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Do regime de aluguel ao regime de casa própria como solução dos problemas habitacionais: difusão do ideário da propriedade e a questão da habitação na agenda

PARTE II ANÁLISE HISTÓRICA E GEOGRÁFICA DA RELAÇÃO ENTRE A TRÍADE –

4.2. Do regime de aluguel ao regime de casa própria como solução dos problemas habitacionais: difusão do ideário da propriedade e a questão da habitação na agenda

do Estado

As claras influências do predomínio de orientação liberal na República Velha e a postura do Estado, até 1930, em recusa a adotar qualquer medida que esboçasse algum tipo intervenção direta no âmbito da produção habitacional voltada para classe dos trabalhadores e, quase que por consequência, o privilégio dado a produção privada da habitação são importantes elementos já bem debatidas em importantes análises, para citar apenas alguns, Rolnik (1981); Bonduki, (1994; 2002; 2014) e Bonduki e Koury (2014).

Deste modo, destaca-se que as iniciativas do Estado restringiam-se à repressão de situações mais graves de insalubridade, via legislação sanitária e ação policial, e à concessão de isenções fiscais, que beneficiavam basicamente os proprietários de casas de locação, ampliando sua rentabilidade (ROLNIK, 1981), ou seja, medidas que alimentavam um regime rentista de acumulação (BONDUKI, 1994).

173 Os financiamentos com recursos estatais eram poucos e raros, constantemente reprimidos por falta de disponibilidade orçamentária ou por outras prioridades de governo, que levavam às constantes descontinuidades de programas (TRIANA FILHO, 2006). Desta forma, uma espécie de “rentiers” urbanos pôde produzir uma ampla diversidade de soluções habitacionais de aluguel para os diferentes segmentos sociais e faixas de renda, dando origem a uma gama variada de tipologias que marcaram a paisagem da cidade nas primeiras décadas do século XX, quando a moradia operária se localizava próxima à zona industrial (BONDUKI, 1994).

Tal orientação e ideário conferiu importância a difusão da lógica do aluguel como

“porta de entrada” para a solução da habitação urbana. A título de exemplo, Bonduki (1994, p. 713) aponta que ...

[...] em São Paulo, em 1920, apenas 19% dos prédios eram habitados pelos seus proprietários, predominando largamente o aluguel como forma básica de acesso a moradia. Considerando-se que boa parte dos prédios ocupados pelos trabalhadores de baixa renda eram cortiços e, portanto, ocupados por mais de uma família, conclui-se que quase 90% da população da cidade, incluindo quase a totalidade dos trabalhadores e da classe média, era inquilina, inexistindo qualquer mecanismo de financiamento para aquisição da casa própria.

Ainda de acordo com Bonduki (1994, p. 715), os princípios que direcionavam o afastamento do Estado em relação a tais questões eram explicitamente claros, quando é observado, por exemplo, “o relatório da comissão encarregada de propor iniciativas para enfrentar o problema habitacional”.

A Comissão julga dever aconselhar a máxima circunspecção na ação direta do poder público na construção de casas populares, procurando incentivar por todos os meios ao seu alcance a iniciativa privada [...]

Não haja ilusões. No estado atual de nossa organização social, política e econômica, a construção de habitações populares pelo poder público diretamente ou por intermédio de empresas, longe de ser uma solução, será uma causa do agravamento da crise atual. O simples anúncio de que o poder público irá construir alguns milhares de casas que serão oferecidos por preços e aluguéis fixos será o bastante para afastar automaticamente os capitais particulares que anualmente se empregam em construções (BONDUKI, 1994 apud CINTRA, 1926, p.

333).

O ideário exposto no relatório aponta em um sentido claro, a orientação de se privilegiar a atuação da iniciativa privada, com incentivos à produção de moradias mais baratas e, portanto, a aluguéis mais baixos, lógica predominante em todo o país. Desta

174 forma, o Estado não deveria, de maneira alguma, participar da produção habitacional para operários, mas sim, estimular os capitais privados a investirem.

Segundo Bonduki (1994, p. 715) esta foi a lógica que orientou, “de modo geral, o Estado liberal da República Velha”, o que impulsionou uma “solução tida como a ideal”

implicando em robustos incentivos do poder público para “a promoção de vilas operárias pelos próprios industriais para servirem de moradia a seus empregados”.

As vilas operárias eram os conjuntos de casas construídas pelas indústrias para serem alugadas a baixos aluguéis ou mesmo oferecidas gratuitamente a seus operários. Estas iniciativas tiveram um impacto importante em várias cidades brasileiras, pois são os primeiros empreendimentos habitacionais de grande porte construídos no país (BONDUKI, 1994, p. 716).

De forma geral, é possível sintetizar a questão da habitação, até este momento em foco, como uma questão que não estava nos planos do Estado, pelo menos não como problema e questão de importância central.

No período Vargas93, iniciada com o chamado governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934), colocou-se em movimento uma nova lógica e uma nova estrutura de governo, com mudanças importantes entre as classes dominantes e dominadas, entre, a agora, antiga elite agrária exportadora e uma nova urbano-industrial (OLIVEIRA, 1971; 2003; 2013; SCHÜRMANN, 1978; BONDUKI, 1994). A emergência de reivindicações referentes a questões de habitação, saúde e educação (SCHÜRMANN, 1978), levaram o Estado brasileiro a uma nova postura referente, principalmente, a habitação, destaque do presente debate.

O projeto de desenvolvimento baseado na industrialização do país é assumido como objetivo de governo, como emblema da modernização do país ante a fase precedente – agrária, rural, exportadora de bens primários, escravista, colonial. Porém, tal modernização não acontece sem se combinar com tais elementos supracitados, resultando em uma modernização conservadora (TAVARES, 1975; MELLO, 1975;

OLIVEIRA, 2003; NATAL, 2015; SANTOS, 2018).

93 Tal período é referido por uma importante parte da bibliografia sobre a história política brasileira como a “Era Vargas”, em que Getúlio Vargas governou o país em dois períodos: de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Sua longa permanência no poder tornou-o uma das personalidades mais marcantes da vida política nacional no século XX, e permitiu que se falasse em uma "Era Vargas", tendo tal nomenclatura extrapolado os espaços acadêmicos e se constituído como uma noção popular.

175 É neste período de Vargas (1930-1954) em que é possível identificar uma primeira inflexão importante do Estado brasileiro em direção a uma real intervenção, tanto na produção habitacional, quanto no mercado de aluguéis, a articulação destas duas dimensões, é fundamental na argumentação aqui pretendida (BONDUKI, 1994).

É diante da identificação desta inflexão referente a relação entre o Estado e a questão habitacional no Brasil, que podemos encontrar o desenvolver de mais uma rodada jurídico-normativa que passa a operar importantes mudanças, adaptações e (re)arranjos sobre os papéis, funções e posição da propriedade na estrutura social brasileira.

Esta rodada que teve como seu principal marco jurídico normativo, a Lei do Inquilinato, promulgada em 1942, que será lido por nós como evento (SANTOS, 2004), noção já destacada nesta Parte II da tese, que combinada com importantes normativas, leis e regulamentações, algumas anteriores e outras posteriores a este evento, desenhou a operacionalidade da rodada jurídico-normativa que se desenrolou entre 1930 e 1946, como exposto na Figura 2, responsável pela substituição de um regime de aluguel por um regime de propriedade como solução para o problema da habitação no Brasil.

Como já destacado nesta tese, é importante para a presente argumentação a atenção à tais episódios, que serão destacadas e terão seus efeitos explicados, com o olhar atento para suas articulações e combinações que configuraram uma mudança profunda no regime de propriedade no Brasil, mudança que coloca em curso uma inversão histórica na forma como propriedade, neste caso a habitação, passou a ser tratada, se trata da inversão de um regime de aluguel - regime em que a solução para habitação nas cidades era mediado pelo pagamento periódico de rendas pelo uso do imóvel residencial, para um regime de propriedade privada - regime em que a aquisição ou construção da casa própria passa a se configurar como modelo ideal de combate ao problema habitacional nas cidades.

Quase que por consequência a propriedade imobiliária/residencial privada se tornou o objeto de desejo e aspirações para a sociedade, nos diferentes estratos econômicos, a “realização do sonho da casa própria” assumiu o meio necessário para atingir o “status de cidadão” (COSTA, 2013, p. 450).

176 É um consenso científico, com destaque para Bonduki (1994), que foi neste recorte temporal, pós-1930, dentro de um projeto de desenvolvimentismo com fortes influencias e presença do Estado, o período em houve o abandono da postura de distanciamento do Estado em relação a questão habitacional, e assim, de deixar a questão da construção, comercialização, financiamento e locação habitacional para às

“livres forças do mercado”, lógica dominante na República Velha.

Klink (2020) descreve que este estágio do modelo nacional desenvolvimentista baseado na expansão industrial comandado por uma emergente burguesia urbano-industrial enfrentou dilemas concretos em relação a produção habitacional para grande massa trabalhadora, e tais problemas não obtiveram soluções simples e concretas.

Therefore, industrialists and policy makers agreed that housing was a strategic sector, both in terms of its capacity to generate income and employment and to mobilize political support for the nationaldevelopmental project. As such, it couldn’t be left to the market but required active state organization and intervention (Bielschowsky, 1988; Bonduki, 1998). This was easier said than done, however. It would take several decades of smallerscale initiatives before a first national housing system was established in the mid1960s94 (KLINK, 2020, p. 92).

A criação de um mercado de trabalho urbano e a ampliação das atividades comerciais e financeiras originaram uma demanda crescente por habitações e serviços urbanos, mas apenas em parte respondida pelos “próprios fazendeiros, comerciantes, industriais e trabalhadores”, o que gerava um modelo de produção de cidades e direcionava o desenvolvimento de um “certo consenso” de que a questão da habitação popular não poderia ser enfrentada através do “livre jogo do mercado”, e que era indispensável a intervenção do Estado (BONDUKI, 1994, p. 718).

Esta visão está clara no discurso do empresário Roberto Simonsen, “presidente da importantíssima Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e influente mentor da industrialização brasileira no período getulista” (BONDUKI, 1994, p. 718).

“Dia a dia se verifica, nas grandes cidades, que não é possível obter, da iniciativa particular, a construção de vivendas populares em número

94 Em português: “Portanto, os industriais e os formuladores de políticas concordaram que a habitação era um setor estratégico, tanto em termos de sua capacidade de gerar renda e emprego, quanto de mobilizar apoio político para o projeto nacional de desenvolvimento. Como tal, não podia ser deixado para o mercado, mas exigia organização e intervenção ativa do Estado (Bielschowsky, 1988; Bonduki, 1998). No entanto, era mais fácil falar do que fazer. Seriam necessárias várias décadas de iniciativas em pequena escala antes que um primeiro sistema habitacional nacional fosse estabelecido em meados dos anos 1960” (Tradução nossa).

177 suficiente para as necessidades das populações. No regime econômico em que vivemos, os capitais procuram lucros ou remunerações que não podem ser dados pelos parcos orçamentos das famílias operárias e das classes menos favorecidas... A casa individual no regime normal, só deve ser proporcionada àqueles que tem recursos suficientes para arcar com o ônus criado. Dadas as exigências que devem preencher as habitações pelo conceito real que hoje temos da vida, não é possível proporcionarmos, pelos meios comuns, habitação conveniente para a grande massa popular das grandes cidades. ... Não é possível também aguardamos, por tempo indeterminado, que o padrão geral de vida médio se eleve, por toda parte, a um tal grau, que dentro do regime econômico vigente e sob a ação da lei da oferta e da procura, possa a iniciativa particular proporcionar casas confortáveis para todos os que delas precisam [...] problema de solução difícil por simples iniciativa privada, porque num país onde o capital é escasso e caro e onde o poder aquisitivo médio é tão baixo não podemos esperar que a iniciativa privada venha em escala suficiente ao encontro das necessidades da grande massa, proporcionando-lhe habitações econômicas [...] O problema das moradias das grandes cidades populares passa a ser questão de urbanismo, subordinada às necessidades de ordem individual, social, técnica, demográfica e econômica. Para sua integral solução, torna-se indispensável a intervenção decisiva do Estado” (SIMONSEN, 1942, p.24-25, grifo nosso).

Diante disto, o Estado passou a assumir, desde aquele momento, o problema da habitação para sí, mas as iniciativas tomadas, no entanto, foram desarticuladas. “O resultado foi a ausência de uma política centralizada e o surgimento de uma colcha de retalhos de intervenções” (BONDUKI, 1994, p. 719).

Esta nova postura do Estado brasileiro na questão da habitação foi coerente com a nova estrutura político-econômica que se inaugurava, mais do que isto, era parte integrante de uma estratégia mais ampla desta nova estrutura, desenvolvida pelo governo Vargas, que buscou impulsionar a formação, estruturação e consolidação de uma sociedade urbano-industrial, capitalista, mediante a forte intervenção estatal em todos os âmbitos da atividade econômica e, a questão habitacional se tratava de uma dimensão importante do projeto nacional-desenvolvimentista pretendido por Vargas (OLIVEIRA, 1971; 2003; 2013).

Primeiro, a habitação vista como condição básica da reprodução da força de trabalho e, portanto, como fator econômico na estratégia de industrialização do país; segundo, a habitação como elemento na formação ideológica, política e moral do trabalhador, e, portanto, decisiva na criação do “homem novo” e do trabalhador-padrão que o regime queria forjar, como sua principal base de sustentação política.

(BONDUKI, 2002, p. 73).

178 Portanto, destaca-se que é a partir de 1930, primeiro com o “governo provisório”

de Vargas (1930-1934) e, nos dois períodos seguintes em que vigorou a ditadura da Era Vargas (1934- 1937 e 1937-1945), prosseguindo pelo governo Dutra (1946-1951) e pelo novo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), então eleito pelo voto popular, que é possível identificar iniciativas do Estado brasileiro de viabilizar a construção de uma lógica de implementação de uma difusão da política de casas próprias, que até então era dominado pela lógica do aluguel.

Entre as medidas mais importantes implementadas pelo governo no que diz respeito à questão habitacional, estiveram o decreto-lei do inquilinato, em 1942, que, congelando os aluguéis, passou a regulamentar as relações entre locadores e inquilinos, a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência e da Fundação da Casa Popular, que deram início à produção estatal de moradias subsidiadas e, em parte, viabilizaram o financiamento da promoção imobiliária, e o Decreto-Lei n.°58, que regulamentou a venda de lotes urbanos a prestações (BONDUKI, 1994, p. 711)

Mais do que os efeitos individuais das citadas medidas, é principalmente a articulação entre elas, que podemos destacar como a rodada jurídico-normativa, vide Figura 2, que foram responsáveis por operacionalizar importantes mudanças e (re)arranjos sobre o papel e posição da propriedade no período em questão.

Como já mencionado neste capítulo, consideramos a Lei do Inquilinato de 1942 o evento que operacionaliza e dá a coerência na citada articulação entre as medidas e episódios conduzidos no intervalo. Contudo, a referida lei não foi o primeiro episódio desta rodada jurídico-normativa, o primeiro episódio pode ser identificado como a criação e o funcionamento das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs).

Embora as carteiras prediais dos IAPs sejam anteriores, estes órgãos não eram destinados especificamente a enfrentar o problema de habitação, e sim instituições previdenciárias, agindo complementarmente dentro de uma lógica marcada pela necessidade de investir os fundos de reserva da Previdência Social para preservar seu valor (BONDUKI, 1994).

No início, as atividades do IAPs, se concentravam na aplicação dos recursos arrecadados em oportunidades de investimentos que tivessem retorno garantido para o fundo, pois seus objetivos eram a concessão de aposentadorias, a produção imobiliária

179 surgia como possibilidades de investimentos, mas não como importância central na habitação, era somente “um meio para um fim”, a rentabilidade do fundo era o objetivo.

A partir de 1937, “são criadas as carteiras prediais dos institutos autorizadas a destinar 50% de suas reservas acumuladas ao financiamento de construções” (NOGUEIRA, 1998).

Contudo, ainda assim, os IAPs foram as primeiras instituições públicas de importância a tratar da questão habitacional. A criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões representou um mecanismo através do qual foi possível a reunião de consideráveis recursos que afluíam para cofres dos IAPs, estes recursos proviam do depósito compulsório de empresas e trabalhadores para o pagamento futuro de aposentadorias e pensões, mas como já destacado, não tinham destinação imediata a produção habitacional por finalidade, eles podiam financiar a construção civil, mas isso ocorria mais por uma questão de oportunidade do que por finalidade (BONDUKI, 1994).

Vale destacar ainda que, o sistema era fragmentado e atendia apenas a associados, ou seja, relativamente poucos trabalhadores com vínculos formais de emprego. Ainda assim, este episódio pode ser considerado uma experiência importante do ponto de vista da história da habitação social, do pacto de poder da Era Vargas e do setor da construção (BONDUKI, 1994; FIX, 2011).

Diante da natureza dos fundos dos IAPs, carteiras de pensões privadas, desencadeou-se um distanciamento substancial dos investimentos dos IAPs no setor imobiliário em relação a demanda social pela moradia. “A principal preocupação para os gestores de carteiras imobiliárias era, definitivamente, a manutenção da estabilidade econômico financeira das respectivas instituições previdenciárias” (TRIANA FILHO, 2006, p. 45). Essa característica, que é fundamental nas estratégias de funcionamento do fundo, determinou os limites, volumes e os direcionamentos das aplicações na produção habitacional “para a classe trabalhadora [...] sem dilapidar as reservas da Previdência”

(idem). Diante disto, os volumes aplicados no imobiliário deveria responder a um suposto equilíbrio financeiro dos IAPs.

Outro episódio integrante desta rodada jurídico-normativa que em articulação com os demais elementos ganha importância na composição do cenário, também destacado na Figura 2, é o Decreto-Lei n°. 58, instituído em 1937, ele regulamentou a venda de lotes urbanos a prestações.

180 O decreto de lei em destaque foi responsável por regulamentar a aquisição de terrenos a prestações, dando garantias ao comprador do lote, entre outros aspectos (BONDUKI, 1994). Ele foi a indicação fundamental da condução de mudanças claras na orientação do modelo de habitação que daria o tom da sociedade nos anos seguinte, de um modelo baseado no aluguel para um modelo de propriedade, pois mesmo já havendo a institucionalização da propriedade privada desde 1850, bem como já explicado na presente tese, é com o decreto de lei de 1937 em destaque, que podemos observar a primeira tentativa de criação/formação de um mercado fundiário urbano de forma estruturada e legal.

Mais do que isso, este decreto de lei se tratou de um elemento importante na ampliação do padrão periférico conduzido pela autoconstrução habitacional da classe trabalhadora como alternativa de habitação popular. Segundo Bonduki (1994) embora já se observasse uma consistência importante na prática de loteamentos na área externa da cidade, tal prática ainda não estava configurada como um mercado fundiário destinado especificamente aos segmentos populares.

Essa característica passou a “ganhar corpo” e estrutura a partir de tais mudanças, ou seja, pós-1937, com a criação das bases estruturantes de um mercado fundiário formal que visava “estimular o trabalhador a edificar sua casa, com a entrega, concomitantemente com a venda do lote, do material de construção já colocado no local” (BONDUKI, 1994, p. 730).

Por conseguinte, outro episódio importante desta rodada jurídico-normativa, episódio este que estamos lendo como um evento, nos termos desenvolvidos por Santos (2004), por se tratar da institucionalização que se encarregou de amarrar e articular os episódios supracitados e, mais do que isso, impulsionou resultados que desencadearam mudanças importantes no regime de propriedade no Brasil, o marco legal que estamos chamando a atenção é a Lei do Inquilinato, de 1942.

Como já exposto neste texto, identificamos no desenrolar da rodada jurídico-normativa em debate o processo de substituição de um regime habitacional baseado nos aluguéis por um regime habitacional que passou a se fixar na busca pela casa própria, diante desta constatação, argumenta-se aqui que a Lei do Inquilinato de 1942 possui papel central neste movimento.

181 Até o período em debate, início da década de 1930, a produção habitacional voltava-se à preencher um mercado de aluguel nas grandes cidades brasileiras, está prática era considerada uma atividade altamente rentável e livre de grandes riscos de inadimplência, ou seja, muito segura do ponto de vista do investidor, além disto, a legislação era bastante flexível e, como já mencionado, haviam fortes estímulos para incentivar a produção habitacional privada para aluguéis, em detrimento de um afastamento do Estado em relação a questão habitacional.

Tais aspectos levaram Bonduki (1994, p. 713) a reconhecer a figura dos “rentiers urbanos”, um investidor imobiliário que se concentrava em produzir “soluções habitacionais de aluguel para os diferentes segmentos sociais e faixas de renda”, com isso, afirma-se que até o “início da década de 40, a grande maioria dos trabalhadores e da classe média eram inquilinos” (p. 720).

O decreto de Lei do Inquilinato, em 1942, foi uma medida de enorme alcance provocando grandes consequências na produção, distribuição e consumo de moradias populares, ela foi responsável por instituir congelamento dos valores locativos e regulamentou as relações entre proprietários e inquilinos. Tal desregulamentação existente entre proprietários e inquilinos gerava um movimento de fragilidade na estabilidade da moradia, ou seja, o processo de despejo de um inquilino de uma residência pelo proprietário era simples, rápido e fácil (BONDUKI, 1994; TRIANA FILHO, 2006).

Como o aluguel representava uma parcela fixa de grande peso a ser despendida mensalmente, seu congelamento teve forte impacto para as massas urbanas — os índices do custo de vida e da inflação subiram exageradamente desde 1938 — ampliando as bases de sustentação do regime. No entanto, é preciso ressaltar que o governo sempre procurou supervalorizar o aspecto de “defesa da economia popular”

da lei, quando este foi apenas um dos objetivos de uma lei que foi também instrumento de política econômica (BONDUKI, 1994, p. 720).

Esta forma de intervenção estatal na provisão de moradia propiciou inúmeras alterações nas relações entre inquilinos e proprietários, o que levou à edição de várias alterações na legislação ao longo dos 22 anos de vigência do congelamento (TRIANA FILHO, 2006). Um dos principais efeitos do congelamento dos aluguéis foi o declínio dos interesses dos “rentiers urbanos”, pois, num período de inflação crescente o congelamento criou um ambiente absolutamente desfavorável ao investimento em

182 moradias de aluguel, ou seja, o que observamos com a Lei do Inquilinato é um “golpe potente” sobre os desideratos da renda fundiária que conferia aos imóveis de aluguel uma posição especial nos investimentos. Diante disto, o que houve foi o redirecionamento das estratégias destes agentes em direção a venda das casas que eram destinadas ao aluguel como forma de reaver o capital desvalorizado por aluguéis desatualizados.

Diante deste cenário, “o investimento em casas de aluguel, até então atraente, deixa de ser rentável, liberando recursos e estimulando a aplicação de capitais na indústria” (BONDUKI, 1994, p. 721), tal fato revela uma outra faceta importante da política de congelamento dos aluguéis e portanto, a política de congelamento da renda fundiária, se tratou da tentativa do governo desenvolvimentista induzir e impulsionar os investimentos no processo produtivo via industrialização em detrimento do necessário declínio de uma produção habitacional rentista que absorvia importantes fatias de capital excedente.

Como se sabe, buscou-se impulsionar um processo de industrialização que não contava com uma base de acumulação prévia nem com disponibilidade de capitais externos. Seria, portanto, necessário mobilizar capitais internos, canalizando para empresa industrial recursos que normalmente se inclinariam para outros setores da economia. Com esse objetivo o governo tomou uma série de medidas de controle administrativo que substituem os mecanismos de mercado, visando fazer a economia funcionar de forma não automática (Oliveira, 1971). Acreditamos que a lei do inquilinato foi fixada, pelo menos complementarmente, com este objetivo [...] O congelamento dos aluguéis também se situa entre as medidas que visam reduzir o custo de reprodução da força de trabalho para elevar o patamar de acumulação da empresa capitalista sem rebaixar acentuadamente as condições de vida dos trabalhadores, uma das estratégias utilizadas para intensificar o processo de crescimento industrial, salvaguardando o pacto de classes. Neste sentido, a lei do inquilinato servia excepcionalmente ao modelo de desenvolvimento econômico que se impulsionava, seja por canalizar recursos ao setor industrial, seja por contribuir para a redução do valor da força de trabalho e dos salários (BONDUKI, 1994, p. 720-721).

As consequências da lei do inquilinato para o processo de produção habitacional foram intensas, gerando forte escassez, pois a iniciativa privada, principalmente os grandes investidores, reduziram drasticamente a construção de casas de aluguel, aumentando de forma dramática a carência de habitações nas grandes cidades

183 brasileiras intensificando ainda mais o grave problema da habitação nessas cidades (MELO, 1992; BONDUKI, 1988, 1994; TRIANA FILHO, 2006).

A Lei do Inquilinato demonstrou que “nem sempre a adoção de instrumentos supostamente sociais no âmbito de intervenções no mercado habitacional é positiva”

(BONDUKI, 1994, p. 721). Em tese, a estabilização dos valores locativos poderia ter beneficiado os já alojados, mas o processo de despejos se intensificou, pois os dispositivos legais não deram conta de garantir a efetiva estabilidade ao inquilino, apenas direcionou o conflito entre inquilinos e proprietários para o campo das brechas judiciais em que o acesso a elas era exclusividade dos proprietários (BONDUKI, 1988;

1994).

Como as novas construções tornaram-se insuficientes para atender a demanda efetiva, o proprietário que tivesse sua casa desocupada poderia alugá-la a um preço muitas vezes superior ao valor congelado (BONDUKI, 1994). É principalmente no pós-1945, quando se tornou quase impossível encontrar uma moradia por aluguel compatível com os rendimentos da classe trabalhadora, “uma vez que os aluguéis novos eram elevadíssimos em decorrência da escassez de oferta” (BONDUKI, 1994, p. 722) cenário que colocou o despejo como um dos grandes problemas habitacionais dos segmentos populares das principais cidades brasileiras, ele ...

[...] tornou-se o instrumento concreto do processo de expulsão da população das moradias de aluguel, produzidas comercialmente por empreendedores privados em áreas urbanas bem equipadas e situadas próximas aos locais de emprego (BONDUKI, 1994, p. 722).

O gradativo abandono da inciativa privada pela produção habitacional de baixa renda para aluguel somado ao crescimento das cidades, tornou a oferta de lotes nas áreas periféricas um bom negócio, áreas essas contíguas ao perímetro urbano reconhecido (BONDUKI, 1994; TRIANA FILHO, 2006) o que levou a “consolidação do padrão periférico de crescimento urbano, onde o próprio morador produz sua casa”

(BONDUKI, 1994, p. 722).

Esses loteamentos, na verdade um retalhamento descuidado de glebas rurais em lotes urbanos de 250 metros quadrados, eram uma operação muito lucrativa. A maior parte dos empreendimentos realizados naquela época nunca tinha constituição formal legalizada.

Sem registro em cartório, sem infra-estrutura e arruados de maneira precária – em parte também resultante da ocupação de terras públicas” (TRIANA FILHO, 2006, p. 34).