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Indicação das provas obtidas:

No documento Contraordenaes laborais (2. edio) (páginas 129-133)

III. Meios de reacção contra o auto de advertência: sua recorribilidade

4.2 Indicação das provas obtidas:

A questão fundamental que nesta sede se suscita é a de saber se, para satisfazer o requisito formal em causa, basta a simples indicação das provas em que se baseou a convicção da autoridade administrativa sobre os factos objecto do processo, ou se, mais do que isso, é necessário o exame crítico da prova, isto é, a descrição do processo racional e lógico que levou aquela autoridade a julgar provados aqueles factos.

Se se fizer uma interpretação meramente literal do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, a questão enunciada resolve-se de maneira muito simples: basta a mera indicação dos meios de prova em que a autoridade administrativa fundou a sua convicção sobre os factos relevantes para a decisão.

A jurisprudência largamente maioritária vai neste sentido62.

Porém, o problema não pode ser abordado de forma tão superficial.

Importa ter em consideração, quer a história do preceito, quer, mais uma vez, o direito de defesa do arguido na fase administrativa.

Se há capítulo do direito processual português que sofreu uma profunda evolução nas últimas três décadas, foi o da fundamentação da decisão judicial sobre a matéria de facto, quer essa decisão constitua uma peça processual autónoma, quer surja como parte da sentença. Por isso, tem interesse proceder a um brevíssimo enquadramento histórico do artigo 58.º do RGCO.

A redacção originária do seu n.º 1 era a seguinte:

“A decisão que aplica a coima deve conter:

a) A identificação dos arguidos e dos eventuais comparticipantes;

b) A descrição do facto imputado e das provas obtidas, bem como a indicação das

normas segundo as quais se pune;

c) A coima e as sanções acessórias”.

O Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/09, alterou-o, passando o seu n.º 1 a ter a seguinte redacção, que se mantém:

“A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos;

62

Cfr., nomeadamente, o Acórdão da Relação de Guimarães de 24/09/2007 (processo n.º 1403/07-1) e o Acórdão da Relação do Porto de 04/06/2008 (processo n.º 08428.56).

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b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias.

Vejamos o que entretanto se passou no Processo Penal, por ser com ele que o Processo Contra-Ordenacional mantém maior proximidade.

Na sua versão originária, era a seguinte a redacção do n.º 2 do artigo 374.º do CPP de 1987:

“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”

Esta norma apenas foi alterada mais de uma década depois, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, passando a ter a seguinte redacção (realço a parte inovatória):

“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e

exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como se vê, a exigência expressa de exame crítico das provas apenas surgiu no CPP em 1998. Ao tempo da entrada em vigor da sua actual redacção, o artigo 58.º do RGCO não estabelecia, para a fundamentação da decisão administrativa condenatória, exigências muito diferentes daquelas que então vigoravam no processo penal para a sentença. A única diferença era a falta de previsão, entre os requisitos formais prescritos no artigo 58.º do RGCO, da enumeração dos factos não provados. Só em 1998 o legislador aumentou o grau de exigência da fundamentação de facto da sentença penal deixando para trás, intocado, o regime da fundamentação da decisão administrativa condenatória.

Com isto, não pretendo sustentar que a decisão administrativa condenatória tenha de conter sempre o exame crítico da prova, por interpretação extensiva do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, fundada num hipotético lapso do legislador ao quebrar, em 1998, o paralelismo de soluções nesta matéria. Fica-se sempre com a dúvida sobre se se tratou efectivamente de um lapso ou, em vez disso, se foi uma opção consciente do legislador, dúvida essa que tem de ser resolvida em harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil.

Pretendo apenas demonstrar que, aqui como nos restantes requisitos formais da decisão condenatória da autoridade administrativa, inexiste qualquer impedimento de princípio a paralelismo com o regime ela sentença penal. Até 1998, esse paralelismo existiu quanto a este aspecto. Quebrou-se em 1998, sendo claro que, na ausência de lei expressa, é insustentável que a decisão condenatória da autoridade administrativa tenha de conter sempre o exame crítico da prova. Contudo, se outra razão existir para, em certas hipóteses, exigir este exame naquela decisão, nenhum obstáculo de princípio existe a tal similitude de regime com a sentença penal.

Essa razão existe efectivamente. Consiste, à semelhança daquilo que vimos acontecer com a obrigatoriedade, em certos casos, de descrição dos factos não provados na decisão administrativa, no direito ele defesa do arguido na fase administrativa.

Como referi em 4.1, o direito de defesa implica, além da possibilidade de o arguido dizer o que tiver por conveniente sobre o objecto do processo ou de incidente tendente à prolação de decisão que pessoalmente o afecte, a obrigatoriedade ele a decisão que venha a ser tomada se pronunciar sobre as questões ele facto e de direito por ele suscitadas, julgando-as procedentes ou improcedentes.

Ou seja, é também o direito de defesa elo arguido que impõe, em certas hipóteses, que a decisão administrativa contenha o exame crítico ela prova.

Suponhamos que o arguido, na sequência do cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO pela autoridade administrativa, nega a prática dos factos que lhe são imputados questionando a força probatória dos elementos que sustentam essa imputação e/ou apresentando, ele próprio, meios de prova que, no seu entendimento, abalam aquela força probatória. Não é compaginável com um entendimento substancial do direito de defesa que, ao proferir decisão condenatória, a autoridade administrativa considere provados os factos que imputou ao arguido no momento processual previsto no artigo 50.º do RGCO sem explicitar, em sede de fundamentação dessa decisão, as razões por que desatendeu a tese daquele – e, na segunda das hipóteses acima configuradas, desatendeu os novos meios de prova por ele oferecidos – e continuou a considerar credíveis os meios de prova em que sustentou aquela imputação. A autoridade administrativa não pode, na decisão condenatória, ignorar pura e simplesmente a defesa apresentada pelo arguido, fazendo de conta que ela não existe. Não pode julgar provados os factos que imputou ao arguido no momento em que lhe deu o contraditório indicando apenas os meios de prova que, no seu entendimento, sustentam

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estes últimos, sem qualquer explicação sobre a razão por que não considerou credíveis os argumentos e, sendo o caso, os meios de prova apresentados pela defesa63.

Infelizmente, situações como as descritas são, na prática, vulgaríssimas.

Mas não é por isso que são admissíveis, pois violam a Constituição (artigo 32.º, n.º 10) e a lei (artigo 50.º do RGCO). No fundo, apenas confirmam o receio, que existia na época em que se discutiu a bondade da solução de criar o Direito Contra-Ordenacional, de que a Administração Pública não estivesse à altura da nova tarefa que era chamada a desempenhar. Em inúmeros casos, a prática tem demonstrado que não estava e continua a não estar, não só, nem tanto, por falta de meios, mas sobretudo por falta de conhecimento e, mesmo, de sensibilidade para entender as implicações jurídicas da ideia de Estado de Direito Democrático, nomeadamente os princípios fundamentais a que qualquer ramo de direito sancionatório público deste último não pode deixar de estar subordinado.

Concluindo, em hipóteses como aquelas que acima configurei, o direito de defesa impõe que a decisão administrativa condenatória contenha o exame crítico da prova. A alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º não o exige, é certo, mas, como qualquer outra norma jurídica, tem de ser

63

Este corolário do direito de defesa é pacificamente admitido quando se trata da fundamentação da sentença ou do despacho previsto no artigo 64. 0 do RGCO, proferidos na sequência de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória. Cito o seguinte trecho da fundamentação do Acórdão da Relação de Lisboa de 21/04/2009 (processo n.º 5354/2008-.5), sendo os realces da minha autoria: “(…) o efectivo cumprimento desta disposição (o artigo 64.º, n.º 4, do RGCO), precisamente porque a decisão é substancialmente uma sentença não pode deixar de estar também em conformidade com o respeito dos requisitos da sentença e designadamente os que impõem a indicação e o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art. 374.º, n.º 2 CPP). Só assim, aliás, se poderá ter como

efectivamente cumprido o preceito constitucional atrás mencionado (o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição) que determina que nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa. Ora, entre os direitos de defesa está, naturalmente, o de obter uma

decisão fundamentada em todos os aspectos incluindo, portanto, os atinentes à matéria de facto e à prova que a suporta”. Não posso estar mais de acordo no que concerne à conexão que é feita entre os direitos de audiência e defesa e a necessidade de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Apenas não encontro razão válida para a relutância de boa parte da nossa jurisprudência em admitir este mesmo corolário do direito de defesa quando se trata da decisão administrativa condenatória, quando o âmbito e a densidade daquele direito são exactamente os mesmos, quer na fase administrativa, quer na fase judicial do processo de contra-ordenação, como decorre, desde logo, do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.

interpretada e aplicada em articulação com outras normas e/ou princípios jurídicos que sejam convocados pela situação concreta da vida a cuja regulação é chamada.

No caso, repito, essa articulação terá de ser feita com o direito de defesa.

No documento Contraordenaes laborais (2. edio) (páginas 129-133)