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Inovações Ocasionadas a partir do Trabalho das Lideranças Comunitárias

Encontrar-se aberto a mudanças não é uma tarefa de natureza fácil, principalmente quando estas são propostas que levam em consideração a vida coletiva, o que exige um cuidado maior, que se manifesta por meio da organização e negociação das atividades sugeridas ou planejadas, como forma de assegurar a continuidade progressiva dos objetivos que se deseja alcançar.

Em Tijuaçu a mobilização em torno das intervenções efetuadas pelas Lideranças Comunitárias se relaciona, em grande parte, como uma necessidade de suprir os anseios deste grupo étnico-cultural. Por essa razão, o trabalho realizado por esses agentes contam com a aprovação e auxílio dos membros da comunidade quilombola, principalmente por parte daqueles que militam nesta causa e a têm elegido como parâmetro norteador de sua existência em caráter individual e coletivo.

Já foram mencionadas as inovações produzidas na comunidade de Tijuaçu, depois da tomada de consciência de sua situação de povos tradicionais, as mudanças registradas por meio do trabalho ministrado pela AAQTA e agora, traduzo, de acordo com a perspectiva das Lideranças Comunitárias consultadas, as principais contribuições geradas pelo trabalho diário que desenvolvem na comunidade.

Colocar-se na função de Liderança Comunitária, de acordo com o relato das Lideranças, significa, em grande parte, abdicar da própria vida pessoal para se dedicar às atividades e expectativas da comunidade, razão pela qual é muito comum ouvir das pessoas que atuam nesta atividade a seguinte expressão “é preciso ter amor à causa”.

A partir da perspectiva de que necessário se torna vivenciar a causa, por que não se inventa uma comunidade quilombola no imaginário de ninguém, principalmente no universo simbólico dos atores que residem naquele contexto específico, mas se ressignificam conceitos, valores, comportamentos que sempre existiram, sempre estiveram lá e que, por motivos diversos, que dizem respeito principalmente a represálias de ordem externa, são impedidos de se manifestar.

145 Acredito ser prudente focalizar aqui que a realização das tarefas por parte das Lideranças Comunitárias, em consonância com os princípios estabelecidos cotidianamente pela AAQTA, funcionam como elementos indispensáveis e que devem ser considerados, a partir da importância que se revestem para a construção identitária deste grupo étnico-cultural, visto que estas entidades funcionam, não como fornecedoras de diretrizes, mas como mediadoras das compreensões e posturas tomadas por estes atores ressurgidos.

Esclareço que as Lideranças Comunitárias associadas ao trabalho da AAQTA não atuam como entidades reguladoras e sim como agentes que se propõem a construir, de maneira dialética, uma trajetória digna e respeitosa, capaz de envolver os quilombolas, possibilitando-lhes um mínimo de condições para refletir sobre sua existência política, não mais aceitando os ditames que lhes possam ser colocados pelo entorno regional e nacional.

Não havendo a pretensão por parte da categoria das Lideranças Comunitárias, tampouco por parte da AAQTA - cito aqui ambas as categorias, por considerar nesta pesquisa que elas desenvolvem um trabalho em conjunto – não de “ensinar” os indivíduos de Tijuaçu a tornarem-se quilombolas, considerando que não se propõem a desenvolver tarefas capazes de fazer suscitar no interior deste grupo étnico princípios de hipocrisia. Não se “ensina”, não se forja uma identidade quilombola, ao contrário herda-se esta condição ancestral e aprende-se a dialogar e refletir sobre ela. Nesse sentido, fica evidenciada a importância do trabalho de estímulo à conscientização e militância que as Lideranças Comunitárias, ao lado a Associação Quilombola promovem entre estes sujeitos ressemantizados.

Sobre as percepções que possuem a respeito das transformações ocorridas na comunidade depois do trabalho desenvolvido diariamente pelas Lideranças Comunitárias, os representantes desta categoria responderam:

Aqui melhorou muito a organização das atividades da nossa rua e assim o entendimento das pessoas nos assuntos da comunidade. (Entrevista realizada com Ivonete Carvalho da Silva, 50 anos em 30/04/12)

As colocações feitas pela senhora Ivonete, que não é nascida em Tijuaçu - veio para morar na comunidade ainda criança e cresceu professando os valores deste grupo - vem reafirmar tudo o que foi citado a respeito da importância dos trabalhos realizados pelas Lideranças Comunitárias, no sentido de favorecer a compreensão e reflexão dos indivíduos de Tijuaçu no que se refere a sua tradicionalidade.

146 Uma segunda percepção importante foi trazida pela senhora Emília Rodrigues, muito respeitada na comunidade em função de sua conduta pessoal e, ainda, devido ao fato de ser filha de dona Anísia Rodrigues, que é bisneta de Mariinha Rodrigues e narradora oficial das memórias do grupo. Dona Emília exerce as atividades de liderança comunitária desde 2000, cresceu ouvindo as histórias contadas por sua mãe, sempre buscando e desejando encontrar uma explicação para o fato de, como ela mesma expressa “o branco achar que o negro não é gente”.

Em nossas conversas informais dona Emília, mais de uma vez, relatou que o orgulho em ser quilombola está relacionado ao fato de esta condição específica, possibilitar entendimento ás pessoas de que “o negro é gente também e precisa ser considerado”. É importante esclarecer que estas pessoas a quem dona Emília faz referência, encontram-se tanto entre os sujeitos que se declaram brancos e ocupam a posição de “chegantes” na comunidade, como entre os indivíduos da microrregião que nunca apresentaram predisposição em respeitar a ancestralidade verificada neste grupamento.

Transcrevo a seguir o trecho da entrevista em que dona Emília enfatiza a positividade das mudanças facultadas pelo trabalho realizado por parte das lideranças comunitárias:

Eu achei que mudou um bando como eu já lhe falei, por que a gente não tinha acesso a nada, a gente vivia escondido e hoje em dia a gente vive no meio das pessoas que entende, tem acesso a escola que eu mesmo estudei até a terceira série, estudo de criança e agora depois de viúva, eu cheguei a estudar até o primeiro grau. (Entrevista realizada com Emília Rodrigues, 69 anos, em 19/04/12)

Deixar o terreno da marginalidade e do medo que quase sempre é sustentado a partir da falta de informação capaz de garantir a subalternidade daquele (a) que o ocupa. Esta constitui uma das grandes contribuições que o trabalho desenvolvido de maneira cotidiana por parte das Lideranças Comunitárias tem possibilitado aos atores ressurgidos de Tijuaçu.

Subsidiando-os a construir visibilidade no contexto demográfico que ocupam na qualidade de negros (as) e quilombolas que reaparecem reivindicando como pressuposto para edificar sua cidadania a valorização de sua ancestralidade. Procurando abdicar da imposição de viver “escondido” como relata dona Emília para se colocar e se relacionar com a sua comunidade bem como com a dita sociedade inclusiva.

Mudou muito, por que antes era aquele tumulto, era tudo tumultuado, se fosse uma fila era aquele empurra, empurra, agora não. Depois da liderança a gente conversa com o povo, a gente vai lá nas casas das pessoas e diz, olhe vamos fazer assim,

147 vamos procurar coisa X pra botar em tal lugar, é uma organização total. Por isso não tem como ser tumultuada as coisas, ser discriminada, falar vai fulano primeiro, não tem mais isso, é tudo muito bem organizado e muito bem planejado. (Entrevista realizada com Eucássia Maria dos Santos, 54 anos, em 26/04/12) Pode ser percebida nas concepções da informante a preocupação que há por parte das Lideranças Comunitárias em desenvolver um trabalho capaz de envolver todos os segmentos da comunidade quilombola de Tijuaçu. Procuram investir na organização das tarefas, como forma de subsidiar o entendimento entre todos os indivíduos do grupo que se percebam como quilombolas e desejem militar por esta causa, transformando-a, inclusive, em princípio capaz de nortear toda a sua existência em caráter individual e em instância coletiva.

É imprescindível, por essa razão, o trabalho prestado todos os dias pelos membros que compõem a mesa-diretora da AAQTA, em parceria com as atividades desenvolvidas pelas Lideranças Comunitárias, tendo em vista que são tarefas que se complementam e se expandem no interior deste grupo étnico. Sendo capazes de projetar a trajetória desses, de maneira consciente, vislumbrando o bem estar coletivo e sem nenhum propósito de privilégio individual.

Ressignificando cotidianamente o princípio de se viver em uma comunidade, bem como alargando a compreensão de se vivenciar, de forma individual e coletiva, em uma comunidade quilombola, revestindo de sentido esta vivência e traduzindo-a, de modo a ser caracterizada pela conscientização e intervenção crítica. As atividades desenvolvidas por estas duas categorias podem ser divisadas como influenciadoras diretas no processo de construção identitária destes agentes principalmente tendo em vista a capacidade de mediação que exercem frente a esses e em relação à maneira como direcionam suas vidas.

Depois de evidenciar a percepção da importância do trabalho desenvolvido pela Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências – AAQTA – na qualidade de instituição e agência mediadora da conscientização e militância em torno dos valores tradicionais e direitos dos atores sociais ressemantizados de Tijuaçu, bem como o trabalho de complementação e expansão das tarefas desta instituição, através da atuação das Lideranças Comunitárias, trago nesta pesquisa as relações estabelecidas entre a instituição escolar e o

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3.6 O CURRÍCULO INVISÍVEL PRODUZIDO PELOS QUILOMBOLAS