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“ o desenvolvimento capitalista alterou a estrutura e a função

dessas duas classes de tal modo que elas não mais parecem ser agentes da transformação histórica.Um interesse predominante na preservação e no melhoramento no status quo institucional une os antigos antagonistas nos setores mais avançados da sociedade contemporânea” (Marcuse, 1973,p.16).

Este fenômeno geraria uma despotencialização da crítica, ou seja, criaria dificuldades objetivas extraordinárias para a atividade critica que passaria a ser desqualificada como atitude típica de rebeldes ou de descontentes de todo tipo, o que equivale a dizer que ela perderia toda legitimidade, parecendo sempre arbitrária e despropositada. A crítica mudaria de natureza, pois deixaria de ser prática, sofrendo consequentemente significativa redução de seu papel: ela passaria a ser destinada à identificação dos pontos falhos da vida unidimensional a fim de aprimorá-la, mas sem a idéia de transcender praticamente a sociedade estabelecida. Nas palavras de Marcuse:

“...a própria idéia de transformação qualitativa recua diante das noções realistas de uma evolução não explosiva proporcionalmente ao grau em que o progresso técnico garante o crescimento e a coesão da sociedade capitalista.Na falta de agentes e veículos de transformação social, a crítica é assim levada a um alto grau de abstração.Não há campo algum no qual teoria e prática, pensamento e ação, se harmonizem.Até mesmo a análise mais empírica das alternativas históricas parece especulação irreal, e a adesão a adesão a ela uma questão de preferência pessoal ou grupal.” (idem, p.16).

A integração da classe operária à sociedade que ela deveria contestar não se concretizou, porém, apenas com a possibilidade de ofertar a ela um acesso ao consumo dos produtos tecnológicos, então percebidos como o melhor

que a sociedade poderia oferecer. Essa integração ,assim como a supressão da crítica, também se fez praticamente, isso é, por uma ação consciente, repressiva e truculenta, por parte do Estado. Se o Estado de Bem Estar Social consolidou e estabilizou essa integração, foi o estado de exceção implantado no início da década de 1950 que, decididamente, por meio do terror, ajudou a erradicar a oposição e a enfraquecer o eventual ânimo revolucionário dos trabalhadores do país.

Além disso, cumpre notar também que essa situação propiciou ainda uma colaboração estreita entre os sindicatos, as lideranças empresariais e mesmo o Estado. Giddens, no ensaio nomeado, notou bem esse fenômeno, assim como suas conseqüências e implicações na conjuntura histórica formada pela era da Guerra Fria:

“... internamente, o capitalismo competitivo do século XIX cedera

lugar a uma economia industrial organizada,na qual o estado, as grandes corporações e os sindicatos coordenavam suas atividades para promover o crescimento econômico.Mas essa era também uma economia engrenada para a ameaça de Guerra, na qual grandes somas eram gastas em armamentos e a ameaça do “comunismo internacional” era utilizada para promover a unidade política entre programas e partidos políticos supostamente divergentes. ”(idem, p.266)

Giddens, ao examinar a passagem abaixo citada, identifica com precisão uma das principais características da sociedade unidimensional: esta seria uma sociedade de “mobilização total”. Ou seja, isso significa que ela passaria a ser estruturada em função da existência de um suposto inimigo externo, de um inimigo nacional, representado como capaz de causar danos permanentemente a ela.A mobilização total teria portanto como fundamento o medo diante tal inimigo, ainda que inventado.A manutenção do medo, porém, sempre depende

da estabilização ou intensificação da imagem do inimigo: dessa maneira, esse deve ser incessantemente evocado, deve estar sempre presente. A conclusão marcuseana é clara: o autor afirma ser tal mobilização o elemento que confere à sociedade um elevado grau de unidade, servindo objetivamente para conter os conflitos e as contradições sociais:

“Mobilizada contra essa ameaça (a representada pelo comunismo internacional), a sociedade capitalista demonstra uma unidade interna e coesão desconhecidas em etapas precedentes da civilização industrial. É uma coesão em um plano bem material: a mobilização contra o inimigo funciona como um poderoso estímulo à produção e ao emprego, mantendo assim um alto nível de vida” (Marcuse,1973, citado por Giddens, p.266).

A identificação da “sociedade unidimensional” com a “sociedade da mobilização total” aponta para a formação e consolidação, em seu seio, do que Marcuse denomina de “Estado de guerra” ou “Estado beligerante” (como quer a tradução brasileira.) Este aspecto dela implica a construção de um poderoso aparato militar e de um correspondente “complexo industrial militar”, conforme já apontei. A organização da vida política passa a ser também uma constante organização para a guerra. Isso tem ampla conseqüência. Marcuse, inclusive, faz uma observação que, embora não ocupe papel de destaque em sua análise, tem grande relevância para essa pesquisa: ele supõe que a automação da produção, que seria também uma das características da sociedade unidimensional, em pouco tempo poderia gerar uma espécie de obsolescência do trabalho produtivo e esse fenômeno, por seu turno, acarretaria a necessidade imperiosa de um desmedido crescimento do setor militar.

Essa observação pode conter um diagnóstico preciso sobre a tendência futura da sociedade unidimensional. De fato, se o crescimento desse setor -

aqui remetido à formação e desenvolvimento do “complexo industrial militar” - foi altamente significativo durante o período da Guerra Fria, ele não foi menos espetacular após o fim dessa. Isso ocorreu em detrimento de todas as expectativas de que ele poderia, com o fim dessa conjuntura política, se restringir. Desse modo, embora a sociedade unidimensional seja concebida como a combinação produtiva das características da sociedade do Bem Estar Social com as do Estado de Guerra - ou Beligerante-, o componente que conheceu grande desenvolvimento foi justamente este último. Conforme já sugerido, esse crescimento também foi, em larga medida, determinado pelo fato de a sociedade estar também constantemente em “mobilização total”, a qual pressupõe, por parte do estado, a eleição de um inimigo externo capaz, supostamente, de atuar de maneira espetacular também no plano interno. Assim, a mera existência ou reconhecimento da existência desse tipo de inimigo poderia servir de justificativa para qualquer atitude por parte do Estado, desde que percebida como destinada a conte-lo.

Se, em alguns momentos específicos, como pode ter sido o caso da época da guerra do Vietnã, esse crescimento exigiu o engajamento em alguma guerra ou escaramuça internacional a fim inclusive de tanto dinamizar temporariamente a economia quanto engajar os desempregados - já que o aparato produtivo, automatizado, não mais requeria grande quantidade de contingente de trabalhadores -, em outros ele simplesmente requereu, até para sua sobrevivência e perpetuação, a escolha de novo inimigo, seja este algum país indefeso, seja um suposto grupo terrorista transnacional para, tanto contra um como contra outro, poder ,de tempos em tempos, promover uma ação militar.

Se alguém examinar a história recente dos EUA certamente não encontrará nenhuma dificuldade para comprovar tal afirmação. Aliás, convém destacar que as ações militares do país começaram no século XIX, com as ações expansionistas em solo americano, como é caso da anexação de parte do México, em 1848. Embora se declarassem isolacionistas e afirmassem buscar não participar de intervenções fora de seu território, o país já oscilava entre esse dois pólos, a saber, entre a contenção isolacionista e a tendência expansionista. Desse modo, após a Segunda Guerra mundial, essas ações se prolongaram por territórios africanos e asiáticos, sem contar as intervenções mais ou menos discretas em vários países da América Latina durante os anos 1960 e 1970. Após a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da Guerra Fria,em 1991, os EUA continuaram a intensificar as ações militares no exterior, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001. Relembremos ainda, a título de esclarecimento, algumas dessas intervenções patrocinadas pelos EUA: em 1991,houve a invasão do Golfo pérsico e a primeira guerra ao Iraque;em 1992-94, a invasão da Somália; em 1998, ocorreu a invasão do Sudão; em 1994-45, a do Haiti; em 1998, a invasão do Afeganistão e, em 2003,a segunda guerra contra o Iraque. Essa tendência para a constante ação militar, característica do Estado Beligerante, foi recentemente reforçada de maneira considerável pela nova doutrina Bush, segundo a qual os EUA podem fazer guerra preventiva tanto contra países inimigos quanto com aliados,sempre que se sentir ameaçado.

Antes de prosseguir, pode ser útil a elaboração de um resumo de como Marcuse caracteriza de fato a sociedade unidimensional, particularmente a esboçada no capítulo do livro dedicado à análise do “Fechamento do universo político” de tal tipo de sociedade. Nesse capítulo, o autor afirma: