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Autorretrato falado: o autor, agora

3 MARCAS DO TEMPO DE JOSÉ CARLOS OLIVEIRA

3.2 O INIMIGO INTERNO

Um fato que podemos adotar como um eixo organizador para entendermos o tempo de José Carlos Oliveira é que o mundo foi divido em territórios, depois da Segunda Guerra Mundial, pelas duas grandes potências que emergiram desse conflito: Os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Daí surge a guerra fria. Daí surge o movimento expansionista pela via da propaganda ideológica e das armas, e o treinamento de novas técnicas, como a de tortura e a de guerrilha, com o objetivo de exportar a revolução ou conter os movimentos de avanço do “inimigo”. Cuba era financiada pela URSS para ser ponta de lança do comunismo na América Latina. Os países do Cone Sul recebiam apoio americano para conter essa investida. A guerra do Vietnã e a subversão/repressão na América Latina são bons exemplos desse embate das grandes potências para anexar/defender territórios.

Depois de atrelar-se aos EUA nos combates da Segunda Guerra, com ganhos do apoio na área econômica, nos anos 40, ficou claro que o Brasil geopoliticamente estava predestinado a ser alinhado ao bloco americano, com seu liberalismo, a ênfase no capitalismo, na iniciativa privada, no campo econômico; e nas liberdades democráticas, no terreno político-social.

É assim que deve entendida a proibição do Partido Comunista do Brasil (PCB), na segunda metade dos anos 40, com a criação do conceito de Segurança Nacional, que se assentava no combate ao “inimigo interno”. Esse conceito e esse foco de trabalho vão

orientar toda a atividade política castrista, cujos quadros tradicionalmente vieram se envolvendo em conflitos internos de caráter político, desde os anos 20, em movimentos que iriam formando lideranças dentro da corporação que tomariam corpo, com as demandas do tempo, e se alçariam ao poder máximo do país, quando o ataque do inimigo fez-se ao largo com ousadia, no pré-64, e depois com virulência, quando pegou em armas, a partir de 1967. Nesse momento decisivo da luta contra o “inimigo comum”, são suprimidas todas as liberdades democráticas no país, paradoxalmente, a única forma que o regime militar viu como adequada para acabar de vez com o que julgava uma ameaça à supressão das liberdades democráticas – o comunismo.

É fundamental ressaltar que os comunistas históricos – os que rezavam pela cartilha de Moscou, alijados do campo da luta política aberta, desde os anos 40, mas operando ativamente na clandestinidade ou indiretamente, com seus quadros “infiltrados”, pelo artifício das filiações em partidos legais – estavam suficientemente informados e, por isso, cônscios da impossibilidade de uma tomada do poder pela via da violência, no Brasil, país que se desenhava cada vez mais como um mercado próspero, de satisfação das necessidades da classe média, a que sempre funcionou como massa de manobra para dar sustentação aos inquilinos do poder.

A luta armada no Brasil deveu-se aos novos quadros – os jovens idealistas formados ideologicamente pela via do livrinho vermelho de Mao –, mas também à contracultura das drogas e da permissividade sexual (aqui entra a pílula, inclusive), o que inclui a opção pelo homossexualismo (Cf. VENTURA). O caso mais significativo de uma deserção da linha programática pacífica do PCB (“reformistas”) foi o de Carlos Marighela, tradicional nome do partido, onde militava já nos anos 40, que passaria a ser um dos dois líderes fundamentais da luta armada oposicionista no país, ao fundar a ALN – Aliança Libertadora Nacional.

A influência externa, além dos estudantes de Paris 68, deveu-se à importação dos comportamentos da juventude americana, que, contestando a guerra no Vietnam, estabelece como norma a “força da flor” (flower power). Essa contracultura está codificada na peça Hair (1967) – ou no filme de mesmo nome do diretor Milos Forman (1979). Drogas, sexo livre, volta à natureza, misticismo (astrologia) eram os ingredientes básicos dos pacifistas dos EUA. Os estudantes brasileiros teriam sido

influenciados muito mais por essa corrente, o que já foi admitido pelo líder de então Vladmir Palmeira. E entre os jovens que aderiram depois à guerrilha havia usuários de drogas e os que faziam sexo livre (Ipanema fornecia meninas para guerrilheiros na clandestinidade). Isso não coincidia com o padrão espartano do comunista histórico.

Ainda com relação à influência externa, há que se considerar as ações coordenadas, a partir de Cuba, no Cone Sul. Che Guevara, com sua guerra de guerrilhas em regiões inóspitas da América do Sul, funciona como um modelo para uma geração que acreditava ser possível a mudança, como ocorrera na revolução cubana. Frustrado esse sonho, e com a derrocada da guerrilha brasileira, a chegada ao poder do socialista Salvador Allende, no Chile, pelo voto popular, ajudaria a manter a chama, ainda nos anos subsequentes, dos que acreditavam num Brasil socialista. A estratégia que alijou Allende do poder e a simultânea repressão no Brasil deixava claro que esses territórios tinham dono. Aqui, como lá, os inimigos internos não teriam espaço para prosperar.

Para terminar, com as passeatas dos estudantes de 1968 e o endurecimento do regime, a igreja, que apoiara o movimento militar de 1964, começou a discordar do Governo. D. Helder Câmara, os dominicanos Frei Beto e Tito são alguns dos nomes colados a essa nova visão. No caso dos frades dominicanos, a “vizinhança” com a guerrilha urbana acabou por criar uma situação traumática, com desfecho trágico. Há duas versões, a de Frei Beto e de Jacob Gorender, para o fato de terem sido eles os que entregaram Marighela à repressão, o que culminou com sua morte numa emboscada, em dezembro de 1969, em São Paulo.

Com os estudantes se politizando, o país se radicalizando, “nosso cronista” exibiu a sua perspicácia para o fato social. “Que belo material humano estamos jogando fora. Na clandestinidade. É com essa matéria-prima que se faz uma nação” (VENTURA, 1988, p. 48).

Quem não foi para a luta armada, caiu no “desbunde”, no clima de repressão, exílio, censura. O escapismo pelas drogas foi uma saída para essa geração. Mas atingiu também adultos, como o próprio José Carlos Oliveira.