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“Para a criança, só é possível viver a infância. Conhecê-la compete ao adulto” (WALLON, 2007, p. 9).

O universo infantil é fascinante; experiências adquiridas na infância nos deixam lembranças que ficam guardadas em nosso subconsciente e que trazemos para o nosso dia a dia através das falas, dos gestos e dos costumes. Sejam estas lembranças boas ou ruins, elas acabam fazendo parte da nossa história pessoal e social. A infância é um momento de intensas mudanças biológicas e mentais, pois em nenhuma outra fase da vida do ser humano, ocorre transformações tão significativas como nesse período, sendo um período decisivo na constituição de sua personalidade.

Utilizando-se da seguinte argumentação, Santos (1999) destaca que:

A infância é constituída por uma sucessão de etapas. Cada uma delas prepara para a seguinte e os limites entre uma e outra não são nítidos nem precisos em relação à idade cronológica; funciona de maneira global e indissociável. Os desenvolvimentos dos sentidos, da afetividade, da linguagem, da motricidade e da inteligência, integram-se e completam-se num processo contínuo de interação (SANTOS, 1999, p. 11).

Saber como as crianças aprendem, como se dá a compreensão do processo que leva a construir o conhecimento, e o que elas são capazes de aprender ao interagir, é atualmente de suma importância para educadores e instituições que se preocupam com uma educação de qualidade. Tendo em vista, a expansão e a melhoria da qualidade dos serviços prestados nessa fase da vida, em especial as crianças mais vulneráveis socialmente, vêm, sem dúvida, ganhando espaço e investimento de empresas, e ao mesmo tempo tornando-se um desafio mundial.

Mas nem sempre foi assim. Observando as crianças hoje, fica difícil imaginar que a concepção de infância foi marcada por uma trajetória de discriminação, marginalização e exploração. Ao longo da história, a criança era caracterizada como um ser ingênuo, inocente, que precisava de “mimos”, gracioso ou mesmo ainda imperfeito ou incompleto. A criança possuía papel produtivo, com função utilitária, sendo inserida na vida adulta a partir dos 7 anos, tornando-se útil à economia familiar. Essas noções se constituíram em elementos básicos que fundamentaram o conceito de criança, entendido como um ser “sem existência social,

miniatura do adulto, abstrata e universal” (SANTOS, 1999, p. 9). Portanto, uma definição independente da cultura ou classe social. Segundo Jonh Locke (1978), a criança era concebida como um papel em branco e a educação era assumida pela família; contudo o tempo destinado a essas crianças era pouco e sem nenhum significado que viesse a favorecer o desenvolvimento de forma sadia, plena e prazerosa. Para tentar combater, ou melhorar, a educação dada pelas famílias, a igreja e o estado resolveram tomar o encargo educativo, e as famílias, no caso as mais abastadas, ou seja, por terem condições de manterem seus filhos nessas instituições e por acreditarem que não seriam capazes de dar formação adequada a seus filhos aceitarem a “intromissão”. Como registra Ariés (1981);

Podemos compreendê-la a partir de duas abordagens distintas. A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um grande processo de enclausuramento das crianças (...), que se estende até nossos dias, a qual se dá o nome de escolarização (ARIÉS, 1981, p. 11).

Isso surge com o intuito de disciplinar as crianças. Já nas famílias com menor poder aquisitivo, as quais não disponham de bens, para manter seus filhos nestas instituições disciplinadoras, as crianças eram facilmente descartadas para serem substituídas por um espécime melhor, que fosse mais saudável e forte, correspondendo assim, às expectativas dos pais e da sociedade. Essa época foi marcada pela ausência do amor materno e por uma relação social não sentimental. “O sentimento que se faziam das crianças era apenas conservar algumas, pois era comum morrer até os 7 anos de idade (...) e isso durante muito tempo permaneceu forte”. (ARIÉS, 1981, p. 56). Por isso, só depois que ela “vingava”, ou seja, sobrevivia a esse período, integrava-se de fato à família. A criança era desprovida de atenção por parte da sociedade, e devido à falta de assistência, poucas chegavam a idade adulta. Nesta perspectiva, entre os séculos XVI e XVII percebemos o total desprezo pela infância. Não é que a criança não existia como ser, pois, este sempre existiu, já que é a materialização real da infância. O que não havia, era a distinção entre as fronteiras da infância com o mundo adulto.

Para Ariés,

Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento de infância não existia [...] O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia (ÀRIES, 1981, p. 156).

Ainda segundo o autor, somente no final do século XVIII e início do século IXX, este último considerado “século da infância”, surgiu a noção de infância, quando a igreja com o grande movimento da religiosidade cristã, surgiu a ideia da criança mística, associada à figura de anjo, que, aos poucos, também provocou mudanças nas relações familiares. Os poderes públicos passaram a questionar as práticas de infanticídio, anteriormente toleradas. As mulheres, no caso as amas de leite e parteiras, passaram a agir como protetoras e cuidadoras dos bebês, demonstrando uma nova característica da sociedade da época, que passou a ter um olhar de assistência à vida na infância. Os adultos, em especial as mulheres, começam a destinar certa atenção às crianças reconhecidas como fonte de distração ou relaxamento, o que Ariés (1981, p. 159) chamará de “crianças bibelot”, expressando um sentimento de “paparicação” pela infância. As condições de higiene e saúde formam melhoradas, fazendo com que a família não aceitasse perder as crianças com naturalidade.

Com o passar dos anos, surge um novo olhar sobre a infância, com mudanças de atitudes por parte dos adultos, de apreciação a beleza, ingenuidade e graciosidade da criança; e a pressão da sociedade, foi de fundamental importância para promover uma mudança do atendimento da criança pequena. A infância, vista como uma etapa do desenvolvimento do ser humano que tem características próprias e bem definidas, é uma ideia moderna. Ela aparece no contexto social e histórico da modernidade, com a redução dos índices de mortalidade infantil, graças ao avanço das ciências e às mudanças econômicas.

A partir dessa concepção, a sociedade passa a educá-las dentro de uma visão racional, acreditando que são capazes de formular ideias e elaborar pensamentos. Nesta nova visão Ariés (1981), discerne que; “(...) os adultos compreenderam a particularidade da infância e a importância tanto moral como social e metódica das crianças em instituições adaptadas a essas finalidades” (ARIÉS,1981, p. 67). E ao percebê-las como sujeito de grandes potencialidades físicas, cognitivas e emocionais, impulsionaram e redirecionaram a reflexão e a criação de uma prática verdadeiramente pedagógica, compromissada com o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças, deixando para trás séculos de injustiças.

Mas será que nos dias atuais, todos os preconceitos e explorações vivenciados pelas crianças durante séculos foram esquecidos? Ou estão camuflados em situações diárias que achamos comuns ou normais e muitas outras vezes achamos “bonitinho”? É só observarmos com mais cautela e veremos. Hoje passado tanto tempo, parece que estamos fazendo tudo isso novamente. Afinal, continuam existindo muitas crianças que precisam trabalhar para ajudar as famílias no sustendo e nunca frequentaram a escola. Por outro lado, há ultimamente

uma discussão sobre a “adultização” da infância; os filhos das famílias com mais condições financeiras, não precisam trabalhar, mas em compensação acabam sendo hipersolicitadas no presente, para terem bons rendimentos no futuro. Desde muito cedo, são matriculados em inúmeros cursos, com o objetivo de prepará-los para o mercado de trabalho. Sem falar na exploração da imagem da criança como adulto na mídia e nas redes sociais. A moda infantil é cópia idêntica dos modelos adultos. Pensando bem, antes de sentimento de infância se consolidar a séculos atrás, a criança era vista como adulto em miniatura.

Sabemos que essas situações acontecem na sociedade atual. Mas agora, diferente da conjuntura que existem anteriormente, há leis que protegem nossas crianças, dando-lhes direitos que devem ser respeitados. É o que veremos a seguir.