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Autorretrato falado: o autor, agora

4 O IMPÉRIO DO SÉRIO E DO ÚTIL

4.1 PARA ALÉM DO CAMPO LITERÁRIO

Para traçar um pano de fundo teórico, começamos por constatar que a noção de “campo literário” (Bourdieu) é necessária, mas insuficiente, para nossa perspectiva. Estamos de acordo com o professor Maurício Vieira Martins (2004). Ele reconhece no sociólogo “a fecundidade de sua proposta de análise, que ilumina nas obras literárias uma série de

relações que, de outra maneira, permaneceriam invisíveis”. E também concorda “com a necessidade de se romper com uma certa representação ingênua do fenômeno estético (em particular, do texto literário), que subscreve ainda hoje uma teoria do gênio criador movido por causas simplesmente inexplicáveis”. Entretanto, distancia-se de Bourdieu, porque

[...] em que pese a produtividade de sua abordagem, ela muitas vezes desconsidera a dimensão propriamente singular do fenômeno estético, equiparando-o a outras dimensões da experiência humana que a rigor são bastante heterogêneas. Daí a necessidade de algum outro tipo de apreciação suplementar que consiga manter uma relação mais afirmativa com a singularidade do fenômeno estético e do texto literário. Relação que reconheça inclusive que este último possui o que outros autores conceituam como um excesso de significação: capacidade de ultrapassar o estrito momento histórico em que foi produzido rumo a uma dimensão temporal mais ampla. (MARTINS, “Bourdieu e o fenômeno estético: ganhos e limites de seu conceito de campo literário”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, outubro de 2004 – versão on-line).

Maurício Martins refere-se “à possibilidade de a obra literária exceder sua determinação sociológica originária e vir a se constituir como força geradora de sentido, ultrapassando o contexto imediato em que foi produzida”. Dessa forma, “Quando isso ocorre, consegue operar sobre a mundanidade que a gerou a transfiguração estética – trabalho próprio da expressão artística –, demandando uma apreensão singularizada que acolha esta inovação trazida pela própria obra” (op. cit.)

Por isso, para entender como atua um escritor – aqui incluído o cronista -, consideramos apropriado nos valermos dos conceitos de Dominique Maingueneu, fundamentalmente o da paratopia do autor, que acaba por incluir todos os mecanismos que ele agencia para fundar a cenografia de sua obra. No prefácio de O contexto da obra literária, depois de observar que “Vincular uma obra ao que a tornou possível, pensar seu surgimento num tempo e num local determinado é uma tarefa tão antiga quanto o estudo da literatura”, ele considera que, na hora de articulá-la em seu “contexto”, entretanto, a tarefa só fica de certo modo fácil ao se contentarem em “ser historiadores ou em circular por uma rede de textos”. Então distingue a possibilidade de duas atitudes dominantes:

- a da história literária, que apela para um vocabulário que convém para qualquer eventualidade: a obra “exprime” seu tempo, é “representativa” dele, é “influenciada” por determinados acontecimentos, etc. Mas essas noções praticamente não têm valor explicativo quando não se determina de que modo um texto pode “exprimir” a mentalidade de uma época ou de um grupo;

- a outra, de orientação mais estilística, prefere apreender a obra como um universo fechado. Não nega a inscrição social dos textos, mas remete seu estudo a um período ulterior, ao dia em que os progressos realizados na inteligência do “funcionamento” dos textos permitem relacioná-los com seu “entorno”. (MAINGUENEAU, 1995, IX).

Maingueneau considera que “essa separação entre um exterior e um interior do texto foi de certa forma prolongada e agravada pelo estruturalismo”. Mas há que se levar em conta que pesquisas posteriores (sobre enunciação linguística, as múltiplas correntes da pragmática e da análise do discurso, o desenvolvimento no campo literário de trabalhos que reivindicam M. Bakhtin, a retórica, a teoria da recepção, a intertextualidade, a sociocrítica, etc.) “impuseram uma nova concepção do fato literário, a de um ato de comunicação no qual o dito e o dizer; o texto e seu contexto são indissociáveis” (MAINGUENEAU, 1995, IX-X). Diz mais: “Pela consideração do caráter radicalmente

enunciativo (grifo do autor) da textualidade, trata-se de questionar aquilo que em

nossos gestos mais espontâneos implica uma concepção inadequada do ‘contexto’ de uma obra” (MAINGUENEAU, 1995, X). Maingueneau considera ainda, no início do capítulo 1, “A paratopia do escritor:

A tendência da estética romântica foi privilegiar a singularidade do escritor e minimizar o caráter institucional do exercício da literatura. Ora, não é possível produzir enunciados reconhecidos como literários sem se colocar como escritor, sem se definir com relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição. Os trabalhos de certos sociólogos da literatura, em particular os de P. Bourdieu, tiveram o grande mérito de mostrar que o “contexto” da obra literária não é somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lugar, o campo literário, que obedece a regras específicas. (MAINGUENEAU, 1995, p. 27).

Para o caso do escritor/jornalista, há que se considerar que ele trabalha num campo mais específico, como o de cumprir regras da redação, articulada com a produção industrial e a distribuição, para que o produto seja entregue ao leitor no prazo contratado. Resta-lhe então um tempo exíguo para a criação, em obediência ao deadline. Também é de se ressaltar que o leitor trabalha com a possibilidade de interferência no texto, ao elogiar, criticar, opinar, o que obedece a uma prática dos veículos de comunicação de “ouvir os dois lados”. São as tão bem-vindas cartas dos leitores, hoje trafegando celeremente pela infovia. Assim, no caso da produção de uma crônica (ou de um folhetim-romance, como ocorreu com José Carlos Oliveira em três oportunidades), há que se pensar na sua diferença em relação ao campo literário do escritor de romance. Na epígrafe inicial desta tese, JCO reconhece e deixa claro que respeita essa regra do jogo. Inclusive a de

que o espaço da crônica é, modernamente, de entretenimento, o que o levaria a tentar amenizar sua pena aos sábados e domingos. Mas voltemos a Maingueneau, em forma de reiteração:

Longe de enunciar num solo institucional neutro e estável, o escritor alimenta sua obra com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à sociedade (grifo do autor). Não é uma espécie de centauro, uma parte do qual estaria imersa na gravidade social e a outra, a mais nobre, voltada para as estrelas, mas alguém cuja enunciação se constitui através da própria impossibilidade de se designar um ‘lugar’ verdadeiro. (MAINGUENEAU, 1995, p. 27).

Dominique Maingueneau (p. 27-28) avança mais na sua análise, ao ressaltar que “a inscrição do campo literário na sociedade se revela igualmente problemática”. Isso porque esse campo está integrado na sociedade, é “parte” dela, “mas a enunciação literária desestabiliza a representação que normalmente fazemos de um lugar, com um fora e um dentro. Os ‘meios’ literários são de fato fronteiras”. Isso implica, ao mesmo tempo, “A impossibilidade de se fechar sobre si e a de se confundir com a sociedade ‘comum’, a necessidade de se jogar com e nesse meio-termo”. Depois de reconhecer que a literatura tem um funcionamento comparável com o de outras atividades – operando com elementos similares ao universo de outros produtos, como estratégias de promoção, de carreiras, de faturamento –, Maingueneau avisa que há “dois perigos simétricos” que podem levar essa atividade a ficar “aquém de seus poderes de excesso”. São eles: “ - considerá-la como qualquer outro domínio da atividade social; - colocá-la totalmente de lado, fortalecer a imagem enganadora que muitas vezes os escritores gostam de fornecer deles mesmos”. Assim, chega a essa conclusão:

Não é possível falar de uma corporação de escritores como se fala de uma corporação dos hoteleiros ou dos engenheiros. A literatura define de fato um “lugar” na sociedade, mas não é possível designar-lhe qualquer território. Sem “localização”, não existem instituições que permitam legitimar ou gerir a produção e o consumo das obras, consequentemente, não existe literatura; mas sem “deslocalização”, não existe verdadeira literatura. O esforço de certos regimes totalitários para proporcionar uma condição de assalariado do Estado aos escritores reunidos em algum sindicato permite manter uma produção literária, mas não produzir obras literárias, a menos que o escritor se afaste do que é esperado dele, torne problemática essa própria pertinência ao grupo. A pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar, mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Essa localidade paradoxal, vamos chamá-la de paratopia (grifo no original). (MAINGUENEAU, 1995, p. 28).

Nos textos (crônicas ou não) de José Carlos Oliveira publicados no ano de 1968 no Jornal do Brasil o logos sobrepuja o pathos, criando-se, imageticamente (Pound, fanopeia?) um tal nível de tensão que se transmuda em pathos – o estado afetivo suscitado no receptor. Parece que isso é determinado também pelo etos – que no conceito de Dominique Maingueneau (1995, p. 137) é a imagem de si que o enunciador constrói em seu discurso (mantemos a grafia “etos” como está na edição consultada). O autor se apresenta diante e dentro dos fatos que comenta. E essa tensão surge também da própria forma como ele apresenta os fatos, tudo hierarquizado de maneira a cumprir uma intenção programada que não é a de deleitar, mas de convencer, persuadir – intenção que não faz parte do que denominamos, na falta de palavra melhor, “estatuto da crônica” de seu tempo, os anos 60/70.

Assim, ao não produzir “crônicas” líricas e escapistas nos moldes do espírito de seu tempo (zeitgeist), descolando-se do programa mais usual do campo literário, mas não descuidando do mercado de leitores, defende ideais que interessam ao modo republicano de viver. Então, pode-se estabelecer um paralelo entre a vida e a obra de José Carlos Oliveira e Jean-Paul Sartre, no que toca a sua “educação” para o compromisso social – a responsabilidade.

Vejamos. José Carlos Oliveira, em 1964, era ainda um “alienado”, do ponto de vista político. Voltou de Paris - onde, por ele, ficaria mais uns meses - porque sua amante do Rio de Janeiro o convenceu a tal. E estava “refugiado” em Petrópolis enquanto passasse a tempestade que envolvia o marido despachado. A ele interessava viver bem, como Sartre e Simone de Beauvoir do primeiro tempo dos existencialistas (desse tempo são propalados seus affairs com os alunos).

Nesse primeiro tempo, o solipsismo é uma marca das crônicas de José Carlos Oliveira, assim como o hedonismo de seu comportamento. Isso pode ser visto ainda no seu segundo livro de crônicas, A revolução das bonecas (1967), onde por vezes trescala seu ressentimento e afirma que está cobrando o saldo que a vida lhe deve. Ele codificaria esse programa de vida em seu romance de estreia, O pavão desiludido:

Se quem viveu no morro merece morrer na vida, conforme eu mesmo estabeleci na primeira infância, quero todas as viagens, todas as mulheres, todos os desregramentos, quero ser livre por mim e para mim. Que meu

corpo regresse à terra, quando o tempo for chegado, sem levar um só prazer que não se tenha esgotado em meu espírito. (OLIVEIRA, 1972, p. 129).

Mas não haverá texto de ressentimento pessoal, nem de sibaritismo ou coisa que o valha, no ano de 1968. O que se vê é que o autor vai mudar o tom de sua produção na coluna publicada no Jornal do Brasil, na medida em que as resoluções do governo militar vão, num crescendo, fazendo o cerco às liberdades democráticas, enquanto simultaneamente expurgam o país de suas mais expressivas e remanescentes lideranças civis, os atores que possivelmente pudessem fazer frente ao regime que se instalara no poder em 1964.

Esse crescendo o levará à paranoia, diante dos fatos que limitam sua liberdade de produção textual, pois os jornais passariam a ser o alvo cada vez mais atraente da censura, além daquela já clássica que vinha criando obstáculos para a circulação das artes e espetáculos (apresentações teatrais e musicais, mostras de arte). Digo, os fatos e sua impotência para engajar-se num projeto de resistência que envolve o campo político-partidário, com vertentes para a luta armada que se instalaria no pais. Nessa situação-limite processa-se também a conversão de José Carlos Oliveira ao chamado à responsabilidade, assim como a prisão de Sartre pelos nazistas, ponto crucial da evolução de seu existencialismo, uma conversão para a tomada de posições em assuntos de interesse do nível macro para a sociedade de seu tempo. Fora da cadeia, Simone de Beauvoir também teria motivos para “converter-se” ao social, pois o cenário em que se movimentava impedia os movimentos do primitivo existencialismo.

O combate de Sartre era com a arma da pena, apesar de isso não ser, por algumas alas, considerado suficiente. Não bastava não ser um colaboracionista, e nem o fato de não apoiá-los, numa França que relutou muito até admitir essa mancha em sua história. Dele se pedia mais. Era criticado, por exemplo, por submeter em 1943 sua peça de estreia (As moscas) à censura nazista, sem seus detratores avaliarem que o texto continha elementos que se contrapunham aos interesses do invasor e que seriam apontados por um crítico alemão; sem se levar em conta que a peça foi retirada de cartaz uma semana depois dessa crítica.

Para José Carlos Oliveira, essa conversão ocorre em termos similares à de Sartre. Não é apenas um dado que marca um ponto crucial de sua biografia, mas o momento em que

cria inimigos, à esquerda e à direita – o seu custo para defender sua verdade, sua liberdade (assunto caro ao existencialismo sartreano), pois nem sempre seus pontos de vista e suas atitudes estavam em consonância com as fórmulas de quem detinha o poder e também com a ideologia e a prática daqueles que pretendiam conquistá-lo. Numa guinada de estilo e temas, em JCO a sedução dos textos-fim, deleitáveis, cede lugar à intenção programática de persuadir o leitor e, possivelmente, a quem ocupasse postos de comando. É que o espírito do tempo, com suas perplexidades, demandava uma atitude, uma respondibilidade, um engajamento.

José Carlos Oliveira delatava, em seus textos de 1968, em análises e comentários de assuntos internacionais, os desmandos e as contradições no bloco comunista, por exemplo, e não se engajaria numa luta, ideológica que fosse, que tivesse por objetivo substituir no Brasil um regime repressor por outro que histórica e sabidamente suprimia as liberdades democráticas, a livre expressão, que institucionalizou o Gulag. Por isso, como Sartre, seria criticado e patrulhado ideologicamente, que era a forma como a esquerda encastelada na imprensa se somava a outros intelectuais e ativistas, e isolavam, criticavam e tentavam tirar a legitimidade das ações e das produções desses “pensadores” livres. Sartre, por exemplo, foi considerado um espião, pelos comunistas franceses, ao sair da prisão. Não aderiram ao grupo Socialismo e Liberdade, criado por ele, para colaborar com a Resistência (SARTRE, 1984, VIII). Até o consideravam prejudicial aos seus intentos.

A questão que se coloca, ao abordarmos a conversão de JCO/Sartre a uma tomada de consciência e posição diante dos fenômenos sociais em tempos de perplexidade, se baseia no dito de Mikhail Bakhtin de que “não há álibi para a existência” (Guarda-chuva dos conceitos em que nos apoiamos e ponto de contato com Sartre – Cf. HOLQUIST e TODOROV).

Sartre chegaria a esse compromisso, que difere da proposta comunista, por outra via, não a da religião, como Bakhtin, mas a do Humanismo, como assinala Todorov no prefácio à edição francesa do livro de Bakhtin Estética da criação verbal.