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As injustiças sociais no reino de Israel

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1 AMÓS: ARDENTE PALADINO DA JUSTIÇA

1.1.6 As injustiças sociais no reino de Israel

Na tentativa de responder as perguntas anteriormente postas, resulta importante observar que, estes grupos específicos não são mencionados em nenhum outro dos oráculos internacionais, neles percebemos apenas a menção ao país como um todo. Dentro do oráculo próprio de Israel, e em conformidade com Schökel e Sicre (1991) o único grupo privilegiado de não sofrer imputações da divindade são aqueles que Schwantes (1987) já elencou, fora este grupo, todas as demais camadas sociais serão

castigadas. Auditando o livro de Amós, Schwantes (1987) afirma que, ainda assim, explicitar os grupos criminosos representa o “calcanhar de Aquiles” na pesquisa, já que o profeta não se atém a detalhes ao ameaçar. Portanto, Schwantes (1987) faz uma listagem daqueles que o livro mesmo apresenta, começando, ao que seria para ele, o mais evidente26.

O primeiro refere-se ao Templo e à casta sacerdotal na pessoa de Amasias, o sacerdote de Betel, juntamente com sua família (Am 7,10-17). “Pelo que se observa, Amós dá realce ao fim do templo, sacerdócio, ritos festivos e freguesia do sagrado” (SCHWANTES, 1987, p. 36). A casta religiosa encabeça a lista dos criminosos. O segundo grupo refere-se aos comerciantes que vendem “o pobre por dinheiro, esmagam a cabeça do fraco e desviam o caminho do pobre” (Am 2,6-7; 8,4-8), o terceiro especifica os juízes, haja vista que a justiça se encontrava por terra (Am 2,7; 5,7,15,24; 6,12) frutos de má administração. O quarto grupo listado por Schwantes (1987) são as mulheres de Samaria – as “vacas de Basã” (Am 2,8-9; 4,1-3), seguido do exército, que Amós dá um destaque todo especial (Am 1,3,6,13; 2,7,14-16; 3,9-11; 5,1-3; 6,1-3,8-10,13-14; 9,10). Schwantes (1987, p. 37) reitera que, “do primeiro ao último capítulo há um tom antimilitar”, de modo que ele será um dos principais alvos da ameaça. Todos sob a proteção e a legitimação real (Am 2,6;3,9-11; 7,7-9) que também perecerá.

Neste panorama,

vimos que diversos grupos sociais são atingidos pelas profecias de destruição de Amós: sacerdotes, comerciantes, juízes, donos de escravos, a elite da capital e, em especial, os militares. Afrontadas são as pessoas que vivem em ouro, luxo e suntuosidade. Mas, estes ameaçados não só se encontram na cúpula do poder (elite da capital Samaria, sacerdotes como Amasias, comandantes militares), mas também nos povoados e vilarejos camponeses (juízes, comerciantes, donos de escravos) (SCHWANTES, 1987, p. 37-38).

26 Sicre (1990, p. 195) apresenta os mesmos dados na seguinte ordem: “as pessoas que vivem em palácios e entesouram (3,10), as senhoras importantes (4,1), os que constroem para si casas de silharia e cultivam excelentes vinhas (5,11), aceitam suborno ao administrar a justiça (5,12), podem permitir-se toda espécie de luxos e comodidades (6,4-6), dominam a atividade comercial (8,4-6)”. Nesta listagem não aparece o grupo do exército.

A lista é extensa, da mesma maneira, extensos são seus crimes. “Os governantes são os articuladores de cidade, templo, exército. Transformam-nos numa engrenagem” (SCHWANTES, 1987, p. 44). Agiam conjuntamente como se cada grupo estivesse especializado em um crime específico, modernamente poderíamos comparar com as “quadrilhas criminosas”. O Templo na profanação e subordinação de Yahweh ao Rei Jeroboão II: “é santuário do rei, um templo do reino” (Am 7,13) o que subverte o Código Deuteronomista e a Lei da Aliança, conforme já foi tratado em alguns pontos desta pesquisa. O comércio especializou-se na fraude (Am 8,4-6), no empréstimo com taxas abusivas (Am 2,7) que, consequentemente, obrigava o “pobre” a ceder seus últimos bens para penhora (Am 2,8) e dar-se a si mesmo e/ou os seus como garantia. Os juízes tinham a função de validar estas transações criminosas para que não houvesse apelação da parte lesada, ou seja, dos fracos (Am 5,7) o que sustentava “legalmente” a ação dos outros grupos da “quadrilha” (BOVATI; MEYNET, 1994). As mulheres de Samaria pela opressão, e por suas vidas luxuosas à custa deste comércio desleal, esbanjavam riqueza sem piedade, enquanto incentivavam seus maridos à prática do tráfico humano.

Como proteção a estes grupos, e para que não houvesse insurreição contra a casa real, o exército se especializou em crimes de guerra: “chacina de mulheres grávidas (1,13) e sacrilégio de cadáver (2,1)” (SCHWANTES, 1987, p. 39). Na profecia de Amós, sobretudo no final do oráculo contra Israel (Am 2,14-16), somente este grupo será atingido pela ação justa de Yahweh. Pois ele “viabiliza e dá cobertura aos que espoliam e arrasam os pobres! Os militares garantem juízes, comerciantes, senhores e sacerdotes em suas investidas contra escravas e camponeses espoliados” (SCHWANTES, 1987, p. 40). Portanto, “para Amós o exército não é simplesmente um setor da sociedade, é um de seus núcleos, responsável pela manutenção do todo da estrutura de dominação” (SCHWANTES, 1987, p. 40). E por trás de todo este cenário de desigualdade legitimada está a casa real.

Olhando por sobre toda a sociedade israelita da época, e levando em consideração o panorama até agora apresentado, a visão que temos é que, a sociedade citadina (exército, templo, comércio, etc.,) estava contra a classe rural, pauperizada, e nesta luta, o campesino não tinha nenhum aliado forte que pudesse lhe representar, legalmente, diante de um tribunal. É, exatamente dentro deste contexto rural que surge

o leão, feroz, indomável, temível por todos, que levantará a sua voz desde Jerusalém até o cimo do Carmelo (Am 1,2), que trará escuridão e luto (Am 8,9-10), que lançará fogo e matará à espada; “Iahweh dos exércitos é o seu nome” (Is 48,2), este será o advogado e juiz da causa dos pobres, este é o verdadeiro paladino da justiça.

O LEÃO QUE VEM DO SUL: A JUSTIÇA NA MISSÃO DO PROFETA AMÓS

E Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem (tsélem), segundo a nossa semelhança (d´mut) de Deus...’ E Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou (Gn 1,26)

Deus é o leão que se torna audível pela boca de Amós. Wolff (1984, p. 91) reitera: “Deus luta contra o homem”. O leão que sai do campo e luta as batalhas daqueles que não conseguem mais lutar. É o leão da tribo de Judá. Este grande rei será a imagem representativa e opositora ao reino existente. Seu som retumba por sobre todo Israel, tal qual este animal faz para proteger seu território e sua alcateia: “Iahweh rugirá de Sião” (Am 1,2) e quem escuta seu rugido estremece. Amós (3,3-8) mesmo afirma isso:

3Caminham duas pessoas juntas sem que antes tenham combinado? 4Ruge o leão na floresta

sem que tenha uma presa?

Levanta o filhote do leão a sua voz, em seu esconderijo, sem que tenha capturado algo?

5Cai um pássaro por terra na rede sem que haja uma armadilha para ele? Levanta-se uma rede do solo

sem capturar alguma coisa? 6Se uma trombeta soa na cidade, não ficará a população apavorada? Se acontece uma desgraça na cidade, não foi Iahweh quem agiu?

7Pois o Senhor Iahweh não faz coisa alguma

sem antes revelar o seu segredo a seus servos, os profetas. 8Um leão rugiu: quem não temerá?

O Senhor Iahweh falou: quem não profetizará?

Não é de hoje que o leão simboliza a força. Mais do que qualquer outro animal ele é admirado e temido pelo homem. Desde tempos imemoriais é considerado como um símbolo da justiça e da bravura, aparecendo em diferentes culturas. Trata-se de uma

figura universal. Desde a antiguidade, a figura do leão foi considerada o símbolo, imagem e encarnação de divindades muito diversas; no mundo egípcio através da deusa Hathor- Sekhmet (BRODRICK; MORTON, 2003), mais tarde, na arte assíria e babilônica como um atributo da deusa mesopotâmica Isthar (DA CUNHA; SÁ NOGUEIRA, 2015), enquanto na religião fenícia, ele se adaptará ao nome de Astarte27 (DA CUNHA; SÁ

NOGUEIRA, 2015). Na civilização grega aparecerá representado como um animal sagrado, guardião protetor de templos e cidades muradas, presente em exemplos tão notáveis como a Porta dos Leões de Micenas construída em 1250 a.C. (MALET, 1939) e sinal de distinção vitoriosa em numerosas amostras de cerâmica helênica, através da personificação mitológica de Hércules, na luta contra a força indomável da besta, carregando a pele do leão de Neméia.

A Bíblia menciona o leão inúmeras vezes, mas projeta uma imagem ambivalente deste animal. Nos Salmos (Sl 7,3; 9,9; 22,14,21; 56,5; 90,13) ou em outras passagens como 2Tm 4,17 o leão é uma criatura claramente hostil e perigosa. O felino é o protagonista de algumas passagens famosas no Antigo Testamento, como o castigo de Daniel na cova dos leões (Dn 6,17-25) ou nos confrontos com Davi (1Sm 17,34-37) e com Sansão (Jz 14,5-11). Nestes três casos o animal tem uma conotação negativa. Tal será o simbolismo predominante na exegese dos Padres da Igreja: um ser temido e violento que encarna as forças do mal e que se torna a imagem do próprio Diabo, como é recordado na epístola de 1Pd 5,8: “Sede sóbrios e vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como leão a rugir, procurando a quem devorar”.

No entanto, a Bíblia também fornece uma visão positiva. Não é a toa que no Novo Testamento o evangelista João aclame Jesus como o “Leão de Judá” (Ap 5,5). No Antigo Testamento é reconhecido como o animal forte e valoroso por excelência e o emblema da linhagem de Judá (Gn 49,9; Nm 24,9; 2 Sm 1,23; 2Mc 11,11; Pr 30,30). É por esta razão que alguns Padres da Igreja como Ambrósio e Orígenes veem no leão uma figura de Cristo. A imagem do trono de Salomão guardado por leões que está descrito em 1Rs 10,18-20; “O rei fez também um grande trono de marfim e revestiu-o de ouro puro. Esse

27 Estas três divindades, embora apareçam em diferentes culturas com nomes distintos, é uma mesma divindade, que a Bíblia de Jerusalém a registra como a “rainha do céu”, como metáfora de síntese dos antigos cultos de Ishtar. Podemos perceber sua presença em Jeremias 7,18; 44,17-19; 44,25.

trono tinha seis degraus. [...] e dois leões em pé perto dos braços e doze leões colocados de um lado e do outro dos seis degraus. Nada de semelhança se fez em reino algum”. Esse relato teve grande importância na iconografia medieval e na associação do felino ao trono (GARCÍA GARCÍA, 2009).

A literatura animal medieval é prolífica em referências ao leão. O Fisiólogo, um texto alexandrino do século II-III d.C. traduzido para o latim, constituiu a base para os bestiários latinos medievais. Este descreve as diferentes partes do corpo do leão. O manuscrito do referido bestiário latino, datado do século XII, encontra-se atualmente preservado na Biblioteca de Cambridge, listado como MS Ii. 4. 26. Sobreleva a escolha dessa edição de White o fato de ela ter sido feita com base na idônea reprodução do códice feita por M. R. James em 1928. A descrição do leão no bestiário de Cambridge a seguir, apesar de longa, merece ser transcrita para que possam ser examinadas as propriedades da natureza do animal, as quais foram consideradas de forma anagógica para representar formas simbólicas do seu tratamento religioso:

LEO, o leão, a mais poderosa das bestas, destaca-se sobre todos... O nome ‘Leão’ (leo) foi vertido para o latim de uma raiz grega, porque é chamado ‘leon’ em grego – mas esse é um nome confuso, parcialmente corrompido, uma vez que ‘leon’ tem sido também traduzido, do grego para o latim, por ‘rei’, devido ao fato de que ele é o Príncipe de Todos os Animais. Eles dizem que as ninhadas destas criaturas nascem de três. Os menores, com jubas onduladas, são pacíficos; os maiores, com pelos lisos, são ferozes. O aspecto das suas frontes e dos seus tufos das caudas são um sinal das disposições deles. A coragem deles está localizada nos seus corações, enquanto que a sua firmeza está nas suas cabeças. [...] Cientistas dizem que o Leo tem três características principais. A primeira característica é que ele ama passear no topo das montanhas. Então, se acontece de ele ser perseguido por caçadores, o cheiro dos caçadores o alcança, e ele disfarça os seus rastros atrás dele com a sua cauda. [...] A segunda característica do leão é que, quando ele dorme, parece que ele mantém os seus olhos abertos. [...] A terceira característica é que, quando a leoa dá cria de seus filhotes, ela os pare mortos e deita-os sem vida por três dias – até que o pai deles, vindo no terceiro dia, respira em suas faces e os faz viver. [...] Qualquer homem decente deve prestar atenção nisso. Porque os homens ficam raivosos quando eles não são feridos, e eles oprimem os inocentes, embora a lei de Cristo os comande libertar mesmo os culpados. A compaixão dos leões, pelo contrário, é evidente em inumeráveis exemplos – porque eles poupam os debilitados; eles permitem que tais prisioneiros, quando cruzam seu caminho, retornem ao seu próprio país; eles atacam mais os homens do que as mulheres; e eles não matam as crianças, exceto quando estão muito famintos. Ainda mais, os leões se abstêm de comer em excesso: em primeiro lugar porque eles somente comem e bebem em dias alternados – e frequentemente, se a digestão não acontece, eles têm ainda o hábito de desistir do jantar (FONSECA, 2009, p. 119).

Conforme pode ser observado nos termos da descrição do leão acima, as referências à sua realeza nominalizam-se não só através da palavra rei, mas também através de atributos próprios ao estado de majestade, tais como, coragem no coração, firmeza em sua cabeça, orgulho da força da sua própria natureza, temperança e ausência de irascibilidade, misericórdia para com os pequeninos e culpados, comedição reparadora do pecado da gula e do excesso. Tais características evidenciavam, de forma clara, senão qualidades desejáveis a um monarca medieval – segundo o topos do rei como intermediário de Deus.

É interessante notar que a ameaça leonina também está presente nos profetas israelitas do século VIII a.C., que ameaçavam o descumprimento da aliança pelo povo de Israel. De qualquer forma, seja teologicamente no ambiente de Israel ou nas culturas internacionais próximas, o imaginário leonino é cabível, mesmo dentro da forma de expressão lendária.

Portanto, o que o profeta Amós está fazendo nada mais é do que uma memória histórica da figura deste animal para, além de contrapropor a cidade28, por meio de um

espécime absolutamente do campo, ou seja, os palácios citadinos com seus governantes e suas instituições públicas corrompidas, protegidas e legitimadas pelo poder real, confrontada por este rei mitológico, justo e protetor que é o leão, o próprio Yahweh. E, para defender esse grupo, Yahweh vira leão! De nada adianta os ricos e abastados de Israel procurar a instituição real. Já corroídos pela injustiça e a idolatria, o Leão-Grande não apenas rugirá; Israel será “dilacerado/destruído” por não cuidar dos que realmente sofrem com a injustiça. Agora a luta – cidade versus – campo está equilibrada.

28 “Amós sempre a vê [a cidade] negativamente (9,14 é adendo). Seu destroçamento é iminente. Os ditos asseveram-se repetidas vezes: 1,4-5,7,14; 2,2; 3,9-11,12; 4,1-3,4; 5,3,5,6,16; 6,1,8; 7,7-8. É, pois, flagrante que a profecia de Amós é uma contestação à cidade. Este dado cresce em significado, quando se observa que a cidade reúne e aglutina, em seus muros, os setores fustigados por Amós. Lá estão: governantes (1,4-5,8,14-15; 2,3; 6,7; 7,10-17), os castelos dos abastados (1,4,7,14; 2,2; 3,9-11), o exército (1,5?,8?,14- 15; 2,2-3; 3,11; 5,3; 6,8-10), os ricos e abastados (3,9-11,12,13-15; 4,1-3(6); 5,11,16-17; 6,4-6,11), os templos e sacerdotes (3,13-15; 4,4-5; 5,4-5,21-27; 7,10-17; 8,1-3+9,1-4), os donos de escravas (8,3), o palácio real (8,3), a jurisprudência injusta (5,12,15), os exploradores (3,9-10; 4,1; 5,11; 6,3). Enfim, a cidade é o abrigo para quem a profecia prevê a desgraça. É como se fosse o catalisador de todos os ameaçados. A gente começa a mal entender nosso profeta, quando passa de largo por esta evidência: Em Amós, a cidade é a sede dos ameaçados! Ninho do mal!” (SCHWANTES, 1987, p. 40-41).

Então, o que veremos neste tópico será a ação pessoal de Yahweh em favor dos “Jacós” que estão sofrendo nas mãos do Estado. Percebemos que Amós foi capacitado com o dom da visão, ele viu o que o Senhor estava preparando para Israel, conversou pessoalmente com Deus, sendo, inclusive seu conselheiro, para aplacar a Sua ira sobre os “Jacós”. Assim Amós se põe a profetizar, convidando o povo àquilo que Yahweh lhes proporá. Desta maneira, o “ouvi esta palavra que Iahweh falou contra vós” será o primeiro subtópico deste último tópico, que apresentará as exortações deste paladino aos infiéis de Israel. Caso resulte ineficiente a demanda apresentada por parte de Yahweh, Ele enviará o fogo cósmico que concederá o triunfo aos justos e ruína aos pecadores, conforme veremos. A solução final apresentada pelo leão que vem do sul é o retorno à Aliança, para que Ele não penetre como fogo na casa de José. O subtópico posterior se encarrega de apresentar este tema.

1.1.7 “Ouvi esta palavra que Iahweh falou contra vós” (Am 3,1a): a denúncia e o castigo como constituintes da falta de justiça na profecia amosiana

A começo de conversa é preciso esclarecer que, quem faz uma denúncia pressupõe ser a vítima, que não satisfeita com as ações sofridas, apresenta uma causa perante um tribunal, e, por sua vez, aguarda que a justiça seja feita. Neste caso, Yahweh, além de ser a vítima que denuncia, é, também, o juiz que imputará o castigo a seus algozes pelos delitos sofridos, isto é, réu e juiz, justiça e misericórdia, duas faces de uma mesma moeda que delinearão o destino de Israel.

Denúncia e castigo são constituintes da falta de uma justiça atuante, e é exatamente neste preâmbulo que Deus traçará uma luta infindável. Os polos: justiça e misericórdia estarão num embate sangrento. A cena é tão dramática que Deus mesmo vocifera: “Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos... não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados” (Am 5,21-22); “eu não posso ouvir o som de tuas harpas!” (Am 5,23a); “suportareis Sacut, vosso rei, e a estrela de vosso deus, Caivã, e as imagens que fabricastes para vós” (Am 5,26). O profeta Oséias (1,9) complementa a indignação divina afirmando: “porque não sois o meu povo, e eu não existo para vós”. Estas e outras perícopes apresentam um Deus que, após um constante

diálogo consigo mesmo, chega à conclusão de que não mais tolera este tipo de atitude. Os verbos apresentados mostram que esta decisão divina se deu após um profundo processo de introspecção, haja vista que nenhum sentimento destes vem à tona por acaso. É sabido por todos que, quando se chega a não suportar uma determinada situação, é porque muita “água correu por baixo da ponte”, repetidamente. O Deus proferido pela boca deste paladino é um Deus que entra em si mesmo, que medita, que sopesa as situações, e por fazer esta justa medida, sua conclusão é que: “eu odeio”, “eu desprezo”, “prepara-te para o confronto com o teu Deus” (Am 4,12c).

É comum no quotidiano às pessoas dizerem que já mais suportam a vida que levam, que já não suportam uma determinada postura do cônjuge, ou dos filhos, etc. esta mesma palavra é empregada por Yahweh quanto à atitude da “menina dos seus olhos”, Israel. Suportar é o último estágio de uma relação falida, que começou por amor, mas que se mantém por conveniência. Deus já não suportava, não havia mais motivos para que mantivesse esta relação falida. Portanto, o que Amós tem como missão, é apresentar a profunda indignação divina pela falta de reciprocidade nesta relação que, posteriormente, o profeta Oséias (1,2) irá chamar de “prostituta”. Parafraseando uma canção interpretada por Carlos Gonzaga; “Não te esqueças, meu amor, que quem mais te amou fui eu. Sempre foi o teu calor que minha alma aqueceu...”, e Deus é este que mais amou e que mais ama, mas que neste momento histórico sentiu-se traído, sentiu- se usado. Oséias (7,13-16) e Isaías (1,2-9) chamarão os israelitas de “ingratos”. Como ensina Pérez-Cotapos29 (2018) “o drama de Yahweh é ter sido traído”, tanto pelos

instrumentos do culto formal quanto pelos da Aliança abraâmica. Por isso, o “ouvi esta palavra” representa o desfecho desta longa relação amorosa, que agora é posta em processo judicial.

Israel perceberá tão profundamente este julgamento que muitas vezes se sentirá abandonado, estes efeitos são percebidos em toda a história do judaísmo bíblico e extra bíblico30. Nas observações de Andersen & Freedman (1989, p. 473) “havia uma

29 Todas as referências a Pérez-Cotapos são de arquivos pessoais, como resultados de aulas, entre fevereiro e outubro de 2019 na disciplina “Profetas”, do curso de teologia da Faculdad de Teologia da Pontifícia Universidad Católica de Chile.

30 Durante a Segunda Guerra Mundial, quando da perseguição aos judeus em todo o mundo, questionamentos acerca da Aliança divina eram bastante comuns. Alguns chegaram a afirmar que, no fim,

promessa de aliança de que Yahweh nunca abandonaria seu povo (Sl 94,14); contudo ele abandonou Silo (Sl 78,60). A ambivalência do compromisso da aliança, ao mesmo tempo desqualificado e condicional, deixou Israel em um estado de incerteza existencial”. Ser abandonado por Deus é o grau máximo de uma punição. E os israelitas, em todos os tempos, têm consciência disso. A título de menção, recordamos aqui da comunidade judaica do Norte da África, que na Idade Média, após as investidas do islamismo, começou a lamentar-se e a concluir que Yahweh havia se apartado dela e elegido os árabes para transmitir suas palavras, sabemos disso a partir do que nos relatou o próprio teólogo judeu, Moshé ben Maimón (1135-1204), ou mais conhecido por “Rambam” ou “Maimônides”. Maimônides, nos anos 1160 d.C, escreveu uma carta, em árabe, a esta comunidade, no intuito de acalentar seus ânimos. Vejamos uma parte desta epístola:

e digam-me, onde existe outra nação a que O Eterno se lhe tenha aparecido, lhe tenha dado a Torá e lhe tenha outorgado provas de seu favor como as que nos

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