• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 – Tradução: análise de casos práticos

4.3. Influência do texto de partida

Algo de que me apercebi, principalmente através do feedback dos revisores dos meus projetos, foi que, por vezes, as minhas traduções se aproximavam demasiado do TP. Inconscientemente, devido à minha proximidade em relação ao TP e às releituras constantes dos seus segmentos antes de realizar a sua tradução, por vezes produzi frases pouco adequadas à língua portuguesa, que afetavam a clareza do TCh, como poderemos constatar no caso prático a seguir apresentado.

Identificação do projeto: 2018_0482; − Par de línguas: EN→PT_PT; − N.º de palavras: 3680;

− Tempo despendido 14,25 horas; − Área temática: automóvel; − Tipo de discurso: técnico;

− Género de texto: manual de instruções;

− Sequência textual predominante: instrucional-diretiva; − Função do texto: informativa;

− Contexto: manual de instruções relativo à montagem, manutenção e cuidados de segurança de uma bicicleta;

− Público-alvo: pais das crianças que irão andar de bicicleta; − Ferramentas utilizadas: memoQ15.

Texto de partida Tradução Revisão

Turn the setting screw clockwise to reduce the distance between the brake lever and handlebar grip.

Vire o parafuso de ajuste no sentido dos ponteiros do relógio para reduzir a distância entre a alavanca do travão e a manete do guiador.

Rode o parafuso de ajuste no sentido dos ponteiros do relógio para reduzir a distância entre a alavanca do travão e a manete do guiador.

The grip width is set correctly if the child’s hand can securely grip the brake lever with at least two fingers and can pull on the brake using normal force.

A largura da manete está corretamente definida se a criança conseguir agarrar com segurança a alavanca do travão com pelo menos dois dedos e se conseguir puxar o travão usando uma força normal.

A largura da manete está corretamente definida se a criança conseguir agarrar com segurança a alavanca do travão com pelo menos dois dedos e se conseguir acionar o travão recorrendo a força normal

Como podemos constatar na tabela, a interferência causada pelo TP durante o ato tradutivo levou a traduções demasiado literais que quebram a fluência do TCh. Segundo Franco Aixelá, por interferência entende-se “the importation into the target text of lexical, syntactic, cultural or structural items typical of a different semiotic system and unusual or non-existent in the target context” (Franco Aixelá, 2009: 75). Analisando o exemplo fornecido, reconheço que existiu, segundo a terminologia do autor, uma interferência lexical (ibid.) que levou à tradução literal de “turn” e “pull”. Quando encarados sem qualquer contexto, os equivalentes mais diretos destes dois verbos serão, respetivamente, “virar” e “puxar”, que foi a tradução pela qual optei. No entanto, a revisão colocou em evidência uma forte influência do TP que originou uma tradução com uma seleção lexical inapropriada.

Na língua portuguesa, os pares de palavras “rodar” e “parafuso”; e “acionar” e “travão” têm uma tendência natural para coocorrerem juntas, tratando-se, portanto, de colocações. Uma colocação é um tipo específico de coesão lexical “achieved through the association of lexical items that regularly co-occur” (Halliday & Hasan, 1976: 284) ou, ainda, segundo uma definição posterior e complementar de Haensch et al. (1982), “aquella propiedad de las lenguas por las que los hablantes tienden a producir ciertas combinaciones de palabras de entre una gran cantidad de combinaciones teóricamente posibles” (apud Corpas Pastor, 2001: 96). Logo, em teoria, poderia ser possível dizer, por exemplo, “virar o parafuso”, mas como já existe uma outra combinação lexical fixada pela norma e pelo uso e, desta forma, familiar e idiomática para os falantes, a combinação de palavras fixa-se em “rodar o parafuso”. Neste caso, uma tradução demasiado literal levou à transposição de combinações lexicais pouco usuais na língua de chegada, criando um “alien feel” (Robinson, 2003: 10) no público-alvo que põe em causa a idiomaticidade do TCh. Tal sensação ocorre porque os falantes têm conhecimentos sobre as palavras do

seu idioma e sobre o significado das mesmas; mais especificamente, sabem “in what environments they can appear and how they function in the language’s phrases and sentences” (Fillmore et al., 1998: 502). Quando um TCh entra em conflito com esse conhecimento relativo à coocorrência habitual de certas palavras, perde-se a fluência e a clareza do mesmo, tornando-se evidente que o texto é uma tradução e não um documento original escrito no idioma do leitor.

Esta influência pode ser explicada pela proximidade demasiada em relação ao TP e, por vezes, pela perda da visão holística do texto, uma vez que as CAT-tools segmentam o mesmo em frases, que são encaradas individualmente pelo tradutor. Estes fatores, aliados à acumulação de várias horas de trabalho e à eminência do prazo de entrega, podem levar a traduções irrefletidas e quase maquinais, que ignoram o contexto geral da frase e as especificidades da língua de chegada (o que explica a seleção lexical inapropriada presente no exemplo apresentado). Neste cenário, a revisão torna-se ainda mais relevante, uma vez que o revisor se encontra mais “distanciado” do TP e lê a tradução quase como se de um utilizador final se tratasse (Mossop, 2014: 167), sendo assim capaz de assegurar um TCh fluído que corresponda às expectativas do público de chegada.

Finalmente, é ainda interessante observar que o revisor aprovou a tradução dos termos (“parafuso de ajuste”, “alavanca do travão”, “manete do guiador” e “manete”, por ex.), o que talvez evidencie uma focalização preferencial na terminologia, o que, inconscientemente, poderá levar à negligência de outros aspetos linguísticos da língua de chegada, mais relacionados com a idiomaticidade das expressões. A terminologia é, sem dúvida, essencial no discurso técnico e, além disso, assegura uma comunicação precisa; no entanto, a terminologia representa apenas 5 a 10% do conteúdo de um texto técnico (Byrne, 2006: 3), pelo que não deverá absorver toda a atenção e a grande parte do tempo do tradutor, para que a clareza e a fluência do TCh não sejam sacrificadas. Afinal de contas, uma tradução com equivalentes terminológicos adequados, mas que não cumpra as convenções linguísticas da língua de chegada dificulta a compreensão do leitor e poderá colocar em causa a credibilidade da informação transmitida.

Documentos relacionados