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Industrialização pesada e urbanização intensa, integração do território e produção de cidade

PARTE II ANÁLISE HISTÓRICA E GEOGRÁFICA DA RELAÇÃO ENTRE A TRÍADE –

5.1. Industrialização pesada e urbanização intensa, integração do território e produção de cidade

Há exemplo do que foi realizado no capítulo anterior, Capítulo 4, toma-se emprestado uma expressão já bastante difundida nas ciências econômicas e sociais brasileira para se referir à fase do processo de acumulação que direcionou a economia brasileira no período em foco. A expressão “industrialização pesada” é bastante difundida para se referir a intensificação do processo de industrialização a partir da segunda metade da década de 1950 (LESSA, 1964; TAVARES, 1972; MELLO, 1975).

Entretanto, este não é o único processo importante que devemos observar, pois esta intensificação foi acompanhada pelo impulsionamento da urbanização e uma verdadeira explosão no processo de produção de cidades, como será demonstrado.

Portanto, denota-se neste momento um Brasil industrial e urbano em consolidação.

194 Em síntese, a partir da segunda metade da década de 1950, o Brasil passou por profundas transformações econômicas, culturais, sociais e políticas, todas sujeitas ao caráter de modernização conservadora que levou a tais mudanças estruturais (OLIVEIRA, 2003). A modernização dessa natureza exacerbaria ainda mais os elementos históricos da heterogeneidade estrutural (produtiva, social e espacial), marcas da variedade periférica do capitalismo (BRANDÃO e BARCELLOS DE SOUZA, 2019).

A urbanização marcada pela grande concentração de trabalhadores na informalidade, trabalho precário e pobreza urbana (OLIVEIRA, 2003) que caracteriza uma urbanização dos baixos salários (MARICATO, 2015) são marcas que possuem sua gênese no berço do processo de industrialização e urbanização no Brasil, como demonstrado no capítulo anterior. Passam a ser características marcantes e se reproduzem de forma constante no decorrer das décadas seguintes.

A urbanização intensa do pós-segunda metade da década de 1950 apresenta tais características em seu âmago. É neste período em que a lógica da industrialização prevalece, tanto no que se refere a economia e processo produtivo em si, quanto em relação à urbanização, que passa a se desenvolver e especializar de forma generalizada, com a intensificação da produção de cidades, adensamento das redes urbanas com infraestruturas de ligações e articulações entre elas, conformando um sistema urbano e promovendo um processo de integração dos espaços.

É essa lógica da industrialização que prevalece: o termo industrialização não pode ser tomado, aqui, em seu sentido estrito, isto é, como criação de atividades industriais nos lugares, mas em sua mais ampla significação, como processo social complexo, que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os esforços de equipamento do território para torná-lo integrado, como na expansão do consumo em formas diversas, o que impulsiona a vida de relações (leia-se terceirização) e ativa o próprio processo de urbanização. Essa nova base econômica ultrapassa o nível regional, para situar-se na escala do país; por isso a partir daí uma urbanização cada vez mais envolvente e mais presente território dá-se com o crescimento demográfico sustentado das cidades médias e maiores, incluídas naturalmente, as capitais de estados (SANTOS, 2018, p. 30).

A intensificação da industrialização e a generalização da urbanização promoveram pela primeira vez no Brasil uma certa integração do território. Ou seja, o

“não-território” como característica notável da sociedade brasileira, destacado por Natal (2015) deixa de ser uma síntese explicativa e, agora o território nacional e a

195 interrelação de seus espaços passa a ser uma dinâmica necessária com tendências de desenvolvimento, na medida em que há um aumento do incremento de infraestrutura urbana, investimentos em capital fixo e tecnificação do espaço, mas, sobretudo, de incrementos de técnicos que possuem ligações entre si e constituíram possibilidades de fluxos rápidos e adensados.

É apenas após a segunda guerra mundial que a integração do território se torna viável, quando as estradas de ferro até, então desconectadas na maior parte do País, são interligadas, constroem-se estradas de rodagem, pondo em contato as diversas regiões entre elas e com a região polar do País, empreende-se um ousado programa de investimentos em infra-estruturas. Ainda uma vez, uma nova materialidade superpõe novos sistemas de engenharia aos já existentes, oferecendo as condições técnicas gerais que iriam viabilizar o processo de substituição de importações para o qual todo um arsenal financeiro, fiscal, monetário, serviria como base das novas relações sociais (incluindo o consumo aumentado) que iriam permitir mais uma decolagem (SANTOS, 2018, p. 38).

“Os anos de 1960 marcam um significativo ponto de inflexão [...] o processo de urbanização conhece uma aceleração e ganha novo patamar” (SANTOS, 2018, p. 32). É a partir deste “novo patamar” que é possível identificar um progressivo aumento no processo de produção de cidades no Brasil e as dinâmicas econômicas contidas e nascidas na produção das cidades passam a ganhar centralidade e importância.

Observa-se uma ”substituição das classes proprietárias rurais na cúpula da pirâmide do poder pelas novas classes burguesas empresário-industriais” (OLIVEIRA, 2003, p. 62). Tais “empresários-industriais” são empresários urbanos que passam a recolocar a circulação de seus capitais nas dinâmicas de acumulação ligados à cidade e ao urbano. Deste modo, tal substituição coloca o urbano e a cidade no centro das dinâmicas de acumulação ou, nas palavras de Harvey, (1982) a produção do ambiente construído, surge como importantes frentes de acumulação do capital.

Como já debatido no presente trabalho98, a relação entre o desenvolvimento do capitalismo e a produção material do espaço é uma relação não linear que vai sendo historicamente constituída e crescentemente imbricada no decorrer do próprio processo de desenvolvimento das forças produtivas.

98 No capítulo 2 da presente tese é realizado um debate teórico-analítico sobre as relações historicamente constituídas entre o capitalismo e a produção do espaço, principalmente o espaço em forma de meio ambiente construído nas cidades.

196 Destaca-se o reconhecimento por parte importante da literatura99 a ideia de que o próprio processo de acumulação encontrou ao longo de sua história barreiras em suas próprias contradições endógenas, e é forte na sua vertente crítica a ideia de que na urbanização e na produção do espaço foram encontradas as frentes necessárias para sua continua reprodução e, até mesmo a sua sobrevivência (HARVEY, 1982; LEFEBVRE, 1999, 2000).

No que diz respeito à realidade concreta brasileira, este momento marcado pela Intensificação da industrialização articula uma forte metropolização, mas também produção e aumento de cidades não metropolitanas, tal aspecto caracterizou o desenvolvimentismo nacional sob um regime autoritário (KLINK, 2020).

Santos (2018, p. 109) descreve que no Brasil pós-1964, articulam-se, “como a mão e a luva, as exigências de inserção em uma nova ordem econômica mundial”, que demanda uma redesenho das estruturas internas do território em direção a um fortalecimento das relações entre cidades.

A integração dos transportes e das comunicações (rapidamente modernizados) necessária à visão panóptica do território, é, igualmente, condição material para a difusão, além das regiões centrais mais desenvolvidas, de atividades industriais e agrícolas altamente capitalistas (SANTOS, 2018, p. 109).

Foi sob o Regime Militar que são construídas as condições necessárias de integração espacial em nível nacional, a partir da implementação de planos de desenvolvimento abrangentes (em nível nacional, regional e metropolitano - escala urbana) visando a consolidação de uma economia espacial nacional e as etapas complementares de industrialização (bens de consumo duráveis; intermediário e capital bens) (SANTOS, 2018; KLINK, 2020).

O golpe de Estado de 1964 todavia aparece como um marco, pois foi o movimento militar que criou as condições de uma rápida integração do país a um movimento de internacionalização que aparecia como irresistível, em escala mundial (SANTOS, 2018, p. 39).

Ressalta-se, também, que o golpe militar de 1964 representou a vitória definitiva sobre o potencial caminho alternativo, democrático e com inclusão social, que vislumbrava o país (BRANDÃO e BARCELLOS DE SOUZA, 2019).

99 Tal debate é um dos focos analíticos encontrados em Harvey (1982) e Lefebvre (1999; 2000);

197 Cualquier periodización sobre nuestra historia y sus especificidades sociales, económicas y políticas debe realizar un corte temporal en 1964. Para el estudio de la dinámica de nuestra sociedad es necesario recordar ciertas determinaciones y condicionantes impuestos en el período 1964-1985. La destrucción del Estado democrático de derecho, perpetrada por el golpe de 1964, acabó por devastar estructuralmente la política y la formación de clases sociales en Brasil.

El régimen autoritario de veintiún años desmanteló la esfera política, el espacio público, las bases democráticas, destituyendo derechos y las fuerzas populares en los centros de decisión (BRANDÃO e SOUZA, 2019, p. 33-34).

Encontra-se no decorrer da inter-relação destes processos, intensa industrialização e urbanização acelerada, o prelúdio dos marcos iniciais desta dinâmica, que nas décadas seguintes se desenvolveu e passou a ser parte importante da dinâmica econômica, social e espacial das cidades brasileiras, que passaram a ser produzidas e reproduzidas com intensidade crescente.

La industrialización avanzó, arrastrando e incentivando el conjunto de las actividades económicas terciarias, agropecuarias y de soporte infraestructural. Se procesaron transformaciones materiales amplias en el NA (igual al de la segunda revolución industrial), pero no fueron acompañadas de mayor accesibilidad para la mayoría de la población a la propiedad, a la tierra rural o urbana, a la educación y a la salud de calidad, a la vivienda, a los servicios urbanos, a la inserción formal en el mercado laboral y en la seguridad social; es decir, la mayoría quedo sin derechos a la economía urbana moderna (BRANDÃO e SOUZA, 2019, p. 34).

Os caminhos e direções das características da urbanização e das cidades produzidas passam a dar o tom sobre os processos de desigualdades e precarização que marcam o Brasil urbano (OLIVEIRA, 1979; 2003; BOLAFFI, 1979; SANTOS, 2018).

É fundamental para os objetivos da argumentação aqui em desenvolvimento, chamar atenção para mais uma nova rodada jurídica-normativa, que assim, como a anteriormente, em outras fases, passa a remodelar a propriedade privada instrumentalizando-a e remodelando-a com objetivo de atribuir a ela papéis funcionais às demandas da conjuntura produtiva vigente.

Nesse sentido, chamamos a atenção para as mudanças jurídico-normativas sucessivas no âmbito do debate aqui pretendido, que foram colocadas em prática logo após o golpe de Estado realizado pelos militares em 1964.

198 5.2. Estruturação do setor da produção habitacional e a produção da cidade como negócio: a terra como mercadoria da acumulação urbana e reserva de valor

O segundo recorte contido na Figura 2, apresentada na introdução desta Parte II, delineia alguns eventos, que estão destacados neste item, colocados em movimentos a partir de 1964; tais eventos combinados com institucionalizações, regulamentações e normatizações, também destacados, se articularam em mais uma rodada jurídico-normativa que se desenrola com mudanças importantes nos papéis e funções da propriedade no Brasil.

Como resultado desta rodada de importantes mudanças, destacamos a exacerbação da terra como mercadoria fundamental da acumulação urbana e importante reserva de valor.

É possível afirmar que até este momento, 1964, parte do século XX, no Brasil, a produção habitacional e imobiliária dispôs de poucos canais de financiamento. Diante disto, o cenário relativo ao setor imobiliário era marcado pela escassez de crédito para financiar a produção de habitações e de edifícios comerciais (ELOY MAGALHÃES, 2013;

SANFELICI, 2020).

Segundo ainda Sanfelici (2020) esta realidade resultou em um expediente de autofinanciamento diretamente com o investidor final e acabou por acarretar um mercado fragmentado e rarefeito, incapaz de se expandir em larga escala.

No segmento residencial, as moradias de aluguel, cuja construção era financiada diretamente pelo investidor final, constituíram a principal forma de acesso à habitação para amplos segmentos de rendas média e baixa na primeira metade do século passado (SANFELICI, 2020, p.

131).

A aceleração do processo de urbanização, somada a escalada dos custos da habitação, tanto de aquisição quanto de aluguel, pelo rápido crescimento dos centros urbanos, obriga grandes parcelas da sociedade a, além das recorrentes compras de terreno em loteamentos irregulares para a construção informal de moradia a ocupar terrenos ociosos, públicos ou privados, o que originou os assentamentos informais, as favelas (KLINK, 2020; SANFELICI, 2020).

Um dos primeiros projetos emblemáticos do regime militar durante 1964-1967 foi o desenho institucional financeiro de um sistema nacional de habitação e desenvolvimento urbano (KLINK, 2020). A partir da Lei Nº 4.380, de 21 de agosto de

199 1964 é instituído o Banco Nacional da Habitação (BNH), órgão federal que foi responsável por concentrar todo aparato normativo, financiador e estruturador da produção habitacional que passaria a ter o Estado como um fomentador.

Naquele momento é também instituído nesta mesma Lei o Sistema de financiamento da Habitação (SFH) e o Sistema de Financeiro de Saneamento (SFS)100. Logo em seguida é editada a Lei Nº 4.591101, de 16 de dezembro de 1964, conhecida com a Lei das Incorporações Imobiliárias, fundamental para mais um passo de estruturação de um mercado e de uma mercadoria a ser mobilizada e introjetada no interior dos circuitos de acumulação.

Deste modo, destaca-se a necessária atenção à dimensão legal e institucional como fundamento necessário na condução de elementos que modelam e impulsionam os processos da realidade concreta. Há exemplo de 100 anos antes, a instrumentalização jurídica-normativa que, naquele momento, operacionalizou e instrumentalizou a propriedade privada da terra com novas características, transformando-a em um bem

“cativo” e privado, tornando-a, de fato, uma mercadoria mediante as “necessidades”

estratégicas conjunturais do processo de acumulação naquele momento.

A partir do aparato legal em análise, observa-se o advento da introdução de novas possibilidades de funções da propriedade em coerência com a conjuntura econômica, na medida em que as alterações em destaque passam a impactar processos de acumulação em que a propriedade privada é elemento central.

A rodada jurídico-institucional em foco teve como função assegurar a possibilidade de expansão do processo de captura do espaço, em sua dimensão material, pelos circuitos de valorização do capital, agora não somente como substrato necessário para a expansão do capitalismo industrial, mas sim como um próprio produto

100 Institui a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências. - Informações retiradas do próprio decreto, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4380.htm - acesso em 16/06/2020.

101 Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Art. 1º As edificações ou conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienados, no todo ou em parte, objetivamente considerados, e constituirá, cada unidade, propriedade autônoma sujeita às limitações desta Lei. - Informações retiradas do próprio decreto, disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4591.htm#:~:text=Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico.,Art. – acesso em 16/06/2020.