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Instituições, administração ultramarina e História Natural

1. Capítulo I – Os saberes da História Natural: descrevendo formações anteriores

1.3. Instituições, administração ultramarina e História Natural

Com o fim da União Ibérica, houve transformações institucionais em Portugal que visaram não somente o estabelecimento de uma nova dinastia no governo, mas também o assentamento de novas diretrizes administrativas para a colonização. Tais transformações (assim como o surgimento do meta-gênero instruções de viagem) podem ser entendidas como uma busca por maior precisão nas transmissões de informação e produção de conhecimento sobre as colônias. Estamos falando de acontecimentos discursivos e pragmáticos (indutivos) que dissolviam um tempo natural e um imaginário mágico repleto de maravilhas e monstros (uma retórica baseada apenas na experiência da viagem) e construíam novos critérios de verdade, de conhecimento. Estamos falando de discursos mais céticos e menos mágicos. Porém, como a secularização não foi um movimento de exclusão da Igreja, mas sim uma reacomodação entre as estruturas clericais e monárquicas, a concepção cristã ainda produzia sentido, motivo pelo qual veremos resquícios do imaginário do maravilhoso nos burocratas do Estado e nos naturalistas luso-brasileiros do final do século XVIII. Como anotou Marco Antonio Silveira em “O universo do indistinto”,

a visão de mundo dos memorialistas e funcionários reais estava longe de sustentar-se exclusivamente no racional e nas luzes. Apesar da

importância dos novos valores ilustrados e do teor empírico das análises, o pano de fundo com base no qual a racionalidade dos discursos se engendrava, constituía-se de formas mitológicas. A

observação científica do real e a percepção dos problemas enraizavam-se na imagem de um mundo que oscilava entre a ordem e a desordem, brancos e negros, Deus e o Diabo. O modelo civilizador, a ilustração, o reformismo e a mitologia orgânica eram os elementos

essenciais que estabeleciam a lógica e a síntese desse pensamento erudito. Do ponto de vista estritamente político, tal síntese explicitava qual era a “ideologia de colonização” do Estado português na segunda metade dos Setecentos79.

A ciência, a burocracia e as academias não venceram a dualidade de oposições da teodiceia, e continuou-se a considerar a América como um território entre o céu e o inferno. O passado mitológico da criação ainda orientava, em alguma medida, os representantes católicos do Velho Mundo no Novo.

Não obstante, é possível descrever as transformações que ocasionaram a reelaboração do imaginário do maravilhoso em algumas instituições que se prestavam à administração ultramarina. Com o tempo, as cartas de descobrimento e conquista, como as de Caminha, foram substituídas por um gênero de escrita mais burocrático, que passa a ser produzido de dentro das primeiras vilas e arraiais que surgem no Brasil. Com uma elite burocrática governando o Brasil, o memorialismo passa a ser um mecanismo preferido, oficial e acadêmico para se transmitir as experiências políticas e sociais da colônia, bem como para fornecer um quadro da paisagem e das atividades econômicas.

Gênero que pode soar um tanto heterogêneo diante de nossas atuais separações disciplinares, o memorialismo tem características de diversos saberes. Quando lemos as memórias portuguesas do século XVIII, podemos identificar traços da literatura de viagem (há memórias que são o resultado de explorações a lugares ou fronteiras, nas quais constam itinerários, como se fossem diários), da cartografia (poderiam ser

memórias geográficas, também com itinerários), da corografia (gênero do programa

historiográfico das academias da época que narrava a história dos principais homens e acontecimentos, dos lugares, realizando inclusive a descrição geográfica e paisagística), da História Natural (já que o objeto de descrição delas muitas vezes era a natureza, a fauna, a flora, a hidrografia, o relevo, entre outros – nesse caso, eram intituladas

memórias científicas) e da análise das riquezas (ou do que viria a ser a economia

política, já que muitas memórias se encarregavam de temas como a agricultura, a mineração e o comércio entre Portugal, suas colônias, África e Europa – nesse caso intitulavam-se memórias econômicas). Apesar dessas memórias se constituírem como um gênero bastante amplo e disperso, refletiam o fazer literário acadêmico praticado por

79 SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas

Portugal e suas instituições do século XVIII. Eram dissertações que poderiam ser curtas ou longas, sobre um determinado assunto, podiam vir sob a forma de instrução de

governo, descrição histórico geográfica (é o caso quando ela se aproxima tanto da

cartografia quanto da corografia), discursos ou exposições (de variados assuntos), ou sob a forma de memórias, ensaios ou observações científicas e econômicas (dissertações sobre assuntos relativos à economia, à História Natural e seus campos correlativos como Matemática, Mineralogia, Química, Física, entre outros).

Podemos encontrar, na corografia por exemplo, as duas categorias básicas definidas por Aristóteles e presentes também na literatura de viagem: a descrição demarcada entre terra e povo. Sobre o povo, levava-se em consideração a história dos principais nomes responsáveis pela fundação, origem, história dos lugares, os acontecimentos notáveis, os monumentos, os aspectos paisagísticos das vilas e arraiais (se eram mais urbanos ou mais rústicos), buscavam-se censos populacionais, índices comerciais, entre outros. Sobre a terra, os aspectos geográficos como relevo, hidrografia, vegetação, a ocorrência dos metais preciosos, as características gerais da fauna e da flora, as espécies que vão bem ali, o estado das atividades econômicas (mineração, agricultura), a paisagem natural, entre outros. Os manuais apresentados na seção anterior também se valiam dessa separação de objetos. Vê-se que apesar dos matizes específicos, todos estes gêneros compartilhavam da mesma estrutura narrativa dada a partir da observação-descrição.

De princípio, os memorialistas eram figuras políticas, administrativas, burocráticas e militares que se responsabilizavam pelo trânsito de informações no Atlântico, o que possibilitava uma administração ultramarina – nesse momento as memórias científicas e econômicas eram mais raras. A partir da segunda metade do século XVIII, incorporam-se ao memorialismo autores que eram filósofos da natureza (dos campos da Matemática, Física, Química, Economia e da História Natural). Essa incorporação produziu mudanças substanciais nesse gênero, demonstrando, além de transformações na gestão do ultramar (que a partir de então levou em conta os conhecimentos da História Natural para governar), a amplitude de sua heterogeneidade. Mas vejamos os princípios que regem a construção desse tipo de documento, que, apesar de adotar uma abertura eclética para outros temas, possui rigores metodológicos.

Conforme escreveu Íris Kantor, a prática de memoriais de governo constituía um “importante instrumento de transmissão das experiências de gestão do ultramar”80, e eles se manifestaram como uma linguagem que atribuiu sentido à realidade colonial. Além de comunicar, essa escrita servia para governar e colonizar. O programa historiográfico da Academia Real de História Portuguesa, fundada por D. João V em 1720 – o mesmo que queria fazer uma viagem de instrução pela Europa –, previa novos procedimentos para a composição dessas memórias. Este programa consistiu em uma maneira sistematizada e metodológica de se preparar coleções de documentos, tornando-se o processo cada vez mais acadêmico e com etapas obrigatórias a seguir. A Academia ditava princípios normativos do trabalho historiográfico, recomendava ou vetava autores, agregava sócios por todo o território e subordinava a si as informações dos arquivos do reino e a conservação dos monumentos antigos. Todo este material produzido era restrito à administração. Nenhuma informação a respeito da América portuguesa poderia ser publicada, divulgada ou circulada. Uma das principais orientações da Academia refere-se à reunião de informações disponíveis em todo o reino através da preparação de inquéritos. Estes seriam enviados a autoridades como bispos, arcebispos, camaristas, provedores das comarcas e outras autoridades. Tinham o objetivo de elaborar censos de todo o tipo, descrever os lugares e fornecer informações capitais tanto para a administração quanto para a escrita de uma História do Império de Portugal.81

A exigência de um rigor metodológico para se obter essas informações indica que o Estado estava se colocando a tarefa de produzir maior densidade documental. Nos primeiros séculos de colonização, os documentos e relatos eram produzidos nas missões, geralmente por eclesiásticos, por estarem mais interiorizados que os governantes. As listas de batismos e casamentos constituem até hoje uma grande fonte para se analisar a realidade do Brasil colonial. A implementação do memorialismo a partir da Academia Real de História Portuguesa significou, então, uma secularização, ainda que muitos missionários interiorizados na colônia ainda permanecessem produzindo conteúdos sobre o Brasil. Nas palavras de Kantor, o trabalho a que o Estado se propôs estimulou “a secularização da história eclesiástica e a sacralização da história

80 KANTOR, Iris. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana 1724-1759. São

Paulo: Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, p. 142.

81 FIGUEIREDO, Luciano; CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso (...) [1751]. Belo

civil”82. Desse modo, o Estado buscou a produção de fontes mais precisas e confiáveis para poder utilizar os dados visando a uma melhor gestão e a possíveis reformas no Império:

o levantamento geral da documentação e o envio dos inquéritos régios constituem, no dizer dos acadêmicos, uma empresa de crédito e utilidade para o reino, pois não só tornavam possível a composição das histórias locais, como também forneciam um quadro geral das populações, dos patrimônios fundiários da nobreza, das ordens religiosas e militares. Neste sentido, seria interessante explorar a hipótese de que o processo de coleta da documentação nos arquivos do reino subsidiou as reformas da administração pública que vieram a ser implementadas no período pombalino e mariano.83

O que o Estado buscava era trazer para si a elaboração de dados necessários para governar e reescrever uma História do Império de Portugal:

a composição de memórias históricas, porém, não deveria ser confundida com a escrita da história em si. Pelo contrário, as memórias – aparato crítico das fontes documentais e bibliográficas, tabuada cronológica, carta geográfica, corográfica, genealógica, catálogo de autoridades, etc – constituíam uma precondição para a elaboração de uma história verossímil. Os historiadores eruditos

tratam de distinguir entre campo heurístico e campo hermenêutico, de

modo que a autoridade das interpretações ou conjeturas só tinham plausibilidade quando fundadas na pesquisa rigorosa84.

As memórias e os inquéritos pertenciam ao campo heurístico, pois está no domínio do viajante explorador ou burocrata, que fornece os dados através da observação-estudo da realidade. Em suma, o Estado buscava ser o produtor das fontes de sua própria História, garantindo a hegemonia de sua narrativa perante possíveis resistências representadas principalmente pelos jesuítas (que ao cabo serão expulsos de Portugal em 1759). As pesquisas eruditas do campo hermenêutico – realizadas nas academias – seriam feitas com base em inventários memoriais produzidos sob orientação mesma do Estado. Kantor ainda ressalva que, apesar de a academia relegar a heurística ao memorialismo, por vezes ele pretendeu um patamar acadêmico, isto é, pretendeu produzir um conhecimento científico e verificado, e não apenas coletar fontes

82 KANTOR, Íris, Op. cit., 2004, p. 71 ou 72. 83Ibidem, p.68-69.

da colônia. Isso se torna mais evidente a partir de 1770, com a inserção dos autores economistas e filósofos da natureza no memorialismo. A História Natural, através do memorialismo, tornou-se, um campo hermenêutico produtor de conhecimento.

Assim, além de se colocar essa tarefa, Portugal se encarregou de formar funcionários adequados. A Universidade de Coimbra atuava na formação desses letrados úteis ao trabalho burocrático do Império desde 1653. Os estatutos desse ano previam, em termos gerais, a formação em Leis com o estudo dos Direitos Romano e Canônico, passando pelos comentadores medievais de maior consideração. Stuart Schwartz comenta que as

necessidades do governo e os objetivos e políticas particulares da Coroa exerceram influência na natureza e conteúdo da educação universitária em Portugal. O estudo de Direito de um ponto de vista técnico mais que preparava o estudante para o exercício de sua profissão e para o ingresso no serviço real; inculcava nele também um complexo padrão de ações e critérios aceitos. Em Coimbra, a formação em Direito era um processo de socialização destinado a criar um senso de lealdade e obediência ao rei.85

Caetano da Costa Matoso foi um letrado que se titulou em Direito na Universidade de Coimbra em 1741, e que, apesar de não ter sido membro da Academia Real de História, adotou as normas memoriais desta na formulação de seu Códice de 1752. Foi tratado por Luciano Figueiredo e Maria Verônica Campos como um letrado que se esforçou para alcançar um “rigor acadêmico e pela luta por posicionamento na burocracia”.86 A reunião dos relatos do códice foi feita através da distribuição de inquéritos a diversas autoridades, da coleta de textos anônimos e de relatos de viajantes. Por isso, o Códice é um exercício de erudição, coleta, empiria, viagem, heurística e pragmatismo. Na compilação de seu códice, o ouvidor de Vila Rica (1749-1752) se mostrou consciente da categoria de descrição dos lugares, terra e povo. Atentou para vilas e arraiais, suas construções, os costumes, entre outros aspectos; também atentou para a natureza, descreveu paisagens, espécies de plantas e animais e extrações de ouro e diamante.

85 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. A Suprema Corte da Bahia e seus

juízes: 1609-1751. Perspectiva, 1979, p. 60.

Por isso, podemos dizer que o Códice Costa Matoso também é referenciado na literatura de viagem; afinal, os portugueses que assumiam cargos na colônia tinham a viagem como parte de seu dever. Costa Matoso deixou em seu Códice um relato incompleto de sua viagem até Minas Gerais. Apesar de Laura de Mello e Souza declarar que uma das características dos relatos de Matoso “é a predominância da contenção e da objetividade”, com “poucos adjetivos” e “nenhum excesso”, o que colocaria o autor distante dos “arroubos edenizadores dos séculos precedentes”87, considero que a presença de alguns adjetivos utilizados para caracterizar a paisagem da viagem são representações oriundas do imaginário edênico ou infernal. Podemos observar uma dualidade de oposições na descrição da natureza que se lhe apresenta na viagem para Minas, quando contrapõe um dia “fresco e excelente” a um caminho “afogado e melancólico”, ou um rio “caudaloso e sombrio” à “harmonia na ordem com que se precipitavam” as águas de uma cachoeira88. Uma natureza oscilante entre o belo e o feio, entre a maravilha e o monstro. A historiadora admite, logo após sua ressalva, que ainda havia “edenizações tardias que continuaram pontuando escritos variados ao longo do século XVIII”89. Nesta dissertação temos como exemplo dessa presença edênica José Vieira Couto, que apresentaremos melhor no capítulo 3. Matoso se mostra bem mais contido do que Couto quando se trata do imaginário da conquista, mesmo assim utilizou palavras-chave que veremos se repetir em outros textos permeados por concepções do mesmo tipo, o que corrobora a ideia de que a literatura de viagem portuguesa sempre leva aspectos edênicos para a descrição e o relato das paisagens e riquezas. Ou seria algo próximo do que escreveu Souza: “o exagero é companheiro da surpresa – espécie de reação natural ante situações inusitadas”.

Não pretendo demonstrar aqui que a literatura de viagem (e o imaginário do maravilhoso que às vezes a acompanha) se contrapunha aos novos postulados memoriais e historiográficos elaborados pelos estatutos da Universidade de Coimbra e pela Academia Real de História Portuguesa. Pelo contrário, quero apontar que, mesmo com a secularização promovida por essas instituições, a literatura de viagem (e o imaginário) permaneceu atada às representações sobre o Brasil (como afinal endossou Souza), mesmo na documentação oficial. O elo entre a secularização e o imaginário

87 SOUZA, Laura de Mello e. A viagem de um magistrado: Caetano da Costa Matoso a caminho de

Minas Gerais em 1749. Revista Varia Historia, vol. 15, n. 21, july, 1999, p.383.

88 FIGUEIREDO; CAMPOS. Op. cit., 1999, p. 884-885. 89 SOUZA, Op. cit., 1999, p. 383.

edênico era a experiência, pois governar a colônia consistia em uma viagem. A dualidade de oposições com que se caracterizava a natureza brasileira de fato fazia sentido, e muitas vezes esse imaginário edênico ou infernal era capaz de revelar o quanto a ocupação do Brasil pelos portugueses poderia ser uma experiência contraditória ou paradoxal para eles: uma natureza que poderia verter riquezas, mas que não as dava de pronta entrega aos invasores.

O Códice ainda revela outra proximidade mais direta com esse imaginário. O texto de autor anônimo intitulado “Inscrição enigmática formada em quatro regras para argumento de serem também os sinais povoadores da América”90 refere-se a uma pintura rupestre encontrada em 1738 na Comarca do Rio das Mortes, no interior de uma gruta onde hoje é São Tomé das Letras. Foi atribuída, como o título do documento sugere, aos primeiros povoadores da América, ou melhor, a São Tomé, o santo peregrino edênico que teria passado pela América promovendo as primeiras evangelizações e o ensino do plantio da mandioca às populações autóctones. A miragem desse santo era recorrentemente encontrada na “geografia maravilhosa” desde as expansões para o oriente, e isso se repetiu na América91. O padre Manuel da Nóbrega foi o primeiro a aludir à esta primeira evangelização que teria havido na América antes dos europeus; essa enunciação seguiu adiante através de António Vieira, chegando até o século XVIII. Decerto, o descobrimento do ouro de Minas Gerais deve ter estimulado esse imaginário na região.

Se, por um lado, o imaginário edênico ainda era capaz de oferecer, tanto ao memorialismo quanto à História Natural, representações gerais sobre a natureza (aspectos abrangentes como um lugar edênico ou infernal), por outro, as representações das partes dessa natureza são distintas entre o Códice e as memórias científicas das últimas três décadas do século XVIII.

Dentre os diversos textos e temas reunidos no Códice, os que tratam diretamente do mundo natural são: “Cana de açúcar”; “Farinha de mandioca ou de pau”; “Notícias das taquaras, dos cipós e das muitas comidas que se fazem de milho nas Minas”; “Lembranças, das ervas medicinais, dos cipós e das árvores, e paus mais usuais no país das Minas”. Outros tocam o assunto indiretamente: “Engenho de açúcar e aguardente, azeite de mamona e farinhas de mandioca e de milho”; “História da Vila do Príncipe e

90 FIGUEIREDO; CAMPOS. Op. Cit., 1999, p.374. 91 HOLANDA. Op. cit., 1985.

do modo de lavar os diamantes e de extrair o cascalho”; “Modo e estilo de minerar nos morros de Vila Rica e de Mariana”.92 Por ora, não analisarei estes últimos.

Dentre os que são tocantes especificamente à natureza, podemos dividi-los em dois subgrupos: no primeiro, há uma tarefa de catalogação e divulgação das plantas, mas não no sentido lineano, rigoroso, com uma nomenclatura metódica, e sim na forma de um catálogo informal de insumos conhecidos e utilizados na região, com nomes populares; no segundo, instruções e dicas de plantio e preparação de alimentos.

A respeito dos catálogos, o intuito era o de descortinar as potencialidades econômicas da colônia, formando uma lista dos cipós, ervas e madeiras ali disponíveis. Era também um movimento heurístico de adequação a um território (Minas) ainda bastante desconhecido pela coroa. Nas “Notícias das taquaras e cipós”, no subtítulo “notícia dos cipós”, abordando uma diversidade deles, o autor anônimo nos fornece apenas a utilidade dos insumos:

Há o cipó chamado butua, que só a raiz tem singulares préstimos bem sabidos na medicina.

Há o cipó chamado rapacari; serve a sua raiz de sabão para lavar o corpo e toda a qualidade de roupas, e de si lança muitas escumas; admirável para almorreimas em ajudas.

Há o cipó chamado ímbé e, outros, prego das Minas, por ter a serventia para amarrar; e da sua casca exterior se fazem as amarras para âncoras e fateixas das embarcações e cordoarias para os velames,

suprindo a falta das de linhos.93

E assim segue a lista. É interessante que o autor tenha utilizado os nomes indígenas e populares das plantas, ainda pouco conhecidas em Portugal, mas já utilizados em Minas. Nesse catálogo, os insumos nativos adquirem sentido à medida que são trazidos para dentro de um espaço de representação, sendo obrigados a ocuparem lugares predeterminados, em substituição aos insumos já conhecidos. Uma representação bem utilitária e providencialista da natureza. As espécies, por ainda não