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Um pouco de história: isolacionismo e/ou internacionalismo, velho dilema.

Antes, porém, de concretizar tal análise não seria desinteressante ou inútil refletir sobre um aspecto marcante da história política dos EUA, ao qual a análise de F. J. Cook faz importante referência. Esse aspecto também é retomado por muitos dos estudiosos da história política do país, quase sempre no afã de encontrar um ponto sólido na elaboração da explicação de sua atual postura política; não é incomum identificar, entre os pesquisadores que investigam seu comportamento político atual, o recurso à análise desse aspecto do passado a fim de explicar a contento o momento presente, como se entre um tempo e outro existisse uma ligação intima ou uma causa anterior, que se desdobra e age de modo a determinar o que desponta posteriormente. Esse aspecto da história do país refere-se a seu isolamento geográfico inicial em

relação à Europa, que foi, tempo depois, reelaborado pelas “centrais ideológicas” como característica política definidora do país.

De fato, os Estados Unidos, até o início da Segunda Guerra Mundial, quase sempre tenderam explicitamente a afirmar uma política isolacionista, ou seja, avessa a intervir diretamente nos assuntos e nos conflitos de outros países, especialmente nos situados fora do território do continente americano. No mais das vezes, justificava essa postura afirmando ser nocivo a seus interesses a adoção de qualquer intervenção em outro país:

“A Europa tem um conjunto de interesses fundamentais sem nenhuma relação conosco... Seria ingênuo da nossa parte enredar-nos, na sua política ou nos conluios ou oposições ordinárias de suas amizades ou inimizades”. ( Syrett, H., 1980, p. 110).

Em contrapartida, forjou também uma concepção aparentemente defensiva, ou seja, a de que nenhum país deveria, por seu turno, intervir nos assuntos internos dos EUA.

“Contra as insidiosas astúcias da influência estrangeira o zelo de um povo livre há de estar constantemente desperto, pois a história e a experiência provam que a influência estrangeira é um dos mais perniciosos inimigos do governo republicano” (Syrett, H., 1980, p. 112)

Nessa direção, segundo a quase totalidade dos historiadores ou estudiosos, conceberam a doutrina conhecida como “Doutrina Monroe” de 1823 que, contudo, em pouco tempo revelou conter uma ambigüidade fundamental. Essa

ambigüidade suscitou uma oscilação permanente entre as duas tendências contraditórias na história do país: por um lado, ele tendeu a cuidar apenas de si mesmo e a permanecer obstinadamente isolacionista, por outro, tendeu a buscar alguma forma de expansão territorial, fato justificado pela elaboração de uma doutrina que ficou conhecida como “Teoria do Destino Manifesto.” 48

Esta tendência expansionista parece ter impregnado consideravelmente a arte, a literatura e a cultura dos EUA.49

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Essas duas tendências foram assim caracterizadas pelos historiadores Allan Nevis e Henry Commager no livro “História de los Estados Unidos: biografia de

un pueblo libre”: “Dois eventos do início do século XIX modificaram o curso da vida

norte americana. O primeiro deles correspondeu a segunda guerra de independência entre 1812 e 1814. O segundo correspondeu à expansão territorial interna. Com relação ao primeiro, o confronto com a Inglaterra conduziu à industrialização do norte, devido à interrupção no fornecimento de produtos industrializados ingleses. Mesmo depois de restabelecida a paz, o Congresso norte-americano ,...prolongou o isolamento em relação à Inglaterra ao adotar políticas aduaneiras elevadas; tal medida possibilitou a reafirmação da unidade nacional e a instalação de um clima de confiança na pátria. Com relação ao segundo, a expansão para o Oeste produziu na sociedade norte-americana uma crescente fermentação nacionalista, intimamente relacionada com as anexações territoriais. Estas foram realizadas mediante tratados, compras ou por meio de guerras de conquistas. Em 1803,a Luisiana foi adquirida da França; em 1819, a Flórida da Espanha; em 1846, o Oregon foi reconhecido pela Inglaterra como território dos EUA e, finalmente, por meio de guerras, o Texas, em 1945; o Novo México,em 1848,e a Califórnia, também em 1848, foram tirados do México. Durante a anexação dos territórios mexicanos, surgiu nos EUA a doutrina do “Destino Manifesto”, segundo a qual os norte americanos estariam fadados a colonizar a parte sul da América e a civilizar o mundo devido a sua superioridade moral.” ( p.171. Minha tradução).

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Ao mesmo tempo, porém, segundo R.Franco, a quem devo esta indicação, ela foi também tema da cultura ou da literatura latino-americana, como se pode ver nessa passagem do romance-ensaio escrito pelo escritor mexicano Carlos Fuentes, intitulado “El espejo enterrado49”:Sobretudo, os conservadores latino- americanos acabaram por temer o que percebiam como um potencial expansionista na jovem república de fala inglesa. Em essência, a filosofia do destino manifesto foi formulada por Tomas Jefferson e John Quincy Adams. Em uma carta datada de 1821, Adans escreveu a Henry Clay: “É inevitável que o resto do continente será nosso.” A guerra contra o México em 1847 e a perda de metade de nosso território nacional para os EUA convenceu os ditos liberais de que os conservadores haviam medido muito bem as ambições territoriais norte americanas.” (1992,p.413. Minha tradução). Significativa é também essa passagem de um romance de Joseph Conrad intitulado Nostromo, publicado em 1904, na qual um financista dos EUA dá respaldo

O historiador Moniz Bandeira, no livro “A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra contra o Iraque”, também identifica essa pretensão dos EUA de “civilizar o mundo” e de “conduzir seus negócios” como algo enraizado na história do país e não, como pode pensar o observador mais desavisado, em algo mais recente, possivelmente na última década do século passado. Afirma ele:50

“Este desprezo dos Estados Unidos pela soberania dos outros povos, o unilateralismo de sua política internacional, o militarismo, a arrogância e a prepotência, a pretensão de reformar o mundo à sua imagem e semelhança, o pretexto de promover a democracia como “racionale” para a deflagração ou participação em guerras não afloraram como resultado dos atentados de 11 de setembro, mas nos primórdios da formação do país. ”(Moniz Bandeira, 2006, p. 28 )

A adoção dessa política exterior isolacionista deve ser entendida, primeiramente, como uma resposta norte-americana aos governos absolutistas

econômico ao proprietário de uma mina situada num país da América Central, que ilustra muito bem a penetração da Doutrina do Destino manifesto e a conseqüente crença nacionalista na superioridade dos EUA sobre os demais países do continente americano: “Podemos sentar e olhar. Claro, algum dia interviremos. Estamos fadados

a isso. O próprio tempo teve de esperar no maior país de todo o universo de Deus. Ditaremos as regras para tudo –indústria, comércio,leis, jornalismo,arte, política e religião, do cabo Horn até Surith‟s Sound, e também mais adiante, se algo surgir que valer a pena no Pólo Norte. Então teremos tempo de tomar as ilhas e continentes distantes da terra. Conduziremos os negócios do mundo, quer ele goste ou não. O mundo não pode evitá-lo - e nem nós, imagino eu” (citado por Edward Said, in Cultura e Imperialismo, 1999, p.18)

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Para reforçar essa idéia, cita ainda uma passagem do romancista Herman Melville:

“Nós, os americanos, somos o povo escolhido, o Israel de nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo. Deus predestinou grandes coisas para a nossa raça e o resto das nações logo seguirá na nossa esteira.” (Moniz Bandeira, 2006, p. 31)

da Europa continental, organizados na Santa Aliança; secundariamente, como uma medida contra qualquer conjunto de interesses europeus sem nenhuma relação fundamental com os interesses americanos, conforme salientara George Washington, e, por último, como obra de uma aliança política exterior com a Grã-Bretanha, que, para garantir a manutenção do poder conquistado diante das nações européias, se opôs ás intenções da Santa Aliança de restabelecer a dominação continental na América, convidando os EUA para respaldar esse princípio.

Quase duas décadas depois essa postura isolacionista transformar-se-ia oficialmente na Doutrina Monroe, que diversos autores procuraram analisar como a versão norte-americana do pan americanismo51.A doutrina foi conseqüência de dois eventos europeus que interferiram diretamente na segurança dos Estados Unidos. O primeiro deles foi a penetração russa no noroeste do Pacífico, e o segundo, a possibilidade de que a Santa Aliança ajudasse a Espanha a reconquistar suas antigas colônias americanas. Como resposta a esses acontecimentos e para reafirmar a postura isolacionista delineada por G Washington, o presidente James Monroe incorporou, à sua mensagem anual ao Congresso, a declaração que fundamentou tal doutrina. Comumente definida como a “América para os americanos”, a Doutrina Monroe reafirmava a postura isolacionista delineada como pressuposto da política externa da nação desde o reconhecimento de sua independência pela Grã-Bretanha. Nela, James Monroe negava aos europeus o

51 No século XVIII despontaram alguns precursores dos ideais pan- americanos. Os

pronunciamentos, cujo objetivo era estabelecer a união entre as sociedades americanas, ganharam força e maior expressão durante as lutas pela independência das colônias européias no Novo Mundo. Foi tanto a necessidade de defesa contra a ameaça européia, como as raízes históricas e geográficas comuns que forjaram o ideal pan-americano, o qual pode ser entendido como um movimento de solidariedade continental a fim de manter a paz nas Américas; preservar a independência dos Estados americanos e estimular o seu inter- relacionamento. O projeto de solidariedade continental foi desenvolvido sob duas modalidades distintas; o bolivarismo e o monroismo.

direito de intervenção na América, seja para criar áreas de colonização , seja para suprimir a independência recém conquistada pela maioria dos estados americanos. Segundo alguns estudiosos, ela fundamentava os projetos expansionistas dos Estados Unidos, que pretendiam avançar suas fronteiras até o Pacífico, contrariando interesses europeus e estabelecendo as bases para um comércio livre com os países recém independentes. Apesar das palavras de Monroe serem claras no que se refere a não intervenção dos Estados Unidos nas colônias ou dependências de qualquer potência européia, entre os anos de 1824 a 1826, o país se posicionou contra a libertação das Antilhas espanholas pela ação da Colômbia e México, porque imaginavam que Cuba pudesse ser anexada ao México ou a Colômbia, ou então pudesse alcançar uma independência precária.

Quando os EUA decidiram empreender ações militares para anexar territórios até então pertencentes ao México, trataram de desenvolver uma doutrina que justificasse adequadamente essas ações. Nesse contexto, conceberam a Teoria do Destino Manifesto. Enquanto a Doutrina Monroe assegurava a não intervenção em assuntos internos e o reconhecimento da independência adquirida pelas novas nações americanas, esta tendia a justificar ideologicamente a assimilação de novos territórios, mesmo que até então pertencentes a outros povos.Afinal, segundo os princípios dessa teoria, o domínio estadunidense no continente representaria a vontade de Deus. Os ideais expansionistas norte-americanos foram reativados, com a justificativa de que o país estaria empreendendo uma ação civilizadora.A referida teoria teria promovido tanto a difusão de acentuado sentimento religioso, já que o país era por ela visto como eleito por Deus para cumprir tal tarefa, quanto um sentimento político de superioridade dos valores dos Estados Unidos, já que

imaginava estar o país destinado a ser o promotor mundial da liberdade e da democracia.

O significado dessas duas doutrinas não passou despercebido para os historiadores ou estudiosos dos EUA. David Harvey, por exemplo, no livro “O Novo Imperialismo” (p.47) comenta o valor de ambas as concepções, inclusive citando Neil Smith, para quem a doutrina do Destino Manifesto sempre serviu muito bem aos interesses expansionistas norte-americanos , inclusive durante todo o século XX. Para ele, tal teoria ajudava perfeitamente a encobrir os interesses particulares efetivos do país por meio de uma retórica de forte apelo universalista. Neil Smith observa que, nesse aspecto, ela serviu de fundamento ao que hoje se chama, não sem impropriedade, de “globalização”.

Da mesma maneira, não se pode afirmar que os EUA, a um determinado momento de sua trajetória histórica, tenham abandonado a Doutrina Monroe. Seria mais correto afirmar que essa Doutrina foi várias vezes reformulada, sempre em função dos interesses reais despertados por tal ou tal conjuntura histórica. A doutrina, que originalmente pode ser lida como uma demarcação de limites para a expansão dos vários imperialismos europeus, parece nesse aspecto conter um valor estratégico defensivo e ser de interesse para todos os países da América. No entanto, aos poucos, ela adquiriu também outro aspecto, ou seja, ela passou a ter também um valor estratégico ofensivo para os EUA, já que, por meio desta doutrina ele concebia tanto a América Central como a do Sul como áreas de sua influência exclusiva. Isso também é válido para o México. Tal fato requereu a necessidade, ainda segundo Harvey, de o país criar um novo tipo de dominação e exploração, em todos os aspectos diferentes dos utilizados pelo imperialismo europeu. Essa necessidade provinha do fato de os EUA se relacionarem, nessas regiões americanas, com

países que, como ele próprio, havia se tornado independente do jugo dos países colonizadores europeus.

Dentre os expedientes dessa nova forma de dominação utilizados pelos EUA destaca-se a prática dos acordos bilaterais entre esta potência e determinado país. Esses acordos sempre foram assimétricos, dadas as desigualdades entre os contratantes, fato que possibilitou aos Estados Unidos submeter, corromper, impor condições desfavoráveis nos acordos, estabelecer formas arcaicas de clientelismo que, enfim, criavam condições para ele até mesmo gerir a vida dos países latinos. Esse fato é apontado tanto por Harvey como pela maior parte dos estudiosos da política externa dos Estados Unidos ou pelos historiadores políticos da América Latina.

III