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A relação entre política cambial e estrutura produtiva e, de forma mais abrangente, crescimento de longo prazo, geralmente se estabelece na literatura por meio dos efeitos sobre competitividade externa (Rodrik, 2008; Frenkel & Rapetti, 2012). De acordo com Guzman, Ocampo & Stiglitz (2017), uma taxa de câmbio real competitiva e estável é fundamental para diversificação dos setores de bens tradables, especialmente aqueles com elevadas externalidades de aprendizado (learning spillovers) e também para a geração de encadeamentos para a frente e para atrás dos setores já existentes.

Assim, Guzman, Ocampo & Stiglitz (2014) sugerem o uso, pelas autoridades monetárias, de um conjunto de instrumentos (portfolio of instruments) para alcançar uma taxa de câmbio não apenas competitiva, mas também estável. Para atingir tais objetivos, a política cambial deve atuar de forma coordenada com as outras políticas, em especial a política industrial, desestimulando os setores com menores encadeamentos68, e políticas que visam à estabilidade financeira, como medidas macroprudenciais e controles de capitais.

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Assim como Guzman, Ocampo & Stiglitz (2014), Bresser-Pereira (2012) propõe, como medida de neutralização da doença holandesa, a taxação das exportações desses setores com baixo dinamismo (ou baixas externalidades de aprendizado).

Entretanto, Guzman, Ocampo & Stiglitz (2014) apontam possíveis problemas, que derivam desta opção de política. O principal deles diz respeito ao trade off entre desvalorização cambial e salários reais. Ou seja, conforme ressaltado na seção anterior, em razão do repasse cambial assimétrico em grande parte dos países da amostra, desvalorizações tendem a causar fortes pressões inflacionárias, impactando negativamente os salários reais no curto prazo. Porém, Rapetti (2013) ressalta que os baixos salários reais impulsionam, no médio e longo prazo, o aumento da acumulação de capital no setor mais dinâmico, impactando emprego e renda e, portanto, a demanda agregada. A solução para esse dilema, na visão de Guzman, Ocampo & Stiglitz (2014), seria política e social, isto é, convencer a população dos benefícios da desvalorização no médio e longo prazo69; para Frenkel & Rapetti (2014) e Bresser-Pereira (2012) uma política fiscal responsável é fundamental para conter possíveis pressões inflacionárias geradas pela desvalorização cambial70.

Contudo, as duas soluções para o dilema acima não consideram uma possível incompatibilidade entre a política cambial de longo prazo proposta e o regime macroeconômico adotado pelos países emergentes da amostra. Conforme ressaltado na seção anterior, o regime de metas de inflação subordina a política cambial e entrelaça ainda mais as políticas monetária e cambial. Assim, nas fases de alta do ciclo de liquidez internacional, o câmbio segue sua tendência cíclica de apreciação – nos termos de Bresser-Pereira (2012) -, auxiliando a política monetária no controle da pressão inflacionária, provocada, principalmente, pelo crescimento doméstico. Neste cenário, portanto, a independência entre política monetária e cambial passa necessariamente pela flexibilização do binômio regime de metas de inflação/câmbio flutuante. Em outras palavras, assumir uma política cambial anticíclica implica não só mudança no regime de câmbio, mas também uma revisão nos pilares do regime de metas, já que o câmbio apreciado não será mais um recurso das autoridades monetárias para reduzir o repasse cambial.

Alguns países emergentes “ensaiaram” essa opção durante o boom de fluxos de capitais entre 2009 e 2011 por meio do uso de instrumentos de gestão dos fluxos de capitais (ver, por exemplo, FMI, 2011). Porém, tais instrumentos buscaram mais conter o ímpeto pró- cíclico dos fluxos de capitais, e seus efeitos sobre a volatilidade da taxa de câmbio, do que reverter – pelo menos oficialmente - a trajetória de apreciação em direção a uma taxa de

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Conforme Guzman, Ocampo & Stiglitz (2014, p. 10), “the implementation of competitive RER policies

requires social coordination that in many occasions is difficult to achieve—especially so when the sectors that would lose purchasing power in the present believe that they will not share the potentially larger purchasing power of the aggregate economy in the future”.

70 De acordo com Bresser-Pereira (2012, p. 16), “o déficit público enfraquece o Estado e causa inflação, devendo

câmbio competitiva, principalmente naqueles países que possuem fear of depreciation (ver, por exemplo, Barbosa-Filho, 2015 e Ros, 2015)71. No caso do Brasil, por exemplo, o uso de instrumentos de gestão dos fluxos de capitais e derivativos foi além da estabilidade financeira (via taxa de câmbio), envolvendo também a reversão da trajetória de apreciação do real. No entanto, após o anúncio do tappering pelo Fed em 2013, o aprofundamento da depreciação da moeda brasileira levou o Banco Central a intervir via swaps cambiais, sugerindo não apenas uma preocupação com a estabilidade financeira, mas também um receio em relação ao impacto da desvalorização sobre o nível de preços (Prates, 2015).

Assim, o binômio regime de metas de inflação/câmbio flutuante fomenta em alguns países uma constante tensão entre a busca pela competitividade externa e o controle inflacionário como objetivo de política cambial. Essa tensão, por sua vez, dependerá, dentre outros fatores, da gestão da política monetária – abordada na seção anterior – e da relação entre taxa de câmbio e o padrão de comércio dos países emergentes que adotam esse regime macroeconômico.

Ao longo dos anos 2000 e 2010 se observou importantes mudanças na estrutura produtiva global, com destaque para o rearranjo das estratégias globais de organização da atividade produtiva e do surgimento da China como grande fornecedora mundial de produtos manufaturados (Hiratuka & Sarti, 2017). Neste cenário, entre 2003 e 2011 – período de elevada queda da taxa de câmbio real (ou seja, apreciação real da moeda brasileira) –, a participação dos insumos básicos e de menor complexidade econômica72 na pauta de exportação dos países latino-americanos da amostra (Brasil, Chile, Colômbia e Peru) aumentou de forma expressiva em detrimento dos outros setores, em especial, os bens intermediários e de capitais (Gráfico 2.19 e 2.25). Os dados de comércio apenas refletem, portanto, a especialização regressiva na estrutura produtiva desses países. Esse cenário tornou a taxa de câmbio dos países latino-americanos ainda mais atrelada aos preços das commodities, reforçando a posição dessas moedas como “commodity currencies” (Kohlscheen et. al., 2016; Cashin et. al., 2004). Esse tipo de inserção, portanto, tem implicações não apenas para a estrutura produtiva, mas também para o movimento da taxa de câmbio. Assim, nos momentos de boom dos fluxos de capitais – entre 2003 e 2007 e 2009- 2011 – o aumento dos preços das commodities contribuiu para a apreciação intensa das moedas periféricas (Kohlscheen et. al., 2016; De Roure, 2013; ver Gráfico 2.25 no apêndice).

71 Ver, por exemplo, Domanski et. al. (2016) e Mohanty & Berger (2013). 72

O índice de complexidade econômica mede a intensidade de conhecimento relativo de uma economia por meio da mensuração da quantidade de conhecimento requerido na produção dos bens exportados (ver Hidalgo & Hausmann, 2009).

Nesse sentido, variações abruptas nos preços das commodities podem gerar o mesmo efeito nas “moedas commodities”, gerando consequências, portanto, para a estabilidade financeira.

O México manteve e aprofundou seu padrão de comércio – integrado à cadeia de valor norte-americana na ponta intensiva em trabalho - com pequeno ganho de participação do setor de insumos básicos, especialmente petróleo, como será visto no próximo capítulo (ver gráfico 2.19; López, 2014). Conforme Cepal (2014, p. 12), o país

“(..) se destaca pelo peso relevante que têm os produtos de tecnologia média nas exportações de bens intermediários a seus parceiros do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA); não obstante, a inserção do país na “fábrica América do Norte” se sustenta principalmente na exportação de bens finais produzidos a partir de insumos importados, com escassa incorporação de valor nacional”

Os países do leste europeu (Hungria, Polônia e República Tcheca) estão integrados à cadeia de valor alemã na ponta intensiva em trabalho, exportando produtos com elevada complexidade – em sua maioria bens de capital -, porém alto conteúdo importado73 (ver Ahmed, Appendino & Ruta, 2015; ver gráficos 2.20 e 2.25). A Turquia, por sua vez, não está profundamente integrada à cadeia de valor alemã e possui um padrão de comércio concentrado nas exportações de bens de consumo (de baixa complexidade), especialmente da indústria têxtil e metais preciosos74 (Yilmaz & Karaalp-Orhan, 2016; Gráfico 2.24 e 2.25). Tais bens exportados também possuem um alto conteúdo importado, assim como nos demais países do leste europeu (Demiral, 2016). Porém, no caso turco, a combinação dessa dependência com as características dos bens exportados gera efeitos deletérios relevantes sobre a balança comercial e o saldo de transações correntes, que alcançou -8% do PIB em 2011 (gráfico 2.9).

Os países do sudeste asiático (Filipinas e Tailândia), mantiveram suas exportações concentradas em bens de capitais e de consumo de elevada complexidade e crescente integração à cadeia de valor chinesa, que se tornou o motor do comércio intra-regional. Entretanto, a Indonésia destoa do padrão acima, concentrando suas exportações em insumos

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Nos casos de República Tcheca e Hungria destaca-se a plataforma de exportação de automóveis. Ver

https://wits.worldbank.org/CountryProfile/en/Country/HUN/Year/2015/Summary e

https://wits.worldbank.org/CountryProfile/en/Country/CZE/Year/2015/Summary

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Os dados mais desagregados em relação ao gráfico 2.19 foram consultados diretamente na base do Banco Mundial de comércio exterior (World Integrated Trade Solution). A base turca pode ser acessada a partir do link: https://wits.worldbank.org/CountryProfile/en/Country/TUR/Year/2015/Summary.

básicos – especialmente mineração, agricultura e derivados do petróleo – e suas importações em bens de capital e intermediários – além de ter se tornado importadora líquida de petróleo em 2012 (Pangestu et. al., 2015; Athukorala, 2010; gráfico 2.22 e 2.25).

A Coréia do Sul não só manteve seu padrão de comércio, concentrado na exportação de bens de capital de elevada complexidade, como o aprofundou. Conforme Sato et. al. (2013), a apreciação do won, em 2003-2007 e 2009-2011 afetou negativamente a competitividade das empresas exportadoras, especialmente a indústria automotiva - em comparação à indústria automotiva japonesa. A única exceção foi a indústria de maquinaria eletrônica, principal indústria do setor exportador e caracterizada pela elevada competitividade – via preços – com as empresas japonesas do mesmo setor. Neste cenário, a apreciação do won contribuiu para a redução dos preços dos produtos exportados, via queda dos preços de produção (insumos), aumentando, assim, a competitividade dessa indústria.

Após 2011, iniciou-se um período de instabilidade do ciclo de liquidez internacional, no qual se verificou uma reversão na trajetória de apreciação das moedas periféricas (nominal e real). No entanto, até 2015, os efeitos dessa mudança não provocaram alterações estruturais relevantes no padrão de comércio dos países da amostra. Na América Latina, esse período de desvalorização não reverteu a concentração das exportações no setor de insumos básicos –no caso brasileiro, ela se aprofundou - e aumentou o custo de produção nos setores exportadores com grande conteúdo importado em seus produtos (ver, por exemplo, Brussière & Peltonen, 2008; Vaz & Baer, 2014). Já os países do leste europeu e sudeste asiático, além do México, apenas reafirmaram suas respectivas posições nas cadeias globais de valor.

Os dados apresentados, portanto, indicam que o padrão de comércio desses países não apresentou mudanças estruturais significativas após 2011, o que pode ser explicado, de maneira não excludente, pelo pequeno efeito das depreciações no curto prazo, pela insuficiência das mesmas em transformar tal padrão – e mudar a inserção dos países emergentes nas cadeias globais de valor - e/ou pela ausência de políticas complementares em prol da competitividade externa - como a política industrial e tecnológica.

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS)

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS) 0% 10% 20% 30% 40% 50%

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 e m % d o To tal

2.19: Padrão de comércio - América Latina

Bens de capital Bens de consumo Bens Intermediários Insumos básicos

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% 45%

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 Em % d o To tal

2.20: Padrão de comércio - Leste Europeu

Bens de capital Bens de consumo Bens Intermediários Insumos básicos

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 Em % d o To tal

2.21: Padrão de comércio - Sudeste Asiático

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS)

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS)

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS) 0 10 20 30 40 50 60

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 Em % d o To tal

2.22: Padrão de comércio - Coréia do Sul

Bens de capital Bens de consumo Bens Intermediários Insumos básicos

0 10 20 30 40 50

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 Em % d o To tal

2.23: Padrão de comércio - México

Fonte: World Integrated Trade Solution (WITS)

Nota: Atlas da complexidade econômica – MIT 0 10 20 30 40 50 60

Exportação Importação Exportação Importação Exportação Importação

2003 2011 2015 Em % d o To tal

2.24: Padrão de comércio - Turquia

Bens de capital Bens de consumo Bens Intermediários Insumos básicos

-1,5 -1 -0,5 0 0,5 1 1,5 2 2,5 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Gráfico 2.25: Índice de complexidade econômica - países selecionados

Brasil Chile Colombia Rep. Tcheca Hungria Indonesia Mexico Peru Filipinas Polônia África do Sul Coréia do Sul Tailândia Turquia

2.5 Relação entre condicionantes estrutural e domésticos e o impacto sobre a autonomia