• Nenhum resultado encontrado

“Industrialização da guerra” pode perfeitamente ser traduzido para o

âmbito da terminologia de Marcuse e ser entendida tanto como um tipo de expansão planejada do processo tecnológico quanto como uma reorientação dele. Planejar a construção tecnológica de armas e orientar o aparato produtivo para a produção delas não é, portanto, um fato recente, mas sim do século XIX. Entretanto, tal fato adquire enorme importância no século XX, não apenas porque este conheceu duas guerras mundiais, mas, sobretudo, porque a luta pela hegemonia global parece ter exigido uma corrida armamentista entre as duas superpotências. O fim da competição militar entre elas, porém, não estancou de modo algum a corrida armamentista: antes, serviu de fundamento para os EUA acumular, como nenhum outro país na história, um impressionante poder militar, que supera em muitos aspectos a soma do poder militar dos países que, em outros níveis da existência social, são seus competidores. Isso gerou um fenômeno que devemos, mais à frente, examinar detalhadamente nesse trabalho: a formação daquilo que ficou conhecido como “o complexo industrial militar”, conforme a formulação de Eisenhower. Contudo, também a formação de complexos industriais que mobilizam capitais privados no setor de armamentos não foi criação dos norte-americanos: “Um segundo aspecto da reorganização da indústria européia de armamentos foi a introdução da iniciativa privada, em larga escala, na corrida armamentista.”(Arrighi, G. & Silver, B. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial, 2001, p79).

A expressão “complexo industrial militar” pode ser ambígua e induzir a erros na análise da natureza das modificações ocorridas tanto no plano interno dos EUA quanto no plano externo. Entretanto, ela pode ser também uma expressão adequada e ter valor na teoria social crítica se a procurarmos entender em um sentido não tão amplo ou genérico, mas de um modo mais mediado,isto é, mais determinado . De fato, no início do século XIX, conforme ensina Arrighi, a violência e a decisão de desencadear ou gerir uma guerra pertencia estritamente ao âmbito do Estado e, nessa medida, era um ato decididamente político. É evidente que tal decisão afeta a economia do Estado-Nação, mas o importante aqui é realçar que a produção de armas, o emprego de mão de obra nessa atividade e a decisão do que - e em que quantidade - produzir é uma decisão tomada pelo Estado.

Com a conseqüente participação da indústria privada na produção de armamentos, a situação se alterou em profundidade, forçando uma modificação no papel do estado.Este já não seria uma instância isolada, que podia decidir soberanamente sobre as questões relativas à guerra ou à paz: de algum modo, ele deveria compartilhar, nesse novo contexto histórico, essas decisões com a indústria de armas e de equipamentos militares.Talvez date desse período apontado por Arrighi, que podemos entender como o da era do imperialismo - que deve, por seu turno, ser entendido não como “a última etapa do capitalismo”,como pensava um dos autores mais admirados do marxismo bolchevique,mas como “a primeira etapa efetiva do poder político da burguesia”, conforme concepção formulada originalmente por Hanna Arendt, - a origem remota daquilo que hoje chamamos de “complexo industrial-militar”.

O fato a ser observado aqui é que, se as armas são doravante produzidas por industrias privadas, as quais decidem sobre quando produzi-las, como, de

que tipo e em que quantidade, então elas são uma mercadoria entre outras e estão, nessa condição, sujeitas ás mesmas condições materiais que qualquer outra mercadoria. Elas são feitas para serem vendidas a algum consumidor e efetivamente consumidas, a fim de que a necessidade de reproduzi-las se imponha. Nesse ciclo de produção - consumo - produção, a guerra e o ato de violência por parte do Estado aparecem agora, na nova conjuntura histórica, como uma necessidade. A guerra desponta como um tipo de imperativo econômico, uma atividade entre outras, que, em certa medida, dita o ritmo daquilo que mais tarde seria denominado, conforme a expressão original de Vance Packard, de “obsolescência planejada”.

Nessa perspectiva, o Estado passa a estar sujeito a fortes pressões desse novo agente político-econômico, o “complexo industrial militar”. Este, entretanto, pode não se reduzir aos fortes grupos econômicos voltados para a produção de armas - sejam elas destinadas ao consumo civil ou ao militar, ao consumidor individual ou ao Estado -, os quais são capazes de estabelecer uma forma de união quase umbilical com os aparelhos de estado, mas inclui também, já que a guerra visa a destruição da infra-estrutura produtiva de outras nações, vários setores da industria da reconstrução dessas mesmas infra- estruturas. O interesse do complexo industrial militar, entendido desse modo, seria o de destruir para reconstruir.

Nesse sentido, a sociedade unidimensional caracterizada por Marcuse, ao se constituir como um amálgama entre o Estado de bem estar social e o estado de guerra, tanto atualiza quanto confere dinamismo inédito a este tipo de complexo industrial militar. A expressão aponta ainda para uma união entre os interesses dos empresários e dos militares. Como já foi anteriormente assinalado, o objetivo dessa pesquisa é o de tentar esclarecer os motivos que

contribuíram para o fortalecimento do estado de guerra nos EUA após o final da Guerra Fria e ,dessa forma, para a consolidação da hegemonia global dos país.Nessa medida,a pesquisa envolve também um esclarecimento do que possa ser e como age o referido “complexo industrial militar”.

IV

SOCIEDADE SEM OPOSIÇÃO

Outra tese fundamental apresentada no referido livro de Marcuse está relacionada à uma das teses centrais da primeira teoria crítica da sociedade capitalista. Segundo esta, o proletariado seria a “negação determinada” da sociedade burguesa. Ou seja, nesse tipo de sociedade a contradição seria constitutiva, de modo que seria no seio dela mesma, no decorrer de seu desenvolvimento histórico, que sua própria negação seria constituída. Este elemento contraditório, negativo, seria a classe dos trabalhadores industriais, ou seja, o proletariado. Tanto para Marx como para todos os demais autores vinculados a tal concepção teórica, o proletariado desponta, na sociedade burguesa, capitalista, como o portador da crítica teórica e prática dessa sociedade: ele é, desse modo, concebido como o sujeito da ação transformadora da própria sociedade. Isso decorreria de sua natureza mesma, ou seja, a de ser uma classe particular que, ao se constituir como sujeito e agente do processo histórico, torna-se a classe que pode estabelecer a supressão de todas as outras classes, visto que poderia criar uma sociedade de produtores, vale dizer, de uma única classe. Dizer isso equivale a dizer que esta classe particular tem o poder e a capacidade de

abolir a existência das classes sociais.Ele seria a classe particular portadora da classe universal. Marcuse parte dessa constatação ao afirmar:

“Uma ligeira comparação entre a fase de formação e sua situação atual poderá ajudar a mostrar como as bases da crítica foram alteradas. Em suas origens, na primeira metade do século XIX, quando elaborou os primeiros conceitos ,a crítica da sociedade capitalista alcançou concreção numa mediação histórica entre teoria e prática, valores e fatos, necessidades e objetivos. Essa mediação histórica ocorreu na consciência e na ação política das duas grandes classes que se defrontavam na sociedade: a burguesia e o proletariado. No mundo capitalista, ainda são as duas classes básicas.” (Marcuse,1973,p.16

).

Entretanto, ao analisar a sociedade configurada nos Estados Unidos após a segunda guerra mundial - ou até mesmo a dos países capitalistas industrialmente desenvolvidos, nos quais vigora o que ele chamou de processo tecnológico -, Marcuse identifica uma atenuação do potencial revolucionário do proletariado. Isso corresponderia a uma espécie de despotencialização da negação. A que se deveria esse fato? Segundo o autor, isso possivelmente decorreria do fato de que a classe operária estaria então objetivamente se beneficiando das condições materiais vigentes na sociedade estadunidense. Esse benefício adviria, no plano interno, do fato de os membros dessa classe usufruir, de um modo ou de outro, dos produtos do aparato produtivo. Eles, ao contrário do que ocorreu no século XIX, não estariam afastados do consumo dos bens socialmente produzidos. No plano externo, sentiam-se privilegiados por não serem super explorados, como os operários dos países subdesenvolvidos, então chamados do “terceiro mundo”. Marcuse nota bem essa transformação: