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Informalização da justiça e enfrentamento da crise de legitimidade

Diante dos problemas concretos de crise de legitimidade das instituições judiciárias, as propostas de modificação da relação entre instituição pública e população têm passado, também no Brasil, pela informalização da Justiça. Como em outros países, as propostas de reforma privilegiam o exercício da justiça pública voltada para as especificidades dos conflitos que ela pretende mediar e pacificar.

Como em outros lugares, procura-se dar mais voz à vítima; procura-se favorecer acordos, composições entre as partes, procurando restabelecer um equilíbrio de relações rompido; busca-se outras formas de penalidades, menos brutalizadoras que a pena de prisão, mais baratas e que atendam a necessidades mais específicas de cada comunidade. Também no Brasil, como em toda parte, pretende-se valorizar a participação das comunidades na produção da justiça, dando margem ao surgimento de experiências como o uso de conciliadores leigos (previstos pela lei 9.099/959), propostas de policiamento comunitário, gestão comunitária de estabelecimentos prisionais, valorização das penas de prestação de serviços à comunidade.

Entretanto, o que se vê na prática é que essa orientação pela democratização da participação comunitária no processo de administração da justiça, embora concretizada nas legislações mais modernas, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente e da lei 9.099/95, concorre com um discurso pelo endurecimento da atuação repressiva e punitiva. Assim, contemporânea da lei dos juizados especiais é a lei dos crimes hediondos (lei 8.072/90, reformulada pela lei 8.930/9410), que elimina a possibilidade de progressão de pena para os réus que cometem os delitos por ela tratados, dentre os quais estãos os que mais crescem, como alguns tipos de homicídio e o tráfico de drogas. O estudo do movimento das estatísticas sobre esses crimes comprova que leis desse tipo são inócuas.

O estupro, também rotulado como crime hediondo, foi tema de uma pesquisa de Joana Vargas, em que se percebe que boa parte dos casos que chega ao sistema de justiça são relativos a violências sexuais cometidas por pessoas conhecidas da vítima, como pais, padrastos, namorados, vizinhos, parentes. Estabelecendo o fluxo desses casos no sistema, Vargas demonstra que são justamente os conflitos ocorridos nas relações familiares os mais punidos. (Vargas, 2000). Com o auxílio dessa análise oferecida pela autora, reforça-se a argumentação de que a lei dos crimes hediondos fortalece a tendência punitiva e vingativa do sistema penal,

9 A lei 9.099/95 criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e encorajou os Tribunais de Justiça de vários estados a desenvolverem projetos especiais de distribuição de justiça e programas de penas alternativas.

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acentuando a renúncia do sistema de justiça em atuar na mediação de situações conflitivas. O caráter vingativo do sistema penal é desnudado por Vargas em uma interpretação sobre o ritual de ingresso dos presos acusados de estupro nas cadeias e penitenciárias, que, como mostra a autora, é estimulado e tolerado por agentes e autoridades judiciárias.

Não obstante a concorrência com o discurso (e a prática) do endurecimento repressivo no sentido de impor maior violência na retribuição à violência, experiências de informalização da justiça e de um processamento diferenciado dos conflitos têm sido tentadas, ainda que não raro sejam reduzidas a experimentações- piloto.

Acredita-se que a informalização dos procedimentos de distribuição de justiça pode constituir-se num exercício de aproximação da administração da justiça com as demandas concretas dos grupos sociais heterogêneos que convivem numa sociedade complexa como é a brasileira. Pensa-se que ao incorporar essas demandas específicas, e processá-las em sua especificidade, a instituição pública da justiça pode vir a se tornar um canal de processamento dos conflitos de certos grupos sociais que não são contemplados com a atuação da instituição judiciária tal como ela tem existido até a atualidade. Acredita-se na hipótese de que ao incorporar as demandas dos grupos excluídos do acesso à judicialização de seus conflitos, o poder público pode legitimar-se como instância de resolução de conflitos perante esses grupos, limitando o recurso às resoluções extra-oficiais, incluindo as soluções violentas. Ocorre que, para incorporar os conflitos em sua especificidade, a instância judicial deveria estar o mais próxima possível das demandas locais por justiça, ao mesmo tempo em que precisa obedecer critérios gerais de efetivação de direitos individuais e coletivos, sob pena de continuar a reproduzir as desigualdades geradas pelos próprios conflitos. Nesse sentido, tão fundamental como a participação comunitária no processamento dos conflitos ao nível local, é necessária a participação democrática na definição das políticas de justiça ao âmbito nacional, a fim de que se busque um equilíbrio nas inescapáveis tensões entre o local e o global,

entre o indivíduo e a comunidade, entre liberdades individuais e segurança pública, entre leis universais e respeito à diversidade.

No Brasil, o modelo de informalização adotado é o que está contido na lei 9.099/95, que institui os juizados especiais. Essa lei regulamenta o funcionamento dos antes nomeados tribunais de pequenas causas. A idéia contida nessa reforma é de descentralização das estruturas físicas da justiça, permitindo multiplicar a instalação de estruturas judiciárias, levando juízes, promotores e advogados às regiões periféricas. Também a participação comunitária é contemplada através da instituição da figura dos conciliadores leigos, supostamente escolhidos e orientados pela dinâmica política local, capacitados para atuar na especificidade dos conflitos daquela localidade. Entretanto, como constatou Rodrigo Azevedo, este tipo de experiência não foi instituída, a condução dos processos de conciliação continua monopólio dos juízes de carreira (Azevedo, 2000), cujos formação e projeto profissional em nada foram alterados em relação àqueles do modo tradicional de distribuição de justiça, sendo preservadas as relações de poder hierárquicas e intimidatórias próprias das práticas judiciais observadas nas varas criminais comuns. A pesquisa empreendida por Azevedo nos juizados especiais criminais de Porto Alegre recolheu dados que lhe permitiram concluir que o projeto de informalização tal como realizado não reforça o poder comunitário, embora de fato represente uma ampliação do acesso à justiça para determinados conflitos e determinadas camadas sociais, antes represados pelo filtro seletivo da atividade policial. Nesse sentido, atende muito mais às demandas do próprio sistema de justiça, que se vê congestionado e ineficiente para responder ao aumento da insegurança, do que a uma democratização da administração da justiça.

A partir dessas reflexões sobre a proposta de ampliação do acesso à justiça constrói-se a suspeita de que não se pretende de fato reformular a relação entre o cidadão e o Estado, assim como não se pretende reformular a relação entre os grupos que estão no centro político, econômico e social e aqueles que estão na periferia. Sem reformular essas relações políticas implicadas na produção e

distribuição da justiça, não é razoável esperar, como se argumenta nessa dissertação, reconstituir laços de legitimação da Justiça Pública. Em outras palavras, acenar com juizados “próprios para a periferia”, mantendo a divisão social do trabalho de justiça, é perpetuar a desigualdade política que faz da periferia espaço social de exclusão, marginalidade, liminaridade.

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