio dos cofres da Sociedade.

Já as leis da Sociedade dos caixeiros demonstram um corporativismo exacerbado e rígidos critérios de admissão baseados nas concepções de ordem vigentes. O artigo sexto indica que apenas caixeiros, guarda livros e feitores de comércio podem ser propostos para sócios efetivos. Seu número é ilimitado excetuando-se:

§ 1º: Os desordeiros, os de maus costumes e os que não tenham uma ilibada, ou regular conduta na carreira comercial.

§ 2º: Os desempregados, pronunciados e sentenciados por todo e qualquer crime.

Diante desses critérios penalidades eram estabelecidas àqueles que “se derem a prática de maus costumes” ou “forem presos por crime infamante”. Desde o momento que não definem o que são “maus costumes” ou “crimes infamantes” instalam em nós, observadores de outro tempo, a dúvida se tal redação colocava seus sujeitos em consonância com o sistema de valores e penas do Estado nacional brasileiro ou se, em sua generalidade, abriam brechas para a adoção de um código próprio.

Eram comuns as exigências quanto à condição de liberdade – é preciso ser livre, e a condição de moralidade, é preciso ser “bem morigerado”. Fora qualquer outro motivo de ordem ideológica dos membros, a reafirmação dessas restrições era condição para atendimento das exigências do governo imperial para aprovação dos estatutos, logo, do reconhecimento da existência da própria entidade. A tênue linha que separava, nas relações sociais, trabalhadores livres e escravos levava a uma constante preocupação dos primeiros em afastar-se daquilo que pudesse os vincular aos segundos.

Por mais baixas que fossem e, em alguns casos, por serem mais altas que a média, as joias de entrada, as mensalidades e critérios de renda anuais também podem ser considerados fatores restritivos, ainda que compreendido o elemento protecionista nestas medidas. Elas nos sugerem a heterogeneidade no universo das classes populares, tanto em termos de condições materiais quanto de hábitos. Os sujeitos que optavam por se associar a outros não pareciam estar completamente à margem da sociedade, tendo condição e predisposição em reservar recursos, mesmo que pequenos, em função de prevenções para o futuro. Esses em geral, eram os que também se mobilizavam em torno da instrução como estratégia traçada em direção a melhores condições de vida. E, por fim, encontravam-se, de fato, mais protegidos contra o empobrecimento excessivo e mais propensos aos processos de ascensão social.

Apesar de formalidades e rigor para admissão de sócios e dos critérios disciplinares para sua manutenção, depois de admitido é possível observar um sentimento solidário mais pronunciado em

algumas Sociedades, como é o caso da Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente dos Sócios e

Suas Famílias que permitia o pagamento da beneficência mesmo sem quitação de mensalidades em

atraso nos casos em que a indigência fosse comprovada. A entidade fazia uma avaliação da situação do sócio enfermo e dos recursos em caixa para estabelecer o valor da beneficência e aconselhava que este se mantivesse participativo no desempenho de alguma atividade compatível com suas condições em seu interior. No tratamento ao sócio que fosse preso criminalmente auxiliava-o até que fosse provada sua culpa.

O mesmo documento nos permite perceber que a grande preocupação das autoridades em relação às classes populares não recaía sobre “qualquer crime”: o furto estava literalmente previsto, e ganhava destaque nos estatutos. Nos pareceres dados pelo Conselho de Estado era recorrente a ênfase nas medidas disciplinares contra os ataques à propriedade, à vida e à honra. No caso da aprovação aos documentos da Associação Bahiana de Beneficência, em dezembro de 1880, vemos um parecer, no mais dos aspectos, favorável, com a recomendação de que “no 34º artigo se substitua a palavra – infamantes – por estas: contra a vida, a honra e a propriedade”. “Crimes infamantes” seria um termo muito genérico quando deveria ficar bem claro o sentido do controle sobre as classes populares.

O governo imperial, representado pelo Conselho de Estado, procurava interferir e direcionar as regras e funcionamento internos daquelas associações, mas estou de acordo com Thompson (2002) quando constata, na formação da classe operária britânica, que a organização interna das sociedades, a tomada de consciência dos trabalhadores, sua disciplina, não eram impostos por uma força externa, mas fruto de suas necessidades59. Segundo ele, “o movimento dos trabalhadores

59 Não é a intenção avolumar este trabalho com citações, mas reproduzo em nota o trecho a seguir, embora extenso, interessante para observarmos similaridades, guardadas as muitas e devidas proporções entre o processo de formação da classe operária britânica trazido à luz no clássico trabalho de E. P. Thompson e a realidade das associações de trabalhadores no Rio de Janeiro a partir de meados do século XIX aos primeiros anos do XX. “Pequenos artífices, artesãos e trabalhadores, todos tentavam garantir-se frente aos riscos de doença e desemprego, e às despesas funerárias, participando de box clubs ou de sociedades de auxílio mútuo. A disciplina necessária para a

custódia dos fundos, para a condução organizada das reuniões e para a resolução de situações controversas exigia um autocontrole tão grande quanto a nova disciplina de trabalho (grifo meu). (…) Todas as Sociedades Gerais impunham multas sobre qualquer membro que “censurasse” outro por estar recebendo o auxílio enfermidade, que bebesse durante o Sabbath, batesse em algum colega, chamasse alguém pelo apelido entrasse embriagado na sala da associação, ou invocasse o nome de Deus em vão. A Fraternidade dos Preparadores de Malte acrescentava multas por embriaguez em qualquer ocasião e por não cumprimento aos funerais dos companheiros ou de suas esposas. Os vidreiros (cuja associação foi criada em 1755) pagavam multa sempre que faltassem às reuniões, se recusassem a cumprir seu turno na escala de serviços, não mantivessem silêncio quando ordenado, falassem simultaneamente, replicassem ao moderador nas reuniões, fizessem apostas dentro da sociedade, ou (uma regra comum) revelassem os segredos da sociedade. (…) Os remadores, para não ficarem atrás, acrescentavam uma regra excluindo do benefício todo membro que adoecesse por ter se deitado com uma mulher imoral e que contraísse gonorreia ou sífilis. A Sociedade Unânime interrompia o pagamento do auxílio enfermidade de qualquer membro que fosse encontrado em cervejarias bebendo ou jogando. Com a finalidade de manter sua unidade, havia multas para os membros que propusessem discussões ou discursos sobre assuntos políticos ou eclesiásticos, ou sobre o governo e os governantes. A Sociedade de Auxílios Mútuos de Todos os Ofícios tinha sua regra semelhante a respeito dos acessos de raiva nos jogos de dama e uma multa para todo membros que deixasse de denunciar um companheiro quando tivesse oportunidade. Os sapateiros criaram ainda outras regras para os que pediam bebida ou tabaco sem autorização do

exigia novos atributos como autodisciplina, auto respeito e treinamento educacional. Uma minoria que o possuía parecia lutar arduamente abandonada pela própria classe tendia a olhar ocasionalmente para seus companheiros trabalhadores com aversão e desprezo” (THOMPSON, 2002). Havia, também “uma expectativa, inclusive, de que, quando os 'cavalheiros e magistrados' constatassem a sua disciplina, 'tenderiam a reverenciar ao invés de punir semelhante sociedade'” (THOMPSON, 2002, p. 309).

Diante de possíveis relativizações não se deve pensar que haveria um abandono da ordem estabelecida, pois tendo sido o sócio julgado e condenado, lhe seria negado o benefício e a Sociedade se desobrigaria de sua defesa em caso de reincidência, porém, ainda assim o conselho lhe prestaria os benefícios “que julgasse convenientes”. É o que mostram os seguintes artigos da

Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente:

Artigo 37º: O sócio que for preso criminalmente, a Sociedade deverá tratar da maneira do seu livramento com a maior atividade possível, bem como lhe prestará uma quantia que o Conselho julgar conveniente durante sua prisão. Estes socorros lhes serão dados caso seja pobre, à requisição sua, e depois da informação do Filantropo de seu distrito, suspendendo-se-lhe todos os socorros logo que por sentença lhe for verificado o crime de furto.

Artigo 38º: Se, porém, o crime for verificado, e pela reincidência no mesmo, ou noutro qualquer por mais de duas vezes, no mesmo ano, se conhecer que o sócio o costuma perpetrar por hábito, ou espírito de maldade, neste caso a sociedade não terá obrigação de o defender, porém o conselho lhe prestará os benefícios que julgar convenientes.

Nas leis da mesma associação podemos encontrar novas restrições disciplinares em consonância com o resguardo da moral e da ordem presentes na sociedade nacional, é o caso da recusa expressa de benefícios às viúvas ou filhas órfãs que se entregarem à prática da prostituição. Da mesma maneira que a representação corrente sobre a periculosidade do homem das classes populares era materializada no furto, forma comum de ataque à propriedade, percebemos que a representação da mulher das classes populares estava na ameaça à “família” à “moral” e “aos bons costumes” concebida na figura da prostituta.