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Institucionalização da participação: via para concretização da cidadania?

CAPÍTULO 1 INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: CAMINHO

1.5 Institucionalização da participação: via para concretização da cidadania?

O que vimos até aqui nos leva a considerar que a institucionalização da participação tem sido alvo de pretensas apostas ideológicas à espera de que essa prática de gestão integrando “políticos”, “tecnoburocratas” e “representantes” de organizações da sociedade civil na elaboração e definição de políticas públicas possibilitaria, além de maior “eficiência” e “eficácia” (argumento instrumental), alterar práticas “patrimonialistas” e “clientelistas”. Essas práticas, de acordo com estudos de Evans, Putnam, minam a possibilidade de consolidação do designado “capital social”, e, portanto, de relações mais horizontais e simétricas.

Nesse sentido, a consolidação da cidadania estaria orientada para combinação de mudanças institucionais com a “criação” e expansão de práticas culturais democráticas por parte dos agentes sociais. A literatura acadêmica neo-institucionalista considera que a construção de mecanismos institucionais e políticos que incorporem a participação da “sociedade civil” na construção de uma esfera pública , capaz de estruturar-se sobre “o exercício impessoal do poder” e de regras universais de condutas de gestão sócio- estatal contribui para “construir uma nova cultura política36” .

36 Enfatizo que não estou investigando a categoria “cultura política”, que vem sendo objeto de estudo de

Portanto, a participação é entendida como forma de deflagrar o processo de consolidação da cidadania. E isso implica na possibilidade da participação servir como “instrumento” que possa minimizar o clientelismo. De acordo com Fedozzi “Esses últimos elementos (participação37) representam obstáculos estruturais aos sistemas políticos de incentivos clientelistas e personalistas, típicos das práticas políticas patrimonialistas. Tem-se aqui, dois requisitos de ordem político-institucional que se contrapõem, levando a concluir que a convivência entre essas duas formas de gestão estatal – a patrimonialista e a de caráter racional-democrático – não são compatíveis entre si.” (mímeo:7). Reafirma-se a impossibilidade de convivência entre modelos gerencias estatais e também culturais dicotômicos, ambíguos e contraditórios. Temos, segundo essa análise, o funcionamento de um modelo ideal – o racional burocrático – no qual o clientelismo é entendido como uma disfunção. Trata-se de uma perspectiva funcionalista, que desconsidera as contradições estruturais, trabalhando então, com a idéia de disfunção, ou seja, tudo aquilo que se apresenta como um desvio desse modelo ideal que funciona em “perfeito equilíbrio e ordem”. Nesse sentido, a participação – elemento capaz de provocar uma ruptura em práticas clientelistas - deveria ser deflagrada pelos mecanismos institucionais do Estado, principalmente da administração pública municipal.

Para Fedozzi, poucos estudos privilegiam a questão da gestão-sócio-estatal como importante ação para instituição da “cidadania”. Isso se deve, segundo o autor, pelo caráter historicamente autoritário do Estado brasileiro. Dessa forma, a literatura acadêmica privilegia a perspectiva da “instituição” da cidadania advir não do Estado, mas sim dos movimentos sociais. Nesse sentido, existiria uma dificuldade em considerar a cidadania como constitutiva do Estado.

Segundo Fedozzi, a institucionalidade, ou seja, um modelo político de gestão sócio- estatal, seria um dado estrutural para consolidar a cidadania. Nesse sentido, o OP se constitui como um importante elemento de ruptura com padrões de dominação pautados

que cultura política não deve ser tratada como um fragmento, mas que faz parte da dimensão da vida social. Para uma discussão sobre cultura política ver: KUSCHNIR, Karina, CARNEIRO, Leandro Piquet. As Dimensões Subjetivas da Política, Estudos Históricos, volume 13, n. 24, 1999.

em relações patrimonial-burocrática que caracterizam o modelo político administrativo do Estado brasileiro.

Fedozzi estabelece alguns indicadores institucionais para emergência da cidadania no Brasil, construídos a partir de um modelo tipo-ideal, para demonstrar a emergência da cidadania ou continuidade da “ não-cidadania” no Brasil.

Quadro 1 - Indicadores de Cidadania e Patrimonialismo

CIDADANIA PATRIMONIALISMO

1 critérios impessoais, objetivos e universais na distribuição dos recursos públicos.

1 Critérios pessoais e/ou

particularistas na alocação dos recursos públicos.

2 Diferenciação entre o que é interesse público e o que é interesse privado e/ou pessoal; Diferenciação entre a esfera pública e a esfera privada.

2 Utilização pessoal e/ou privada dos recursos públicos;

“troca de favores” ou barganha política com a utilização dos recursos públicos (clientelismo).

3 relações contratuais:

- acesso universal às decisões;

- transparência na gestão e prestação de contas (accountability);

- mediações institucionais, controle e partilha do poder.

3 relações não contratuais:

- acesso privilegiado às decisões; - intransparência;

- ausência de mediações institucionais e do controle do poder;

- tutela e cooptação por parte do Estado.

4 Coerência entre os níveis institucional-legal e o social;

Equivalência entre as decisões públicas e a realidade social.

4 dualidade entre os níveis

institucional-legal e o social;

disparidade entre as decisões públicas e a realidade social.

Fonte: FEDOZZI, L. , 1997, p. 101 No quadro acima referido, a categoria cidadania emerge em seu formato institucional “nascido” na modernidade, com apelos à “impessoalidade “ e regras universais. Esse tipo de análise, como nos referimos anteriormente, parece pautar-se sobre uma lógica racionalista da qual existiria um modelo ideal de funcionamento do Estado, sendo o clientelismo e o patrimonialismo elementos desviantes.

Entendemos que concebidas dessa forma, as categorias - que são socialmente construídas - acabam sendo tratadas como elementos à parte do processo de construção

historicamente dado, ou melhor ainda, historicamente conformado, não por instituições legais, ou sanções impostas, mas sobretudo, pelas práticas sociais que são acordadas na prática cotidiana. Nesses termos, cidadania e participação se inscreveriam como uma “ideologia universalizante” do discurso da modernidade? Devemos ressaltar que as categorias não têm autonomia do contexto histórico e cultural. Entretanto, estruturas e categorias não são aqui entendidas enquanto elementos estáticos. Na visão de autores como Sahlins (1990), “o mundo não é obrigado a obedecer a lógica na qual é concebido. As condições específicas do contato europeu deram origem a formas de oposição entre chefias e pessoas comuns que não estavam previstas.(...) no mundo ou na ação – tecnicamente, em atos de referência – categorias culturais adquirem novos valores funcionais. Os significados culturais, sobrecarregados pelo mundo, são assim alterados. Segue-se então que, se as relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada” (174).

Desse modo, é necessário a problematização das categorias analíticas, principalmente o conceito de participação, repensado enquanto uma “categoria nativa” de pensamento, ou seja, categoria estruturada a partir de um determinado ordenamento político-cultural que se pretende universalizante. Nesse sentido, participação, democracia, cidadania seriam categorias “cunhadas” a partir do discurso da modernidade, que as produziu enquanto valores sociais, mas que em determinadas culturas não encontraram ressonância na prática social.

Assim, verifica-se as premissas orientadoras dos estudos sobre a questão da democracia, estruturam-se a partir da dicotomização clássica entre patrimonialismo/modelo racional- democrático, como se o primeiro representasse uma “sociedade tradicional (ultrapassada)”, e o segundo representasse a “sociedade moderna”, assentada sobre a impessoalidade e universalidade dos direitos38.

38 Além disso, o clientelismo é entendido na perspectiva da ciência política, que focaliza os estudos

acerca dessa temática ao seu aspecto “patrimonialista”, ou seja, discutem a apropriação privada de recursos públicos, por atores políticos que geralmente trocam espécies econômicas por votos e apoio político. Dessa forma, o modo como essas trocas constituem relações sociais e são forjadas por elas não é considerado. Concebido dessa forma, o clientelismo é sempre relacionado à utilização de recursos públicos para benefícios privados. De acordo com Bezerra, “as práticas clientelistas são identificadas

como ganhos particularísticos e são confrontadas às condutas que privilegiam o que se considera como interesse público. Neste caso, é estabelecida uma descontinuidade entre as condutas clientelísticas (ou vantagens políticas) e o interesse público. Esse ripo de afirmação, no entanto, como já indicou, entre outros SILVERMAN (1977) ao referir-se à noção de patronagem pública, pode ser relativizado. O

Para Fedozzi, verifica-se uma dualidade no Brasil, quer seja, uma formalidade jurídico- institucional aparentemente compatível com a de uma moderna sociedade democrática e “ práticas sócio-políticas de caráter patrimonialista que, entre outros elementos, se reproduzem através de uma perniciosa indiferenciação entre o que é público e o que é privado e/ou pessoal” (mímeo: 8).

Dessa forma, os estudos sobre cidadania centram-se também no aspecto da “cultura política” autoritária que influenciaria esse imaginário político e entendem, em sua maioria, que a participação contribui para mudança dessa “cultura política”. Alguns estudos reforçam a idéia da convivência no Brasil de duas culturas: uma autoritária e uma democrática.

Para Fedozzi a “impessoalidade do poder” e a prevalência de regras universais são obstáculos ao sistema clientelista e/ou personalistas, típicas de práticas políticas patrimonialistas. Para o autor, não seria possível a convivência entre tais modelos, o patrimonialista e o racional-democrático. A cartilha do OP de Niterói reforça esse discurso, ao enfatizar que o modelo racional- democrático poderia eliminar as práticas políticas patrimonialistas. Entretanto, a população é convocada a participar de algo pronto, definido acabado, na qual os limites de sua participação estão bem especificados. Nesse sentido, podemos dizer que o OP de Niterói foi outorgado à população. Trata-se de uma categorização política construída por um grupo político, da qual a maioria da população não tem muita familiaridade. E nessa prática de gestão- sócio estatal, reforça-se as trocas, o “olho no olho”, ou seja, relações pessoais, na qual a assimetria constitui-se como prática do cotidiano. Assim, tais categorias (cidadania, participação) ainda não encontram significado próprio dentro desse locus, da forma como foram estruturadas, instituídas, construídas em caráter universalizante.

público, nesses casos, apesar de não ser especificado, remete de modo amplo á idéia de coletividades (em oposição ao particular), mas coletividades que não são identificadas com os interesses locais município, região, etc. Todavia, a vinculação entre interesse público e as ações dirigidas para as localidades foi claramente formulada por Vítor N. Leal. Àqueles que acusam os chefes políticos de falta de espírito público” e ‘ideal político” , o autor lembra que é a eles que se devem as melhores melhorias (escola, estrada, correio, luz elétrica, hospital, etc.) de seu município. O público, nesses casos está associado a interesses locais” (1999:125/126)

Fedozzi entende que a discussão da temática “participação popular” insere-se numa problemática teórica maior, qual seja, a relação existente entre “ação institucional” e os caminhos para as mudanças estruturais na sociedade brasileira. Portanto, nesse sentido, o Estado, por meio de suas instituições, seria capaz de alterar práticas sociais.

O que verificamos nesses estudos acerca da participação na gestão pública, é que, em sua maioria, o maior problema suscitado pelas diferentes matrizes interpretativas, para além da obsessão em associar descentralização=democratização, encontra-se nas premissas que organizam tais matrizes, polarizadas entre a valorização da racionalidade política e as práticas clientelistas e patrimonialistas de um “tradicional” modelo de Estado. Nesse sentido, consideramos que as literaturas acadêmicas, originadas principalmente de estudos da Ciência Política e da Administração - e da qual a cartilha do OP de Niterói se constitui como um reflexo - postulam-se como supervalorização da racionalidade organizativa dos instrumentos gerenciais de administrações municipais e estaduais que utilizam-se de mecanismos como o Orçamento Participativo e de Conselhos Municipais.

Nesse sentido, a introdução de instrumentos gerenciais participativos na Administração Pública tem sido analisado por muitos teóricos como forma de minimizar a ação de práticas clientelistas operadas nas instituições políticas. Dessa forma, grande parte das teorias reforça a idéia de que a institucionalização da participação na gestão pública é um ótimo caminho para “fabricar” ou desenvolver o capital social.

CAPÍTULO 2 – CONHECENDO O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: