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CAPÍTULO 1 A Criança De Dois Anos: Concepções e Fundamentos

1.2.5 A Infância na Idade Moderna

Tanto historiadores quanto antropologistas consideram que sociedades ocidentais modernas faziam uma distinção incomum entre criança e vida adulta, de acordo com alguns autores (ARIÈS, 2006, ARANTES E MEDALHA, 1998; CLARKE, 2002; MATTHEWSS 2005).

Essa fascinação pelos anos de infância é um fenômeno relativamente recente, pelo que se pode deduzir a partir das fontes disponíveis. Não se tem notícia de camponeses ou artesãos registrando suas histórias de vida durante a Idade Média, e mesmo os relatos dos nobres de nascimento ou dos devotos não costumavam demonstrar muito interesse pelos primeiros anos de vida (HEYWOOD, 2004, p.13).

Ariès (2006) declara que o mundo moderno tinha visto uma transição nas ideias do povo acerca de infância. Por exemplo, na sociedade medieval as crianças com sete anos deslocavam-se da proteção da família para uma sociedade adulta mais ampla, na qual elas agiam como uma versão menor dos adultos à sua volta.

Atitudes para com a criança começaram a mudar, muito lentamente, nos séculos XVI e XVII, primeiro em relação aos meninos de classe superior, depois suas irmãs de acordo com Ariès (2006). No século XIX, a criança da classe média era confinada no lar e na escola, mas muitas crianças da classe trabalhadora continuavam a trabalhar e a contribuir para o sustento de suas famílias. Gradualmente, entretanto, as crianças de modo geral eram excluídas do mundo de trabalho adulto e havia um período da infância dependente alongado.

Para Airès (2006), na sociedade moderna, os sete anos marcam uma passagem progressiva de criança à infância, considerada uma especial situação de transição, nem infantil nem adulta, em torno das quais toda a estrutura da família girava. O mundo moderno era caracterizado por uma unidade familiar isolada e distinta, centrada nas necessidades da criança. Essa ideia da família centrada na criança é tão familiar hoje, que é difícil imaginar a infância como uma invenção recente, mas Ariès considera que são apenas mudanças modernas, particularmente o desenvolvimento da escolaridade prescrito e fornecido pelo Estado, que abrange a fase denominada infância.

Do século XVII em diante, argumenta Ariès, a concepção de infância no sentido moderno começa a desenvolver-se. Reflete-se na arte, por exemplo, com início da representação de crianças comuns (ou seja, nem Jesus ou anjos), em situações cotidianas nas quais retratam até mesmo a morte das crianças. Essa situação pode ser descrita como “um ponto muito importante na história dos sentimentos” (ARIÈS 2006, p. 101).

A mudança, no que se refere aos sentimentos, pode conduzir a duas inovações. Primeiro, as crianças assumem um papel mais central no seio das famílias: “os pais começam a reconhecer o prazer de ver travessuras das crianças e mimá-las“ (ARIÈS, 2006, p.143). Segundo, entre os escritores e moralistas sobre a vida social, inicia-se a concepção das crianças como seres frágeis que precisam ser salvaguardados e reparados.

Isto implica em que nenhum desses sentimentos havia sido comum antes de 1600. Seu desenvolvimento no século XVII lança as bases para a visão moderna do que é infância. O papel crucial nessa fase de desenvolvimento, para Ariès, é o papel desempenhado pelo desenvolvimento de escolaridade, inicialmente, aos meninos da aristocracia, mas depois se estende às meninas e para toda criança, independente das suas origens sociais.

Escolaridade é vista por este autor como fornecendo uma espécie de “quarentena” para o período compreendido entre ser criança e vida adulta, e sua progressiva extensão e intensificação é a base para definição de uma nova ideia de infância.

É importante considerar, acerca do estudo de Ariès, que o foco na sua obra é essencialmente sobre ideias e não sobre a realidade do ambiente. Ele escreve sobre infância, não crianças, e aquilo que ele está tentando fazer é construir uma história do modo como as pessoas pensavam a respeito de infância, e não, como criavam ou tratavam seus filhos. Seu trabalho foi extremamente influente em gerar novas ideias sobre as crianças na história. Suas ideias formaram um corpo teórico, o qual viu a família evoluir de uma instituição fundamentada nas suas necessidades práticas e econômicas, com pouco ou nenhum conteúdo emocional, para uma visão moderna de família como instituição que satisfaça as necessidades dos seus membros, especialmente as crianças, com amor e carinho.

De acordo com os estudos de Ariès (2006), somente com o crescimento da classe média e da ênfase acerca do indivíduo que veio com a industrialização, fez emergir uma visão da família centrada nos filhos, gradativamente a partir da filtragem de baixo, da classe média para o resto da sociedade.

Apesar das críticas a Ariès, existe um consenso de que algo a respeito do papel da criança na família e na sociedade mudou entre o século XVII e os dias de hoje.

Clarke (2002) enfatiza que as crianças eram vistas como inerentemente pecadoras e necessitavam de orientação. Chegava-se ao extremo de serem comparadas com os animais selvagens cujo espírito precisava ser quebrado, a fim de que elas pudessem desenvolver a humildade e a obediência que as conduziriam ao caminho de serem bons cristãos. Entretanto, afirma esse autor, nem todas as famílias seguiam esse modelo extremo, até mesmo nas comunidades protestantes. Ele se refere a um estudo de Simon Schama desenvolvido em 1987, no qual descreve a Holanda (protestante) do século XVII como uma sociedade “embevecida com as crianças”, onde a visão de crianças e seus passatempos desempenhavam um importante papel na vida familiar e na arte.

O que os dois modelos de família partilhavam, entretanto, consistia no enfoque dado sobre a importância da educação da criança. Ênfase expandida entre as novas classes médias e reenfatizada no século XVIII pela visão iluminista, na qual as crianças eram “naturalmente inocentes” e necessitavam de receber cuidados apropriados e a educação os tornava bons cidadãos de acordo com as afirmativas de Clarke (2002).

Essa visão é expressada de uma forma mais contundente no livro clássico de Rousseau, Emile (1758), que define um plano educacional para um menino, permitindo florescer a força da curiosidade natural. Rousseau mostrou que os pais do século XVIII não tinham o menor interesse em cuidar ou educar seus filhos para viverem em sociedade sem serem corrompidos. Rousseau mostrou que as regras são de suma importância para a educação de uma criança. Imaginava a criança como um ser singular, criativo e autônomo. Os seja, a criança como centro no processo educacional, e não mais como um ser passivo, assim, torna-se indispensável rever sua concepção, sobretudo quando se dispõe a pensar em uma postura educacional diferenciada e que privilegie o saber reflexivo da criança.

Ao atribuir à infância uma forma particular do ser humano, Rousseau delimita o território do objeto que se propõe analisar. Sobre a natureza boa, ocorreram grandes debates dos teóricos do século XVIII. Foi uma grande mudança para o bem da infância.

Encontrar atrativo na criança é afirmar que o homem não nasce corrompido e não é marcado de perversidade intrínseca. Na medida em que a criança representa um fundo primitivo, um dado imediato do humano, o valor a ela atribuído é a própria confiança na natureza humana. Para Rousseau, então, se o mal não estava na criança, devendo-se amá-la, qual seria o próximo passo? Conhecê-la. Esse foi, sem dúvida, o grande desafio de Rousseau, cujo mérito reside numa forma peculiar de redescobrir a infância.

Para Rousseau, havia que se buscar no homem o homem e na criança a criança. Wallon (1988) também infere que estudar a criança deve ser a partir da perspectiva da criança e não do adulto. Com maneiras próprias de olhar e de sentir, a infância seria, ainda, o objeto a ser descortinado. Substituir o olhar infantil pela razão adulta seria perturbar a maturação natural exigida pela ordem do tempo.

Em síntese, ao percorrer a trajetória do conceito de infância, vê-se que na antiguidade, na Grécia e em Roma a sociedade se preocupava com a educação das crianças, principalmente dos meninos e da nobreza. Notava-se a distinção entre a idade adulta e a infância, mesmo que tanto na Grécia como na Roma Antiga os meninos eram preparados para a guerra e contavam com um adulto que cuidava dele, inclusive culturalmente era normal a prática da pedofilia. No Egito, havia demonstrações de ternura para com as crianças e a arte sempre as representava expressando a distinção entre a vida adulta e a infância.

Entretanto, parece que, como em muitos outros aspectos, na Idade Média a conceituação de Infância deixa de existir. De acordo com as evidências de Philippe Ariès, as quais demonstram que a consciência da especificidade da infância, cuja natureza particular a distingue do adulto, não aparecia na Idade Média. Na arte medieval, uma das evidências de Ariès, as crianças estão raramente presentes. Quando eles estão, são representados como miniatura de adultos.

Mas as sociedades mudam. Uma dessas modificações refere-se à transposição da família expandida para famílias nucleares. Outra modificação importante foi o estabelecimento da idade escolar, tendo sido fundadas algumas escolas. Pode-se dizer

que na Idade Média houve duas fases na construção do conceito de infância. No século XIII começaram a aparecer pinturas contendo bebês humanos, crianças nuas, indicando o início de um interesse na infância. No século XVI foi o período da criança mimada. A Infância era vista como um tempo de inocência. O século XVII foi considerado o período moralista. Na época moderna, Ariès revela que apareceu "obsessão pelo desenvolvimento físico, moral, sexual e problemas da infância" (ARIÈS, 2006, p.194). A criança foi retirada da sociedade adulta, o que privou o filho da liberdade que ele tinha até então com os adultos. No início do século XX, considerado como o “século da criança" a infância, de fato, adquiriu novos sentidos nas décadas seguintes. O objetivo para a criança começa a se delinear como educação progressiva, reformas educacionais: a educação pública e contínua para o progresso da humanidade. Especialistas como Holt e Hall se voltaram para o estudo da criança. Stanley Hall estudou o comportamento humano em todas as idades. Pela primeira vez os cientistas começaram a colocar as mães cuidadoras das crianças. A infância era domínio das mulheres. O papel do pai na família era o de auxiliar, principalmente o provedor.

No final do século XX, uma nova concepção de infância apresenta a criança como agentes ativos. Os teóricos estudam, então, nessa época não mais as concepções dos adultos a respeito da infância, mas iniciam os estudos focados na criança.

Percebe-se então que a maneira como a infância é vista atualmente é consequência das constantes transformações pelas quais a civilização passa, e que é de extrema importância considerar essas transformações para compreender a dimensão que a infância ocupa atualmente. Entretanto, esse percurso (essa história), somente foi possível porque também se modificaram na sociedade as maneiras de se pensar o que é ser criança e a importância que foi dada ao momento específico da infância.