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Ingressando no universo memorialístico – presente de

No documento Como ele se fez por si mesmo: Jamil Snege (páginas 95-132)

II. COMO ELE SE FEZ POR SI MESMO

2.1. Memórias de um errante: lembranças, imagens e sonhos

2.1.2. Ingressando no universo memorialístico – presente de

A grande autobiografia, hoje, seria aquela que desse conta da crescente mediocrização a que estamos sujeitos, seja através do embotamento do espírito crítico, da razão ou dos próprios sentimentos.

Jamil Snege

O relato autobiográfico já foi visto com alguma restrição por parte da crítica que,

resumidamente, por certo tempo empenhou-se em apontar uma inferioridade estética na

ficção de cunho biográfico em relação a outras modalidades narrativas. Atualmente,

qualquer preconceito nesse sentido parece ter sido superado e as autobiografias

ficcionais passaram a ser vistas como espaço literário privilegiado para a busca de

conhecimento que alguém empreende a respeito de sua própria vida em relação aos

outros e ao mundo.

Com vistas a resgatar, numa perspectiva diacrônica, a importância do romance

biográfico e autobiográfico para o desenvolvimento da literatura, Bakhtin apontou:

...na Antigüidade (...) desenvolveu-se uma série de formas biográficas e autobiográficas notáveis que exerceram enorme influência não só para o desenvolvimento da biografia e da autobiografia européias, mas também para o desenvolvimento de todo o romance europeu. Essas formas antigas estão baseadas em um novo tipo de tempo biográfico e em uma nova imagem especificamente construída do homem que percorreu o seu caminho de vida.164

Tal “tempo biográfico” diz respeito à temporalidade específica dos romances

163

Mnemosina: “...fonte e deusa da memória, musa de todas as formas de narrativa.” [ cf. ARRIGUCCI JR., D. “Móbile da memória”. In: _____. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 69.]

164

BAKHTIN, M. “Biografia e autobiografia antigas”. In: _____. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. p. 250.

autobiográficos em termos de descrição da trajetória - que não se confunde com “o

tempo da formação e crescimento do homem” (conforme Bakhtin) -, em que a narração

do “si mesmo” é sempre uma construção a posteriori, pois quem narra não é o sujeito

que viveu a vida, mas o que se constrói na própria situação do narrar; narrar que,

inevitavelmente, será feito de lembranças e lacunas.

Em ensaio dedicado a um dos maiores exemplares do romance memorialístico

moderno - Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust – Walter Benjamin afirmou

com bela metáfora: “Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele

viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. (...)

esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o

esquecimento a urdidura...”.165

Dessa forma, podemos afirmar que o trabalho de reconstituição do passado,

porque feito a partir de lembranças fragmentárias, sempre incluirá a questão da

ausência, dos detalhes perdidos nos vãos da memória.

Davi Arrigucci Jr., analisando as Memórias, de Pedro Nava, apontou o seguinte:

Por isso, ao tentar recriar o passado, seja pela reconstrução documentada da memória voluntária, ou por esse método de presentificação tão aleatório da memória involuntária, o memorialista tem de lidar sempre com o que falta: tanto na reconstituição irrealizável de um todo único, quanto no fragmento imantado pelo conteúdo da experiência, que dá vida ao símbolo, mas não pode evitar que seja apenas uma semelhança fugidia de uma totalidade perdida.166

Podemos dizer que o que confere dimensão artística ao relato memorialístico ou

autobiográfico é, justamente, a capacidade do autor em recriar ficcionalmente o

165

BENJAMIN, W. “A imagem de Proust”. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 37.

166

rememorado, preenchendo as lacunas com os produtos da imaginação. Quando

respondem a tais solicitações, as obras memorialísticas abrem, ao receptor, a

possibilidade de serem lidas “como recordação ou como invenção, como documento da

memória ou como obra criativa, numa espécie de dupla leitura, ou leitura ‘de dupla

entrada’, cuja força, todavia, provém de ser ela simultânea, não alternativa.”167

Outro aspecto que contribui para a elevação estética do relato autobiográfico diz

respeito à presença da universalização das situações vividas por um sujeito individual, a

competência do autor em, “inserindo o eu no mundo, mostrar os aspectos mais

universais nas manifestações mais particulares...”.168

Atento a essa mesma questão, Davi Arrigucci Jr. defende o valor da arte de

Pedro Nava, pois, segundo o crítico, “...a história que [Pedro Nava] nos conta vai

ganhando a dimensão simbólica do geral à medida que cresce e permite reconhecer cada

vez melhor a imagem do destino singular de um indivíduo - de um “pobre homem” -,

só compreensível pelas relações particulares múltiplas e complexas que mantém com

um mundo ainda mais vasto, que é o seu e, até certo ponto, também o de todos nós.”169

O romance Como eu se fiz por si mesmo preenche todos os requisitos para

inserir-se como um legítimo exemplar da ficção brasileira de cunho memorialístico.

Nele, os fatos lembrados são incorporados na narrativa por meio do exercício de

recriação simbólica; a imaginação coopera com a atividade de rememoração e os

episódios da vida do narrador são costurados com as figuras imaginárias que preenchem

espaços não alcançados pela memória.

A situação do narrador de Como eu se fiz por si mesmo é análoga à descrita por

167 CANDIDO, “Poesia...”, p. 54. 168 Ibid., p. 53. 169

Antonio Candido a respeito de Pedro Nava: “Confinado nos limites de sua memória,

com a vontade tensa de apreender um passado que só lhe chega pelo documento e por

pedaços da memória dos outros, o Narrador (...) não tem outro meio de os configurar

senão apelando para a imaginação. Desse modo (...) o relato adquire um cunho de

efabulação e o leitor o recebe como matéria de romance”.170

O livro de Jamil Snege, embora conserve integridade e homogeneidade em seu

todo, encontra-se dividido em 47 capítulos que mantêm certa independência estrutural e

temática entre si. São espécies de pequenos contos e/ou crônicas de extensão bastante

diversa, como a sugerir a variação do próprio processo de recordação: lembranças

fugidias e episódios mais marcantes, onde o narrador se detém por mais tempo.

Exemplo da diversidade na extensão dos fragmentos de memória registrados pelo

narrador é o fato de encontrarmos capítulo com mais de dez páginas, ao lado de outros

de extrema brevidade. O capítulo de abertura, que transcrevo a seguir, é uma espécie de

miniconto que ocupa apenas oito linhas. Assim começa a narrativa de Como eu se fiz

por si mesmo:

Nasci antes os pés, enforcado pelo cordão umbilical. Uma santa tesoura, manejada por minha avó, libertou o quase defuntinho. Roxo foi minha cor inaugural. Uma noite gelada de julho acolheu meu primeiro e desesperado vagido. De lá para cá, tenho convivido sem problemas com tesouras e geadas. Mas, certas noites, ainda ouço aquele meu grito – notadamente no inverno.(7)

Nas primeiras linhas do romance, a questão que permeará a obra como um todo:

o sentimento de um ser em permanente contradição com o mundo, sentimento

metaforizado na posição contrária à hora do nascimento. Snege chamará tal sentimento

de “inviabilidade existencial” e que será manifestado nas diversas contrariedades e

170

reveses enfrentados pelo narrador ao longo do percurso descrito.

O evento do nascimento traz em si, ainda, os elementos que situarão os limites

espaciais mais marcantes da narrativa: o ambiente familiar, representado pela

intervenção da avó, as características do lugar de nascimento: o frio do inverno

curitibano em seu aspecto visual típico: a geada (elemento bastante explorado por outro

grande pintor do retrato de Curitiba, o artista plástico Poty Lazarotto).

Convém observar que a presença do ambiente familiar não significa que a obra

de Snege apresente o projeto de um reconstrução genealógica nos moldes dos romances

autobiográficos que procuram resgatar a tradição patriarcal de determinada família.

Embora a família - especialmente o pai e os avós – aí se faça presente de maneira

intensa, o papel que ela desempenha é bem definido e não interfere na realização maior

que é a reconstrução da trajetória individual. A família é mais um dos aspectos

destacados como participante na formação do protagonista, fonte de experiências e

emoções. Dessa forma, o núcleo familiar (embora conserve seu maior grau de influência

no vivenciar das experiências) divide espaço com outros elementos e atividades: o

universo profissional (em destaque); as viagens; as aventuras e “pequenas”

transgressões da juventude; os (des)encontros amorosos; os amigos; o universo da

literatura; o refletir sobre o próprio exercício de rememoração. Entretanto, como se trata

de um relato autobiográfico em que o sujeito procura objetivar suas impressões,

inserindo-se como elemento de seu mundo, que é o mundo de todos os que com ele

conviveram, qualquer tentativa de sumariar o universo das memórias ficcionais está, de

antemão, condenada a ser falha. É preferível que tentemos penetrar nesse universo aos

poucos. Quem sabe, escolhendo aleatoriamente os caminhos, assim como o narrador

Portanto, voltemos ao capítulo de abertura...

Esse primeiro fragmento já nos permite apontar algumas características

estilístico-formais que aparecerão no decorrer do romance. Uma delas diz respeito à

linguagem utilizada pelo narrador, mais especificamente, sobre a forma de construção

das seqüências narrativas. Apesar de depararmo-nos com certas variações de tonalidade

ao longo da obra, o uso de orações curtas, a quebra dos períodos é uma constante

(característica que se estende aos outros livros do autor). Tal quebra, às vezes, sugere

um resgate das imagens em flashes cinematográficos. Veja-se, por exemplo, o capítulo

5, que recupera o episódio de um acidente ocorrido na infância e que ocasionou a perda

de alguns dentes do protagonista quando menino171. Além da capacidade de rir de si

próprio, a ironia aparece na elipse da passagem bíblica apontada logo no início - que,

numa primeira leitura pode sugerir, apenas, a visualização por partes -, e é reforçada por

outras imagens ao longo do capítulo:

Olho por olho.

1. Close de um garoto de oito anos. Ele tem a boca cheia de sangue. Lábios, gengivas – massa informe. Os dentes soltos, pendurados, mexem-se quando ele chora. Brancos, longas raízes, alguns nem nascidos: brotam de repente em meio à carne esfacelada.

2. Close de um adolescente de catorze anos. Quase não sorri. Odeia quando lhe falam dos dentes. Como estavam, ficaram – tortos, superpostos, estranhas lascas nas gengivas.

3. Sonhos. Uma escuna na Jamaica, peito peludo ao sol, porres de rum, brigas no cabaré de cortinas de contas. Morrer bêbado. Sempre de boca fechada.

4. Infecção, raspagem no osso, alvéolos arrebentados. Temor: dentes de ouro, refletindo os cacos de garrafa nas brigas do cabaré. Abandonou os mares do Sul pelas areias de Guaratuba. Agora, mais do que nunca, boca fechada.

5. Terno com colete de seda bordado, gravata, taco de sinuca na mão. Verdes mares pelo pano verde. Troca desvantajosa, admite. Boca aberta? Só caçapa.

6. Ele e o primo, disputando a donzela. Um bolero de cada um. Comenta no intervalo: o Bode vai ganhar – tem mais dente que eu.

7. Baile em Ibirubá, Rio Grande do Sul. Banho demorado, barba raspada com água quente. O dente da frente – um pivô – de repente no ralo da pia.

171

Tal episódio deve ter sido bastante marcante na vida de Snege. O tema reaparecerá, inclusive, no último texto publicado pelo autor: o conto “Minha mãe se veste para morrer” (fragmento já citado).

8. Ó, vida. Quantas horas de vôo na cadeira do dentista?(23-24)

Além dos períodos elípticos e da enumeração que serve para apoiar a ordenação

das lembranças (misturadas com sonhos), podemos depreender do fragmento transcrito

certa instabilidade temporal dos fatos lembrados.

É importante que nos detenhamos por um momento na análise da apresentação

do tempo no romance, pois, como observou Boris Uspensky: “A apresentação da obra

literária relaciona-se intimamente com os processos da memória. Em geral, as

características da memória humana impõem à obra literária uma série de restrições que

condicionam sua percepção (...). Por conseguinte, a conexão direta entre a memória e a

percepção temporal não deve ser negligenciada.”172

A narrativa de Snege não obedece a uma linearidade cronológica rígida. Ao

contrário, o narrador avança e recua no tempo, numa dinâmica temporal que parece

acompanhar o ritmo da memória. Anatol Rosenfeld assim identificava a configuração

do tempo no romance moderno: “Nota-se no romance do nosso século uma modificação

análoga à da pintura moderna, modificação que parece ser essencial à estrutura do

modernismo. À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder no

romance a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal foram abaladas,

‘os relógios foram destruídos’ ”173.

Paul Ricoeur, por seu turno, irá afirmar a quebra da ordem cronológica no

romance ligada à expressão da realidade moderna e a correspondente percepção do

tempo por seu habitante da seguinte forma:

172

USPENSKY, B. A poética da composição: estrutura do texto artístico e tipologia das formas compositivas. Trad. Marta Helena Kirst e Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: 1981. (edição fotocopiada)

173

ROSENFELD, A. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: _____. Texto/Contexto I. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 80.

...uma cronologia quebrada, interrompida por saltos, antecipações e digressões, em suma, uma configuração deliberadamente pluridimensional, convém melhor a uma visão do tempo privado de qualquer capacidade de um apanhado geral e de qualquer coesão interna. A experimentação contemporânea na ordem das técnicas narrativas é assim organizada para a dispersão que afeta a própria experiência do tempo.174

Os avanços e recuos acima referidos se dão não somente na disposição não-

seqüencial dos capítulos, como também no interior da descrição de determinada cena ou

situação, e cooperam para o projeto de presentificação da matéria narrada. Note-se a

digressão do narrador em meio à descrição do “falado campo dos padres, nos fundos da

igreja do Coração de Maria”, onde os meninos clandestinamente jogavam seu futebol:

Eu conhecia muito bem o local, pois com seis ou sete anos era ali que nos preparavam para a primeira-comunhão, e foi ali que vi despertar em mim uma precoce vocação religiosa, com promessa de ampliá-la num colégio em Rio Claro, e voltar padre Jamil, padre Jamil não, que nunca foi nome de padre, padre Antônio, que é meu segundo nome, e depois um pouco mais de teologia em Roma, e mais uns conchavinhos, e cá estaria eu, Aroldo Murá a meus pés, Rafael Greca beijando- me as mãos, e eu tentando puxar o tapete de dom Pedro Fedalto para lhe arrebatar o arcebispado.(17)

Outro aspecto da prosa de Jamil Snege a ser ressaltado refere-se à carga de

poesia que ela possui. Em muitos pontos dessa narrativa que se desdobra através de

episódios, contraditoriamente, bem e frouxamente situados num determinado lugar e

momento, deparamo-nos com imagens líricas construídas com a sensibilidade do olhar

de um poeta. Tais imagens, muitas vezes embebidas do fantástico e do onírico, resultam

na instauração do insólito; e o cotidiano é impregnado por um clima fantasmático

habitado por sonhos.

Gaston Bachelard afirmou que “É no plano do devaneio, e não no plano dos

174

fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil. Por essa infância

permanente, preservamos a poesia do passado.”175 O trecho a seguir transcrito, onde

somos transportados a um mundo de lembranças e imagens da infância, parece servir

como ilustração literária do que afirma o filósofo francês. Assim o narrador nos conta

seu ingresso no mundo do trabalho, aos treze anos de idade, numa loja de brinquedos:

É aqui o reino encantado do trabalho?

Parei diante da porta e olhei para o alto. Lá estava a placa: um garoto sobre pernas de pau, o nome da loja pintado entre as pernas do garoto. Entrei. O gênio da lâmpada estava sentado na penunbra, no fundo da loja. Seu riso sacudiu todos os brinquedos das prateleiras. Alguns, com um resto de corda, completaram o movimento interrompido; soaram bumbos e sirenas. O gênio da lâmpada apanhou- me na palma da mão e transpôs-me para dentro do balcão. Cada passo do gigante fazia tremer o chão e sua passagem era saudada com um aceno de braço ou de cabeça pelos bonecos. Ainda rindo, colocou-me diante de uma caixa de brinquedos recém-aberta e apontou o dedo gordo para uma cartela de etiquetas gomadas. Uma anã gordinha, surgida não sei de onde, completou as instruções e eu comecei a colar as etiquetas nas peças. O gênio da lâmpada retornou para seu lugar, a anã sumiu e uns restos da criança que havia em mim prolongaram esse trabalho até a hora do lanche. Fui despertado pelo ribombar dos passos do gigante, detendo-se ao meu lado com uma bandeja de sfihas. Apanhei uma, ele enfiou mais quatro ou cinco nas minhas mãos. Enormes sfihas, feitas de encomenda para o gigante e seus liliputianos empregados.(11-12)

Efetivamente, a infância tem lugar de destaque entre as recordações. Não são

apenas as lembranças da época de criança que estão presentes na narrativa, mas aquele

sentimento nostálgico de algo perdido e a preocupação em manter acesa a chama de um

tempo de inocência, a presença de um menino no ser íntimo do adulto:

Você também foi guri, sabe que o mundo do faz-de-conta é uma possessão perdurável, só termina quando você termina, ou talvez nem aí. De quantas pessoas você já ouviu que tiveram uma infância maravilhosa? Pois elas só dizem isso quando estão vivendo um momento infeliz. A infância é um dado de autopercepção idealizada, se você tem uma vassoura velha ou um cavalinho de pau todo bonitinho, a aventura interior é a mesma; você percorre as mesmas trilhas e não raro a vassoura velha suplanta o cavalinho em ímpeto e beleza. Você teve um puro-

175

sangue e hoje nem se dá conta disso. (15)

Em momentos da vida adulta, certos elementos remetem ao passado longínquo e

despertam a recuperação saudosa de um tempo de cuidados e preocupações em torno de

si:

Você quer aquela papinha de trinta anos atrás – você cuspiu na colher, empurrou o prato, mas agora quer de volta. Num passe de mágica, a figura maternal do Antônio resgata do passado a mesma papinha que ficou esquecida na pia (estava chovendo, lembra?).

_ Antônio, não estou bem do êstomago...

Chá de camomila, existe melhor?, Antônio Colaço traz, essa boa alma. Não vem na canequinha de plástico azul, com a cara do Pateta (que fim levou a canequinha?), mas o gosto é o mesmo, quase o mesmo.

Coffee-shop do Hotel Colonial. Que outro lugar do mundo serve as guloseimas que extraviamos no prato da infância? (260)

Na reconstrução de si, o olhar volta-se nostalgicamente ao passado buscando

acompanhar e entender o significado das transformações operadas pela passagem do

tempo:

Sou eu esse garotinho feroz, pálido, de largas olheiras? Ele tem medo de chuva, vejam, mal o céu escurece corre a refugiar-se no interior da cebola.

Sai de lá um adolescente de aparência suburbana, olhar desafiador. Encara-me com insolência. Ele viu o mar, não é qualquer chuvinha que irá amedrontá-lo agora. Com um canivete grava suas iniciais no tampo de minha mesa. Sorrio para ele – o que na sua linguagem é um evidente sinal de fraqueza. O canivete apontado contra o meu peito, boca fechada, ele some. (273)

Mendilow caracteriza a adequada recepção dos personagens dos romances

memorialísticos - em sua mobilidade característica -, da seguinte forma:

...os personagens não procedem dentro de uma progressão regular através do tempo de um ponto para outro, começando aqui, parando ali e terminando em algum outro lugar. Suas ações, pensamentos e sentimentos não são vistos como datas estacionárias que indicam o que é passado; pois o todo de sua experiência está

implícito em qualquer momento de seu presente. O seu progresso através da vida não deve ser visualizado como o de um ponto movendo-se ao longo de uma linha, mas como o de uma onda que cresce e se avoluma, com todos os instantes de seu movimento.176

Outro momento bastante poético da narrativa é a descrição do ansiado encontro

do protagonista com o mar:

A viagem nem terminara quando de repente o mar explodiu na janela do ônibus, cinzento e esplêndido, coberto de névoa. Minha adrenalina disparou. Lá estava ele, miseravelmente grande, assustadoramente próximo, sofregamente meu. Ó mar, eu

No documento Como ele se fez por si mesmo: Jamil Snege (páginas 95-132)

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