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A produção material do espaço como dimensão fundamental para o continuo processo de reprodução

ECONOMIA POLÍTICA-GEOGRÁFICA DA FINANCEIRIZAÇÃO DA PROPRIEDADE NO BRASIL

2.1. A produção material do espaço como dimensão fundamental para o continuo processo de reprodução

O debate sobre a relação entre a produção espaço, principalmente no que se refere ao urbano e as dimensões econômicas da acumulação não é exatamente nova no campo cientifico, principalmente no campo da Geografia e dos estudos urbanos críticos.

Pelo contrário, autores clássicos já se dedicaram a debater tal relação e, dentre eles podemos destacar Lefebvre (1999, 2000) e Harvey (1982, 1989), em particular. É a partir do enfoque marxista com articulação da dimensão espacial que tais autores produziram uma perspectiva teórica que enfatizou o papel da lógica de acumulação de capital como origem das transformações materiais e simbólicas dos espaços urbanos.

Diante desta perspectiva, parte-se da ideia de que os espaços urbanos são mais do que terras urbanas, redes de infraestrutura, lugar da reserva de mão de obra e aglomerações de atividades econômicas. A concepção de novas abordagens teóricas sobre a financeirização e a produção do espaço urbano requer reconhecer a

88 complexidade das cidades como espaços privilegiados de geração, extração/apropriação e circulação de renda e valor, além de consumo coletivo e, em última instância, de (re)produção (KLINK, 2020). Assim, as cidades, consequentemente tais espaços em particular, são concebidos como elementos centrais da investigação da trajetória espacial contraditória do capitalismo, cruciais para compreender a dinâmica da própria acumulação e reprodução capitalista (LEFEBVRE, 1972, 1999, 2000; HARVEY, 1982, 1989).

É perpassando este debate que a presente seção busca direcionar seus esforços, com o objetivo de realizar as devidas e necessárias mediações entre as transformações econômicas contemporâneas e o papel que a produção material do espaço urbano assume frente às novas características intrínsecas à centralidade assumida pela esfera financeira no processo de acumulação.

Ao longo da história do desenvolvimento do modo capitalista de produção identifica-se a inserção e captura do espaço, em sua dimensão material, pelos circuitos de valorização do capital, “seja pela mercantilização da terra, seja por seu parcelamento ou, como vem ocorrendo mais recentemente, por sua crescente inclusão nos circuitos de circulação do capital financeiro” (BOTELHO, 2007, p.16). Nesse sentido, faz-se necessário o debate sobre a compreensão de como os circuitos de acumulação do capital crescentemente dominaram e capturaram o espaço como estratégia de sobrevivência e manutenção da reprodução (BOTELHO, 2007).

Deste modo, a produção do espaço passa a assumir ao longo da história uma posição fundamental para a continua reprodução da acumulação do capital. Segundo Lefebvre (1999) existiria, portanto, uma crescente interdependência do capitalismo e a produção do espaço, principalmente quando se trata, da produção do espaço urbano, interdependência pois, segundo o autor, a relação constituída entre o espaço e o modo capitalista de produção precisa ser vista e analisada de forma dialética, co-determinada e complexa.

[...] o capitalismo parecer esgotar-se. Ele encontrou um novo alento na conquista do espaço, em termos triviais na especulação imobiliária, nas grandes obras (dentro e fora das cidades), na compra e venda do espaço. E isso à escala mundial. (...) A estratégia vai mais longe que a simples venda, pedaço por pedaço, do espaço. Ela não só faz o espaço entrar na produção da mais-valia, ela visa uma reorganização

89 completa da produção subordinada aos centros de informação e decisão. (LEFEBVRE, 1999, p.142).

Portanto, para Lefebvre (1999) a relação entre os circuitos da acumulação capitalista e a produção do espaço resulta da própria necessidade do capitalismo de se reinventar e se reestruturar a partir da base espacial. Diante desta interpretação, a sobrevivência do capitalismo, para o autor, está na possibilidade e capacidade de se capturar, produzir e reproduzir o espaço. No atual e avançado processo de urbanização contemporâneo, destaca-se, em especifico, a produção do espaço urbano.

Além de Lefebvre (1999), Harvey (1982, 1989) ao analisar os limites encontrados pelo capital a cada ciclo produtivo e as consequentes gerações de crises de sobreacumulações produtivas resultantes das contradições internas do próprio modo de produção, detecta a tendência de fluxo importante de parte do capital produzido e sobreacumulado, no que o autor denomina de circuito primário44 da acumulação, em direção a fluxos de capitais que passam a se fazer presentes, em grande medida, na produção material do espaço ou, como denominado por ele, produção do ambiente construído45.

Tal fluxo geraria o que o autor denomina de circuito secundário da acumulação, circuito esse que tem na captura do espaço e em sua produção material a continua possibilidade e garantia de reprodução. Para Harvey (1982, 1989), a tendência do capital em produzir excedentes geradores de crises de sobreacumulação exige mecanismos e formas necessárias de reabsorção nos circuitos de acumulação para não se desvalorizar.

Segundo o autor, a produção da materialidade do espaço, principalmente da cidade é a condução privilegiada capaz de absorver esses capitais excedentes (HARVEY, 1982, 1989), cabendo à análise urbana esclarecer em que condições e projetos esses excedentes são absorvidos (SANFELICI, 2020).

Assim, o circuito secundário da acumulação estaria ligado à produção do ambiente construído, ou seja, diretamente vinculado aos investimentos no imobiliário,

44 Tal circuito estaria ligado a geração de mais-valia nos processos de produção e distribuição de bens materiais e serviços, ou seja, capital que é investido diretamente na produção.

45 No presente trabalho a noção de ambiente construído é conduzida a partir da concepção encontrada em Harvey (1982[2013] p. 356-357]) de um ambiente “que funciona como um sistema de recurso vasto, humanamente criado, compreendendo valores de uso incorporados na paisagem física, que pode ser utilizado para a produção, a troca e o consumo. Do ponto de vista da produção, esses valores de uso podem ser tanto considerados condições gerais para a produção quanto forças diretas da produção.

90 tanto na construção de habitações, escritórios, prédios comerciais etc., como também na produção e manutenção de materialidades ligadas às infraestruturas e ambientes construídos responsáveis pela “lubrificação” das engrenagens da reprodução, funcionando como uma espécie de capital fixo especial (HARVEY, 1989, 2004).

No interior do circuito secundário do capital, os fluxos se dividem em capital fixo para a produção (instalações fabris e equipamentos, capacidade de geração de energia, entroncamentos ferroviários, portos etc.) e a produção de um fundo de consumo (habitação, por exemplo). São com frequência possíveis os usos conjuntos (a via expressa pode ser usada para atividades tanto de produção como de consumo). Uma parcela do capital que vai para o circuito secundário é incorporada à terra e forma um banco de ativos fixos num dado lugar

— um ambiente construído para a produção e o consumo (o que inclui parques industriais, portos e aeroportos, redes de transportes e comunicações, sistemas de água e esgoto, habitação, hospitais, escolas etc.) (HARVEY, 2004, p. 94).

Deste modo, segundo esta perspectiva, o desenvolver das lógicas do processo de acumulação envolveria uma profunda e intensa dimensão espacial. Esta dimensão espacial diz respeito à utilização do espaço não apenas como “lugar” em que acontece as atividades produtivas ou onde são produzidas mercadorias, mas, fundamentalmente, refere-se a própria produção do espaço como mecanismo necessário para a própria superação de suas crises e continuo processo de acumulação.

There must obviously be a 'surplus' of both capital and labour in relation to current production and consumption needs in order to facilitate the movement of capital into the formation of long-term assets, particularly those comprising the built environment. The tendency towards overaccumulation produces such conditions within the primary circuit on a periodic basis. One feasible if temporary solution to this overaccumulation problem would therefore be to switch capital flows into the secondary circuit46 (HARVEY, 1989, p.

106).

O espaço como mercadoria/produto da reprodução da acumulação não pode ser enxergado ou analisado como qualquer outro produto realizado. Ele deve ser olhado e

46 Em português: Deve obviamente haver um “excesso” de capital de trabalho com relação às necessidades atuais da produção e do consumo a fim facilitar o movimento de capital na formação de bens em longo prazo, particularmente aqueles que constituem o ambiente construído. A tendência à superacumulação produz essas condições no circuito primário periodicamente. Uma solução viável, embora temporária, para esse problema de superacumulação seria, portanto, mudar os fluxos de capital para o circuito secundário” (Tradução nossa).

91 analisado de forma especial, pois possui características únicas que conferem a ele especificidades.

[...] fixed capital in the built environment is immobile in space in the sense that the value incorporated in it· cannot be moved without being destroyed. Investment in the built environment therefore entails the creation of a whole physical landscape for purposes of produc-tion, circulation, exchange and consumption47 (HARVEY, 1989, p. 106).

O olhar direcionado para os processos que passaram a envolver o citado circuito tornou-se paradigmático nas investigações que buscaram e, ainda buscam, analisar as diversas formas com que o capital passou a circular na produção e transformação material do espaço.

Aalbers e Christophers (2014), por exemplo, ao analisarem a centralidade da produção habitacional marcada pelo processo de avanço de suas interações e articulações com os circuitos financeiros revistam a noção de circuito secundário desenvolvida por Harvey (1982, 1989) em que, o autor coloca papel importante para os fluxos entre os circuitos como fundamentais na estruturação de um setor que encontra na produção do ambiente construído possibilidades de acumulação e, afirmam que ...

Harvey’s capital switching may sound uncomfortably structural and abstract, but once we start looking at actual housing crises, it is easy to see how many of them have been caused by overinvestment in the previous years of housing boom48 (AALBERS e CHRISTOPHERS, 2014, p.7).

Portanto, em concordância com Harvey, Aalbers e Christophers (2014) ressaltamos a pertinência da noção de transbordamento entre os circuitos. Isso implica na necessária atenção ao fato que a produção material do espaço e os contínuos ciclos de reprodução do capital possuem relações imediatas e concretas.

É nesse sentido que destacamos e evidenciamos a importância e atenção de se investigar as mudanças recentes do capitalismo e suas novas formas de se relacionar,

47 Em português: o capital fixo do ambiente construído é imóvel no espaço, no sentido de que o valor incorporado nele, não pode ser movido sem ser destruído. O investimento no ambiente construído envolve consequentemente a criação de uma paisagem física inteira para finalidades da produção, da circulação, da troca, e do consumo” (Tradução nossa)

48 Em português: “A troca de capital de Harvey pode parecer desconfortavelmente estrutural e abstrata, mas uma vez que começamos a olhar para as crises imobiliárias reais, é fácil ver quantas delas foram causadas por superinvestimento nos anos anteriores de boom imobiliário” (Tradução nossa).

92 capturar, apropriar e produzir o espaço, principalmente no que diz respeito a sua dimensão econômica-material, o ambiente construído, foco da presente tese.

Diante deste reconhecimento do papel desempenhado pelo circuito responsável pela produção do ambiente construído no processo de acumulação, o circuito secundário, Aalbers e Christophers (2014), constroem o debate sobre as relações contemporâneas entre a produção habitacional e os circuitos de acumulação numa perspectiva da economia política. Para isso, os autores afirmam que o debate sobre o circuito secundário da acumulação desenvolvido em Harvey (1982) é um marco importante e destacam a contribuição do autor para o desenvolvimento das investigações que buscam colocar luz na relação entre finanças e ambiente construído.

The idea of capital switching [...] needs to be situated against the backdrop of Harvey’s wider (1982) argument that financial institutions see the built environment – which includes but is not limited to housing – as an asset in which money can be dis/invested by directing and withdrawing capital to the highest and best use. If the generic

“circuit of capital” which we sketched above (revolving around the production of goods and services) represents the “primary” circuit of capital, then Harvey suggests that we can think of production and reproduction specifically of the built environment, including housing, as a “secondary” circuit of capital49. (AALBERS E CHRISTOPHERS, 2014, p.379).

Os autores chamam a atenção para a concepção mais ampla contida nesta construção analítica desenvolvida em Harvey (1982). Esta abordagem implica no olhar para as instituições, agentes e proprietários relacionados com o “mundo das finanças”.

Tais, veem o ambiente construído como um ativo no qual o dinheiro pode ser investido e direcionando para o melhor e mais alto uso, ou seja, uma tendência de tratar o ambiente construído como um ativo capaz de oferecer remuneração e rentabilidade.

Harvey (1985, p. 107) é categórico ao afirmar que é preciso uma estrutura financeira consolidada, ou seja, um "mercado de capitais em funcionamento", para que esse fluir do circuito primário para o secundário ocorra de forma concreta.

49 Em português: “a ideia de troca de capital precisa ser [...] situada no contexto do argumento mais amplo de Harvey (1982) de que as instituições financeiras vêem o ambiente construído - que inclui, mas não se limita à habitação - como um ativo no qual o dinheiro pode ser investido direcionando e retirando capital para o melhor e mais alto uso. Se o "circuito de capital" genérico que esboçamos acima (girando em torno da produção de bens e serviços) representa o circuito "primário" do capital, Harvey sugere que podemos pensar na produção e reprodução especificamente do ambiente construído, incluindo habitação, como um circuito “secundário” do capital” (Tradução nossa).

93 A general condition for the flow of capital into the secondary circuit is, therefore, the existence of a functioning capital market and, perhaps, a state willing to finance and guarantee long-term, large-scale projects with respect to the creation of the built environment At times of overaccumula-tion, a switch of flows from· the primary to the secondary circuit can be accomplished only if the various manifestations of overaccumulation can be transformed into money capital which can move freely and unhindered into these forms of investment50 (HARVEY, 1985, p. 107).

De forma semelhante, Halbert e Attuyer (2016), também com fortes influências da construção analítica de Harvey (1989, 2001), problematizam a relação entre os circuitos financeiros e a produção do material do espaço urbano. Eles ressaltam que as especificidades que envolvem o ambiente construído na dinâmica de acumulação - alta densidade de infraestrutura, como edifícios, estradas, estádios, aeroportos - demandam porções de espaço, perpetram intensivos investimentos de capital com mobilização e imobilização de parcelas significativas de investimento, e, quase sempre, com profundas relações de dependência de infraestruturas financeiras que fazem circular o capital que estará mais ou menos temporariamente fixado no ambiente urbano construído.

O espaço enquanto instância necessária para o contínuo processo de reprodução e possibilidade de superação de crises de sobreacumulação faz com que “os capitais encontrem no imobiliário uma espécie de refúgio” (LEFEBVRE, 2000, p. 69). Contudo, queremos chamar a atenção do leitor para algumas mudanças, mesmo que sutis em um primeiro momento, mas que consideramos fundamentais e que não podemos perder de vista enquanto transições e mutações originárias no próprio desenvolvimento das forças produtivas ligadas aos circuitos de acumulação vinculados à produção do ambiente construído. Assim, consideramos necessário repensar as posições, papéis e funções dos setores relacionados a este circuito mediante as transformações históricas do capitalismo.

O olhar direcionado para tais mudanças e transições, exige antes de mais nada retomar a própria trajetória desta relação, ou seja, uma relação que em um primeiro

50 Em português: “Uma condição geral para o fluxo de capital no circuito secundário é, portanto, a existência de um mercado de capitais em funcionamento e, talvez, um Estado disposto a financiar e garantir projetos de longo prazo e grande escala no que diz respeito à criação de edifícios e meio construído. Em tempos de superacumulação, uma mudança de fluxos do circuito primário para o secundário só pode ser realizada se as várias manifestações de superacumulação puderem ser transformadas em capital monetário que pode se mover livremente e sem obstáculos para essas formas de investimento” (Tradução nossa)

94 momento apresenta uma relação de subordinação do circuito imobiliário, ou circuito secundário da acumulação em relação ao circuito produtivo industrial, ou circuito primária da acumulação.

Retoma-se, portanto, o ponto comum tanto em Harvey (1982, 1989), quanto em Lefebvre (2000, p. 69) que demonstraram que “esse circuito do imobiliário foi, durante muito tempo, um setor subordinado, subsidiário”, mas que, a partir do próprio curso de desenvolvimento capitalista, “pouco a pouco se tornou um setor paralelo” (LEFEBVRE, 2000, p. 69) e, no capitalismo contemporâneo, se mostrou e se mostra estratégico na consolidação do regime de acumulação sob domínio das finanças.

Tal posição estratégica em uma estrutura de acumulação como posição privilegiada do capital financeiro já era prevista, em certa medida, por Lefebvre (2000), originalmente publicado em 1972.

“A mobilização das riquezas fundiária e imobiliária deve ser compreendida como uma das grandes extensões do capitalismo financeiro; a entrada da construção no circuito industrial, bancário e financeiro foi um dos objetivos estratégicos durante o último decênio (LEFEBVRE, 2000, p. 68).

Nesse mesmo sentido, Méndez (2019, p.317) ressalta que “el capitalismo ha tomado posesión del suelo; lo ha movilizado de tal modo que el sector pasa a ser central51”.

O capital que passa a circular na produção do espaço, abandonando a produção que se refere à produção de bens de capital, de consumo ou bens intermediários encontra no imobiliário, o ambiente construído, uma “terra fértil” para sua ação e reprodução. O avançar de tal dinâmica e a relação entre o espaço, na forma de ambiente construído e o capitalismo, agora na forma de capitalismo financeirizado, permite compreender que a

Ciudad contemporánea no es tan solo el espacio donde se generan plusvalías derivadas de las diferentes actividades que en ella se localizan, sino que la producción de ese espacio urbano se convierte también en fuente esencial para esa generación de plusvalías y la vivienda en mercancía, abriendo así una nueva frontera para la acumulación de capital52 (MÉNDEZ, 2019, p.317).

51 Em português: “o capitalismo apoderou-se da terra; tem mobilizado de tal forma que o setor passa a ser central” (Tradução nossa)

52 Em português: “A cidade contemporânea não é apenas o espaço onde são geradas as mais-valias derivadas das diferentes atividades que nela se situam, mas a produção desse espaço urbano torna-se

95 Botelho (2007), ao analisar a posição da cidade num contexto de avanço das lógicas vinculadas aos circuitos de acumulação financeiros, destaca que o espaço, e em particular o espaço urbano, passou a ter cada vez maior importância para o capital e a predominância do financeiro nas estratégias de acumulação capitalistas tem a produção do espaço como uma das condições de sua realização.

Portanto, o espaço, mais especificamente, o espaço urbano, passou a ter cada vez maior importância para o continuo processo de acumulação do capital, ao mesmo tempo em que passou a ser comandado em grande medida pelas próprias dinâmicas e características do modo de produção capitalista (CARLOS, 2004; 2007; 2011). E a predominância das lógicas, estratégias e agentes financeiros nas estratégias de acumulação capitalista tem a produção do espaço com uma das condições de sua realização (BOTELHO, 2007).

É a partir destas problematizações e construções que encaminhamos o desenvolvimento analítico da presente seção e, propomos lançar mão da asserção de possibilidade de troca da expressão “circuito secundário” para, a partir de agora,

“circuito imobiliário”.

No livro A Revolução Urbana, originalmente publicado em 1970, Lefebvre (1999) também argumenta em um sentido semelhante sobre o desenvolvimento do circuito responsável pela produção do imobiliário e apropriação do espaço. Para o autor:

O "imobiliário", como se diz, desempenha o papel de um segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado dos "bens" não-duráveis ou menos duráveis que os

"imóveis". Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressão, para ele afluem os capitais. Eles começam com lucros fabulosos, mas logo se enterram. Nesse setor, os efeitos

"multiplicadores" são débeis: poucas atividades são induzidas. O capital imobiliza-se no imobiliário. A economia geral (dita nacional) logo sofre com isso. Contudo, o papel e a função desse setor não deixam de crescer. Na medida em que o circuito principal, o da produção industrial corrente dos bens "mobiliários", arrefece seu impulso, os capitais serão investidos no segundo setor, o imobiliário.

Pode até acontecer que a especulação fundiária se transforme na fonte principal, o lugar quase exclusivo de "formação do capital", isto é, de realização da mais-valia. Enquanto a parte da mais-valia global formada e realizada na indústria decresce, aumenta a parte da mais-valia formada e realizada na especulação e pela construção imobiliária.

também uma fonte essencial para essa geração de mais-valias e a habitação como mercadoria, abrindo assim uma nova fronteira para acumulação de capital” (Tradução nossa)

96 O segundo circuito suplanta o principal. De contingente, torna-se essencial (LEFEBVRE, 1999, 146-147).

Ainda em Lefebvre (2000), é possível observar o início do curso de um processo de autonomização crescente do circuito produtivo responsável pela produção do imobiliário e a captura do espaço (terra) passando, assim, a ter uma inserção própria na dinâmica dos circuitos de reprodução do capital, podendo inclusive, em alguns momentos e contextos, tornar-se o setor principal se a estrutura de reprodução capitalista vigente assim precisar em determinado momento histórico (BOTELHO, 2007, p.18).

Deste modo, baseados em Lefebvre (2000), destacamos que durante muito tempo, esse “imobiliário” não representou, no capitalismo, uma importância principal, ou que possibilitaria relativa autonomia, sendo até determinado momento entendido com uma importância menor.

Muito disso em função dos entraves para a conquista do capitalismo em relação ao solo, à propriedade da terra. No entanto, em Lefebvre (2000) o autor defende e enfatiza que o capitalismo tomou possessão do solo, do espaço, e isso abre um campo importante de investigações.

Durante muito tempo, o imobiliário, no capitalismo só teve uma importância menor. O solo pertencia aos destroços de uma classe vencida, os proprietários fundiários (...) de origem feudal. Outrora, a construção, ramo da produção inicialmente subordinado quase artesanal, tinha menos importância que a produção do aço e do açúcar (...) Ora, a situação desse “ramo” mudou completamente, e não apenas nos grandes países industriais. Para explicar esse fato é preciso mostrar como e porque o capitalismo apossou-se do solo, do espaço. Daí a tendência disso que outrora foi o “imobiliário” doravante mobilizado (construções, especulação) tornar-se central no capitalismo por se tratar de uma indústria nova (LEFEBVRE, 2000, p. 117).

É a partir destas importantes provocações realizados por Lefebvre, ainda em 1972, que destaca grandes transformações na relação entre o capitalismo e o espaço, que Melazzo (2019) aponta elementos fundamentais que devemos nos atentar para avançarmos na compreensão desta relação na atualidade.

a) a ênfase na mudança de situação do ramo imobiliário, que chama a atenção para um processo necessariamente histórico de transformações do capitalismo; b) o reconhecimento do tratamento da propriedade do solo como uma herança de tempos pretéritos, que aponta corretamente que o capitalismo se apossou dele; c) o fato desse ramo ter se constituído em central para o capitalismo,

97 deduzindo-se daí que seus processos de reprodução ampliada encontram nesse ramo condições necessárias (e suficientes?) à sua lógica expansiva e d) a expressão usada pelo autor, mobilizado, para dar conta de uma ação do capital sobre o que, antes, era apenas imóvel (MELAZZO, 2019, p. 74).

Trata-se, assim, do reconhecimento histórico do curso de uma grande transformação. Trata-se do reconhecimento das permanentes e importantes mudanças na lógica capitalista de expansão e contradição que lhe são inerentes (MELAZZO, 2019).

É diante de tais reconhecimentos que podemos elencar como evidentes, dois pontos que julgamos essenciais na argumentação aqui em desenvolvimento, no que diz respeito a relação entre a produção do espaço e a sua captura pelos circuitos acumulação capitalista,

I) evidencia-se uma relação mais do que de proximidade, quase que simbiótica entre o circuito de reprodução capitalista e a produção do espaço, na medida em que o capitalismo captura o espaço e o produz como estratégia fundamental de sobrevivência e contínua reprodução e;

II) tal relação gera quase que por consequência o desenvolvimento de um circuito especializado na produção material do espaço que a partir de determinado momento passa a exercer funções, dinâmicas e papéis próprios e “autônomos”, não num sentido de isolado, mas no sentido de possuir dinâmicas, características e lógicas de acumulação que vão além de um circuito “auxiliar”, dando origem a um verdadeiro circuito imobiliário, que num primeiro momento possuía uma posição subordinada, como um “circuito secundário da acumulação”.

Deste modo, é reconhecido, de fato, um circuito próprio, o imobiliário, que passou a obter o crescimento de sua importância na composição da acumulação, ou como nas palavras de Lefebvre (2000, p.69), se tornou um circuito “paralelo”53, não no sentido de não se relacionar com outras frações e circuitos do capital, muito pelo

53 A palavra paralela em seu significado rigorosa diz respeito a cada uma de duas retas coplanares que não se cortam, ou seja, é importante levantar a ressalva em relação a utilização do termo para se referir as características do referido circuito da acumulação, pois a rigor um circuito imobiliário paralelo não possuiria relação com outros circuitos, pois seria paralelo. Porém, é evidente que tal circuito não é paralelo e isolado, a crise financeira imobiliária originada nos EUA em 2008/09 é um exemplo claro das intersecções e relações que os circuitos da acumulação possuem dentro do sistema, assim, uma crise inicialmente diretamente relacionado aos mercados imobiliários financeirizados se generalizou em uma crise econômica ampla.

98 contrário54, mas no sentido de apresentar agentes, estratégias e lógicas próprias que possibilitaram o crescer de sua importância, que no capitalismo contemporâneo, apresenta o desenvolvimento de lógicas, estratégias e instrumentos característicos do período em que a dimensão financeira assumi aspecto central (AALBERS, 2008, 2014, 2018; MÉNDEZ, 2019).

2. 2. A captura do imobiliário e da propriedade como elementos fundamentais no processo de financeirização

A partir das já identificadas contínuas rodadas/ciclos de transformações gerais que reforçam o avanço de agendas neoliberais e impulsionam a centralidade que os agentes, estratégias e fluxos financeiros exercem no processo de acumulação no Brasil, é possível articula-las à investigação de tais mudanças recentes em consonância com a produção do espaço urbano, em forma de ambiente construído.

Sendo o ponto de partida, o entendimento do espaço urbano e a sua materialidade como dimensões fundamentais para a reprodução do processo de acumulação (LEFEBVRE, 1999; HARVEY, 1978, 1982) e sendo ele simultaneamente resultado, condição e expressão de um circuito da acumulação, o circuito imobiliário passa a estar cada vez mais ter sinergias, proximidade e estar conectado aos circuitos de valorização financeira (AALBERS, 2008, 2014, 2018).

Para Aalbers (2018, p. 381) “the absorption of capital by real estate is one of the defining characteristics of the current financialized, real estate-driven regime of accumulation55”. Reforçando esta concepção, Aalbers (2008) já destacava que a financeirização da produção imobiliária/habitacional não pode ser lida como somente mais um exemplo do avanço da financeirização da economia, ou seja, não é um mero resultado consequente do desenvolvimento de uma estrutura de acumulação em que

54 Na Parte II desta tese, no capítulo 4, será dado ênfase esse processo de centralidade que o circuito de acumulação que encontra na produção do espaço seu “lócus” de reprodução, bem como será argumentando como tal circuito de acumulação passa a conformar a participação de diferentes frações de capitais que passam a encontrar no imobiliário/fundiário oportunidades importantes de apropriação, criação e reprodução de rendas. Nesse sentido, o imobiliário não se torna um circuito/setor isolado/paralelo sem relação com outros, pelo contrário, ele passa a ser composto por frações diversas de capitais que se convergem para ele na busca de oportunidades de rentabilidade.

55 Em português: “A absorção de capital pelo imobiliário é uma das características definidoras do atual regime de acumulação financeirizado e imobiliário” (Tradução nossa).