1.2 SANEAMENTO E SAÚDE
1.2.1 Indicadores de impacto das intervenções em saneamento
Como já foi afirmado anteriormente, os maiores problemas sanitários que afetam a população mundial têm relação estreita com o meio ambiente, especialmente as condições de saneamento do meio.
Para estabelecer a relevância da relação saneamento-saúde, Heller (1997) fez uma extensa revisão bibliográfica, envolvendo 256 estudos epidemiológicos publicados. Dentre estes estudos, alguns são emblemáticos, por apresentarem de forma clara esta relação saneamento- saúde, como aquele representado pela figura 1.2.5, a seguir.
Figura 1.2.5 – Evolução da mortalidade por febre tifóide e do atendimento por abastecimento de água – Massachusetts (1885-1940).
Fonte: Fair et al (1966) apud McJunkin (1986) apud Heller (1997)
A figura acima mostra que no Estado de Massachusetts (Estados Unidos), o decréscimo da mortalidade por febre tifóide e a diminuição da parcela populacional sem acesso ao abastecimento de água apresentaram uma tendência histórica, no período 1885-1940, com impressionante similaridade.
Da mesma forma, Preston & Walle (1978), apud Briscoe (1987), apud Heller (1997) mostraram que, na França do século XIX, verificou-se um incremento na esperança de vida, nas cidades de Lyon, Paris e Marselha, em um período imediatamente posterior à melhoria dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário locais, conforme mostra a figura a seguir.
Figura 1.2.6 – Evolução da mortalidade e melhorias nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário – França (séc. XIX).
Fonte: Preston & Walle (1978), apud Briscoe (1987), apud Heller (1997).
Ainda em relação à estreita relação entre saneamento e saúde, a figura 1.2.6 a seguir mostra a associação inferida pelo autor entre a involução da taxa de mortalidade por diarréia e por gastroenterite e a evolução da cobertura populacional por abastecimento de água, a partir da década de 1940 na França.
Figura 1.2.7 – Evolução da mortalidade por diarréia e por gastroenterite e do atendimento por abastecimento de água na Costa Rica (1940-1980).
Fonte: Reiff (1981), apud McJunkin (1986), apud Heller (1997)
De acordo com Heller (1997), o seu levantamento dos estudos realizados já permite afirmar, com segurança, que intervenções em abastecimento de água e em esgotamento sanitário provocam impactos positivos em indicadores diversos de saúde.
Ainda mostra-se necessário o aprofundamento dessa compreensão para situações particularizadas, em termos da natureza da intervenção, do indicador medido, das características sócio-econômicas e culturais da população beneficiada e do efeito interativo das intervenções em saneamento e destas com outras medidas relacionadas à saúde.
Gomes (1995) destaca ainda a importância da educação sanitária, informando que a melhoria dos hábitos de higiene tem papel destacado na melhoria das condições de saúde, como medida complementar à implantação das instalações de saneamento.
Em relação aos indicadores de saúde medidos, o estudo de Heller (1997) indica que o emprego da diarréia infantil, como indicador, tem se mostrado adequado para identificar impactos.
Mara & Feachem (1999) agrupam as infecções relacionadas com a água e com os excretas em sete categorias, como indicado na tabela 1.2.2 a seguir. Considerando que a maioria das doenças estão relacionadas com a água e os excretas, a implementação integrada de sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário constituem a melhor forma de controle destas doenças a longo prazo.
Categoria Estratégias de controle e exemplos (organismo ou doença) A – Doenças do tipo feco-oral
(transmissão hídrica ou relacionada com a higiene)
B – Doenças do tipo não feco-oral (relacionadas com a higiene)
C – Helmintíases do solo
D – Teníases
E – Doenças baseadas na água
F – Doenças transmitidas por inseto vetor
G – Doenças relacionadas com vetores roedores
Melhora da quantidade, disponibilidade e confiabilidade da água (abastecimento de água), no caso das doenças relacionadas com a higiene;
Melhora na qualidade da água (tratamento de água), para as doenças de transmissão hídrica;
Educação sanitária
Ex. Hepatite A, E e F, Poliomielite, Cólera, Disenteria bacilar, Amebíase, Diarréia por Escherichia coli e rotavírus, Febre tifóide, Giardíase e ascaridíase.
Melhora da quantidade, disponibilidade e confiabilidade da água (abastecimento de água); Educação sanitária.
Ex. doenças infecciosas da pele e dos olhos e febre transmitida por pulgas. Tratamento dos excretas ou esgotos antes da aplicação no solo;
Educação sanitária.
Ex. Ascaridíase e Ancilostomose.
Como na categoria C, mais cozimento e inspeção da carne. Ex. Teníases.
Diminuição do contato com águas contaminadas; Melhora das instalações hidráulicas;
Sistemas de coleta de esgotos e tratamento de esgotos antes do lançamento ou reuso; Educação sanitária.
Ex. Leptospirose e Esquistossomose
Identificação e eliminação dos locais adequados para procriação; Controle biológico e utilização de mosquiteiros;
Melhora da drenagem de águas pluviais.
Ex. Malária, Dengue, Febre amarela, Filariose e infecções transmitidas por baratas e moscas relacionadas com excretas*.
Controle de roedores; Educação sanitária;
Diminuição do contato com águas contaminadas.
Ex. Leptospirose e doenças transmitidas por vetores roedores*.
* Infecções excretadas compreendem todas as doenças nas Categorias A, C e D e as doenças por helmintos na Categoria E.
Tabela 1.2.2 – Classificação ambiental unitária das infecções relacionadas com o saneamento (água e excretas).
Um estudo em particular investigado por Heller (1997), pela força multiplicadora da sua conclusão, merece ser destacado. Briscoe (1985) apud Heller (1997) postula que intervenções ambientais sistêmicas, como o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, apresentam efeitos em longo prazo sobre a saúde substancialmente superiores aos de intervenções médicas. Baseado em uma simulação de dados demográficos de Lyon (França), entre 1816 e 1905, mostrados resumidamente na figura 1.2.6, prevê que as intervenções ambientais podem prevenir cerca de quatro vezes mais mortes e elevar a expectativa de vida sete vezes mais, que as intervenções de natureza biomédica.
Segundo Briscoe (1987) apud Heller (1997), em meados da década de 1970 predominava a visão de que avanços nas áreas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário nos países em desenvolvimento resultariam na redução das taxas de mortalidade, a exemplo do que ocorrera nos países industrializados no século passado.
No entanto, a política para a área de saúde, emanada dos órgãos internacionais de fomento a partir daí, excluiu dos programas de atenção primária à saúde tais intervenções, baseados no argumento falso de que o custo de cada disfunção infantil, prevenida por meio de programas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, configura-se muito superior ao custo correspondente ao de outras medidas de atenção primária, como a terapia de reidratação oral, vacinas, o tratamento contra a malária e o aleitamento materno.
A argumentação econômica, empregada para privilegiar essas outras ações em detrimento das intervenções ambientais, equivocadamente considera os custos brutos dos programas de abastecimento de água e esgotamento sanitário e não seus custos líquidos.
A comparação econômica correta seria obtida deduzindo-se dos custos brutos dos sistemas de saneamento os valores já tradicionalmente pagos pelo serviço por parte da população, na forma de tarifas e taxas (Briscoe, 1984b, apud Heller, 1997), e também levar em conta a economia conseguida nos custos da saúde com a queda na incidência e reincidência de doenças de veiculação hídrica.