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Literatura de viagem e História Natural: o viajante, a observação e a descrição

1. Capítulo I – Os saberes da História Natural: descrevendo formações anteriores

1.2. Literatura de viagem e História Natural: o viajante, a observação e a descrição

Tucídides, considerado um dos primeiros historiadores do ocidente, escreveu sobre a Guerra do Poloponeso, a qual vivenciou. Seu relato, dentre muitos outros que se seguiram, tornou-se, na história do ocidente, um dos arquétipos do mecanismo de transmissão de conhecimento através de viagens. Ele narrou tal acontecimento para transmitir a experiência à sua cultura. Assim foi que, durante a Idade Média, cavaleiros e eclesiásticos peregrinavam por dentro da Europa ou para fora do continente (Jerusalém), e muitas vezes retornavam com informações inéditas sobre a natureza e os habitantes desses lugares, contribuindo para a ampliação de seu conhecimento geral. Assim também, desde as primeiras viagens europeias pelo Atlântico e Índico no início do século XV, passando pela exploração dos mares e ilhas do Pacífico na segunda metade do XVIII, até a conquista da Antártida em meados do XIX, o conhecimento sobre o mundo em seu aspecto natural e humano foi largamente ampliado. Ao longo dos séculos XX e XXI, exploradores conseguiram atingir o Polo Sul e a Lua, e até hoje continua-se a produzir conhecimentos sobre a natureza e o Universo (inclusive já está em discussão a colonização de Marte).

As viagens remontam a um dos principais fundamentos do conhecimento: observar para conhecer, pois observar – ou viver uma experiência – também significa conhecer. O método de legitimação desse princípio de conhecimento baseia-se no “vi

com meus próprios olhos”, conforme tanto Tucídides quanto Pero Vaz de Caminha

elucidam em meio à argumentação de suas narrativas. No início de sua História da

Guerra do Poloponeso, o historiador ateniense critica os relatos de segunda mão sobre a

guerra e valoriza o testemunho dos acontecimentos com os próprios olhos56. Essa crítica vem do fato de que os poetas e os logógrafos não eram fundamentalmente narradores- viajantes, pois, para ele, a descrição mais fiel à realidade é aquela que emerge da própria experiência, da participação do momento histórico que se narra. Os olhos possuíam

56 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Prefácio de Helio Jaguaribe; Trad. do grego de Mário

da Gama Kury – 4ª ed. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 13 e 173.

proeminência em relação à boca, pois a visão não deixava mentir o que se via; já o logos poderia ser articulado retoricamente como estratégia de convencimento. Por isso, relatos nos quais o narrador tivesse participado ou vivenciado a experiência seriam mais verdadeiros do que aqueles que são retransmitidos por narradores compiladores e articuladores da retórica.

Da mesma forma, Pero Vaz de Caminha mostra-se portador da convicção depositada sobre o olhar: “não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu”57. Ao mesmo tempo evoca a sua retórica da experiência (baseada na vivência da experiência) e a atribuição de confiança à visão. O que a visão capta é capaz de promover ressalvas no discurso de Caminha:

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nessa terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez.58

A visão do viajante traz consigo o instigante imaginário maravilhoso/infernal, com suposições construídas e desfeitas a todo momento; afinal, o misterioso/maravilhoso é móvel, inconsistente e inalcançável. E a conquista da América consistia em uma longa, aventurosa e perigosa viagem. Além de viajar para lugares longínquos e totalmente desconhecidos, como a América no século XVI, também havia o costume de viajar pelo interior da Europa. O hábito de viajar em busca de cultura e conhecimento já permeava os membros da pequena aristocracia e até os filhos de alguns comerciantes abastados. A viagem refletia o espírito de curiosidade investigativa do sujeito que observa e aprende com o mundo. Essa pedagogia do olhar foi a condição de possibilidade para se apreender o mundo através da visão e da experiência59. Toda essa mecânica de observação – que mais tarde foi elaborada metafisicamente por Descartes – acabou produzindo um gênero de escrita que tinha seus próprios postulados de verdade, por se tratar de um testemunho de experiências limites, na fronteira da descoberta com o novo: a literatura de viagem. Esse gênero era representado por crônicas, diários, cartas, itinerários e até livros com ilustrações. Todos eram baseados nas vivências passadas

57 CAMINHA, Op. cit, p. 8. 58 Ibidem, p. 39 (grifos meus).

59 ABDALLA, Frederico Tavares de Mello. O peregrino instruído: um estudo sobre o viajar e o viajante

pelos viajantes na América, e por isso possuíam uma “retórica da experiência”60 inata; uma estratégia discursiva que comprovava e validava apenas o enunciado de um viajante. Só a possui quem esteve in locus observando o desconhecido. É uma retórica que toma para si como axioma a materialidade de uma experiência inédita, que se deu pela observação. É tomando essa determinada posição social de viajante/explorador/aventureiro que quem observa é capaz de enunciar um discurso que é aceito por sua cultura dentro de termos de verdade. É uma questão de confiança estabelecida entre duas ou mais consciências que compartilham da mesma estrutura de interpretação e representação do mundo. É nesse sentido que podemos entender o motivo pelo qual as distorções de realidades maravilhosas ou monstruosas eram aceitas na Europa naquela época. A imaginação a respeito do desconhecido chegava a ser – entre a maravilha e o monstro – mágica, mas ainda assim possível. A experiência da conquista passou a confrontar muitos saberes predefinidos e sedimentados, como, por exemplo, toda a cartografia desenvolvida pela cultura ocidental até o século XV61, e isso possibilitou o surgimento e manuseio de uma retórica, ocasionando, como já apontamos, o triunfo da experiência sobre a autoria.62

Se Caminha e Colombo dão vida a uma tradição ocidental de viagem e observação, a partir de Descartes e sua leitura matemática da realidade, essa tradição começará a se intensificar. Mais tarde, os estudos de Newton também dotarão a observação e a viagem de outros princípios matemáticos, que cada vez mais serão ligados à legitimidade para se desencantar a natureza. Em meados do século XVIII, a História Natural se beneficiará dos estudos de Descartes e de Newton e empregará a viagem como um procedimento científico.

René Descartes (1596-1650) elaborou uma vinculação objetiva entre o sujeito (viajante) e o objeto (natureza), através da observação e da matematização. Assim, tornou-se possível esquadrinhar o universo, o que ofereceu subsídios para a cartografia, para os viajantes, para militares e para a História Natural. Descartes uniu a matematização do mundo à observação, ideal que foi largamente aproveitado na

60 SEED, Patricia. “Modern”. In.: Renaissance Keywords. New York: Modern Humanities Research

Association and Taylor & Francis, 2013, p. 119-137

61 Ibidem, p. 120.

62 Em outras palavras, o que os colonizadores estavam vivendo, se orientando com a experiência, era uma

crise de representação, de conceituação; uma aceleração da transformação dos conhecimentos. O Humanismo e o Renascentismo são expoentes deste pensamento em movimento. Cf. CAÑIZARES- ESGUERRA; FERNANDES; MARTINS, Op. cit., 2017.

observação dos corpos naturais, suas formas e extensões. Newton, através de seus estudos de movimento, densidade, gravidade, ofereceu subsídios para o materialismo, para os herbários, seus coletores de amostras e para os estudos de anatomia. Com Lineu, a prática de viagem, coleta de amostras e classificação começa a ser sistematizada e vai se distinguindo de práticas leigas de viagens de curiosidade. Os estudos de Descartes, Newton e Lineu, realizados entre os séculos XVII e XVIII, foram responsáveis por introduzir práticas e discursos que acabaram distinguindo os viajantes filosóficos (História Natural – ciência) dos viajantes leigos do século XVI (literatura de viagem – retórica da experiência).

A História Natural, pelo fato buscar a descrição de espécies desconhecidas, fez com que houvesse a necessidade de o naturalista ir até os lugares desconhecidos. Por isso, o naturalista, ou viajante filosófico, como era chamado em Portugal, muitas vezes fará um papel análogo ao do viajante leigo, ou apenas viajante. Sendo assim, ambos terão algumas semelhanças, como a escrita em diários, com a organização do texto pelo itinerário da viagem. Porém, mesmo com essa semelhança, a observação empírica do viajante naturalista já era dotada de métodos sistemáticos, com procedimentos indutivos que acabavam produzindo linguagens totalmente distintas.

O método utilizado pelo naturalista do século XVIII para sistematizar sua visão é bastante distinto dos critérios do viajante. Apesar disso, podemos ver traços de continuidade entre uma retórica da experiência e uma ciência empírica ou indutiva. A materialização da coleta do viajante leigo era o gabinete de curiosidades, enquanto o método de coleta do naturalista era refletido principalmente pelo museu de História Natural, mas também pelo herbário, laboratório e jardim botânico. O objetivo do naturalista era o de narrar o desconhecido, porém, tinha um método, conceitos e objetos específicos que representavam paradigmas singulares; o objetivo do viajante era o de narrar o desconhecido também, porém, sua organização, sua predileção e prioridades no relato sobre os ambientes novos eram de outra natureza, pois agregavam aspectos mais gerais da paisagem, com outro sistema de classificação, comparação e analogia entre os seres vivos ou não-vivos. Em suma, do Humanismo ao Iluminismo, começam a surgir algumas exigências epistemológicas na formulação científica da viagem.

Sobretudo, a América se transformou muito do século XVI ao XVIII. Os viajantes filosóficos conheciam sociedades, instituições, economias e enraizamentos que surgiram na América, algo que os primeiros viajantes não viram. Inclusive, outra

diferença substancial entre ambos é que os filosóficos que analisamos aqui são nascidos na América, enquanto os viajantes eram europeus. A esta altura, já havia algum acúmulo de conhecimento, pelo menos cartográfico, mas também nativo, sobre as terras que eram totalmente desconhecidas no século XVI. Aliadas a isso, as novas concepções da observação cartesiana, da Física matemática e da História Natural passaram, cada qual em seu devido momento, a criar outras representações (científicas) para a América. Enquanto o naturalista já partia de uma realidade de colonização assentada na América e precisava, no mínimo, – mesmo no século XVIII, quando a ciência ainda não se institucionalizara, não erguera seu edifício epistemológico e não se tornara as lentes da verdade de quem observa o mundo – remeter a uma bibliografia internacional (científica/ocidental), na qual se indicavam métodos avaliados e reavaliados por pares da mesma área; ao viajante bastava apenas que compartilhassem certos aspectos culturais (língua, religião e costumes) para que seu relato “etnográfico” dos povos e paisagístico/simbólico da natureza valesse como um tipo de conhecimento.

A passagem do viajante leigo para o naturalista se deu a partir do avanço (principalmente a partir do século XVIII) de muitos saberes que se uniam para criar mecanismos de validação e produção de verdade. Há de se lembrar que os naturalistas luso-brasileiros se formaram e atuaram durante o período de aceleração (Sattelzeit) que é a própria condição de possibilidades da Modernidade, isto é, da construção epistemológica da ciência. A reconquista da colonização ofereceu à História Natural europeia daquele momento uma empiria única, uma natureza desconhecida e uma base de aprendizado que foi decisiva para a transformação das ciências biológicas e econômicas.

Neste processo, alguns acontecimentos discursivos vinham provocando alterações empíricas e indutivas, produzindo resultados e propagando métodos. Quais foram então, os acontecimentos discursivos que possibilitaram algum tipo de distanciamento entre o viajante e o viajante filosófico? Em outras palavras, em que consistiu a aceleração desses novos saberes da História Natural? Os primeiros viajantes escreviam por meio de cartas, crônicas e diários. Os três gêneros seguiram rumos distintos: as cartas, além de serem uma forma básica de comunicação, tornaram-se um mecanismo fundamental da gerência da administração colonial e da instituição do poder do rei nas colônias; as crônicas acabaram não sendo do domínio exclusivo dos viajantes e perseguiram por si mesmas um percurso na história da literatura; aos diários restou a

tarefa de reconhecimento dos territórios da conquista. Os diários representam o gênero mais interessante para o estudo desse distanciamento, já que o naturalista também escreveu através de diários, e não por crônicas (embora às vezes por cartas). Interessante para a descrição dessa metamorfose epistemológica são os manuais ou instruções de viagem que começaram a surgir no século XVIII não só em Portugal, mas em diversas nações europeias, com o objetivo de ditar normas para a confecção dos diários.

O surgimento desse meta-gênero (um gênero que reflete sobre o fazer de um gênero) se deve a uma crescente necessidade de se separar os viajantes leigos dos

instruídos. Muitos relatos se mostravam inconsistentes ou malfeitos para uma

administração colonial que necessitava de uma transmissão mais precisa das experiências ultramarinas para governar de longe. A mágica do imaginário do maravilhoso foi sendo tolhida como lógica de interpretação da natureza, ainda que subsistisse entre os naturalistas luso-brasileiros, como veremos. Essas instruções buscavam esclarecer o que (objetos) se deveria observar e como (método) se deveria observar o desconhecido, e assim forneciam regras para se escrever os diários e itinerários – tudo deveria ser anotado in loco, sob a afetação da experiência, de modo que nada ficasse esquecido. Era preciso criar um compasso comum entre universos tão distantes para que o Novo Mundo se tornasse apreensível e governável pelo Velho; era preciso concretude, objetividade, verossimilhança e, sobretudo, legitimidade. A legitimidade se relacionava cada vez mais a um campo de saber verificado e metódico que definia o que e como se observava (História Natural).

D. João V queria fazer uma Grad-Tour pela Europa no primeiro quartel do século XVIII e, para isso, o clérigo regular teatino D. Manuel Caetano de Souza, ligado à Academia Real de História Portuguesa, elaborou um manuscrito intitulado O

peregrino instruído63, no qual apresentava mais de duzentas questões acerca daquilo

que deveria ser observado nas longas viagens ao exterior. Esse manual não é o primeiro do gênero a ser produzido na Europa, onde textos como este já estavam àquela altura difundidos por todas as nações. O interesse da viagem de D. João mostra que neste período Portugal já estava alinhado com esse tipo de gênero e que já buscava meios mais precisos de transmissão de informações para a gestão administrativa da colônia através da instrução de viagem. A viagem do monarca não aconteceu, porém, outros

manuais portugueses foram publicados após O peregrino instruído, pois o interesse em se preparar adequadamente os viajantes não cessou. Vale mencionar desde já que as instruções cientificas de viagem não eram dirigidas apenas aos naturalistas, mas também a outros viajantes, uma categoria ampla composta de administradores coloniais, juízes, militares, corógrafos, cartógrafos, além dos viajantes leigos – aventureiros sem nenhum tipo de formação acadêmica, que viviam experiências no desconhecido e também produziam literatura de viagem, mas não de forma rebuscada, como era esperado pela administração ultramarina64.

O historiador Frederico T. de Mello Abdalla nos apresenta O peregrino instruído em sua dissertação. Os viajantes deveriam conhecer

o estado natural tomando notícia da qualidade do clima, do terreno, dos campos, dos montes, dos rios, das fontes, dos frutos, dos gados, dos minerais, das aves e dos peixes (...) o estado moral de cada lugar tomando notícia do número de fogos, dos habitadores dos edifícios públicos, e particulares, do estado eclesiástico, político, militar e econômico65

A busca pelos estados morais e naturais refletem uma antiga separação feita por Aristóteles entre homem e natureza. Os próprios viajantes do século XVI também categorizavam os objetos de suas narrativas em terra e povo66. Porém, por morais, se entende um sentido mais amplo de aspectos sociais, políticos e administrativos, o que remetia, no século XVIII, à ideia de costumes. Esse é um contraponto (natureza e costumes) que mais tarde se tornará o contraponto entre cultura e natureza.Essas duas categorias, que estiveram em transformação desde a Antiguidade, possibilitavam, de fato, conhecer algo. Os estados natural e moral são fundamentos de observação que, de modo geral, perpassam todos os diários e instruções que circularam. O viajante sempre deveria observar ambas as características nos lugares, mas, no que dizia respeito aos aspectos naturais, o naturalista era o tipo de viajante mais adequado – há instruções que remeteram apenas aos aspectos naturais e foram mais direcionadas a viajantes filosóficos. No que se refere aos aspectos sociais, morais, políticos, administrativos e religiosos, outros tipos de viajantes poderiam ter mais competência, tais como eclesiásticos, burocratas, juízes, ouvidores, intendentes, corógrafos, militares, entre

64 Ibidem, p. 36.

65 SOUZA, M. C. O peregrino instruído [1720], Apud. ABDALLA, Op. cit., 2012, p. 9 (grifos meus). 66 ABDALLA, Op. cit., 2012, p. 28-30.

outros. Apesar disso, os naturalistas luso-brasileiros não deixaram de descrever as sociedades pelas quais passaram. A presença da descrição dos aspectos morais demonstra a amplitude dos domínios que vieram a formar a História Natural. Diversos saberes adentraram sua positividade, sendo uma formação discursiva bastante heterogênea.

Conforme elucida Abdalla, tratava-se da “representação de um sistema exaustivo de observações do mundo natural e humano que parece ambicionar, sobretudo, atingir uma percepção global sobre o lugar visitado, a fim de conhecê-lo na sua totalidade e de maneira clara e objetiva”67. O olhar de um viajante instruído permitia um aprendizado maior sobre os territórios, de modo que se tornasse evidente quais melhorias utilitárias se poderiam implementar nas regiões.68 Esse olhar treinado pelos manuais teria melhores condições para representar as sociedades distantes segundo formas convencionais de uma cultura dominante (da metrópole), assim inscrevendo tais realidades em códigos culturais (r)estritos.

Desde a metade do século XVIII já existem instruções específicas para o campo da História Natural, contudo, há maior densidade desse tipo de publicação em Portugal a partir da década de 1780. A partir daí, e durante o século XIX, cientistas cada vez mais especializados em ramos próprios da História Natural passaram a escrever instruções de viagem cada vez mais detalhadas e específicas em suas matérias. “Os problemas teóricos e técnicos de cada uma dessas disciplinas apresentavam cada vez mais suas urgências particulares e acabavam por exigir um preparo técnico e intelectual cada vez mais específico.”69 A especialização crescente dos ramos da Zoologia, Botânica, Mineralogia, Geologia, Química, Física – e mais tarde, no século XIX a Antropologia, a História, a Geografia e a Biologia – introduziram novas perguntas a essas instruções, e foram exigindo adequações nas descrições das viagens a fim de produzir não apenas um relato, mas um conhecimento verificado, compatível com diversas enunciações pertencentes a um campo de saber que se pretendia universal. Podemos ver, nesse processo, a construção de um edifício epistemológico das ciências.

Vejamos, a partir de agora, algumas instruções de viagem que tiveram destaque entre os portugueses do século XVIII. As “instructio peregrinatoris” de Eric Anders

67 Ibidem, p. 10.

68 Abdalla menciona a tríade iluminista viagem, ciência e utilidade. Ibidem, p. 35. 69 Ibidem, p. 38

Nordblad, aprovada e publicada em 1759 pela Universidade de Upsala, sob a orientação do naturalista sueco Lineu, se tornou canônica no ramo das instruções de viagem voltadas para a História Natural.70 Segundo Abdalla,

As Instrucio formam um texto paradigmático para o olhar sistemático sobre a natureza, disciplinando-o e objetivando-o rigorosamente por entre compartimentos e subcompartimentos: estabelece categorias, delimita o campo de observação, nomeia os objetos, abstrai a miscelânea e impõe os limites no quais as regras da experiência e da linguagem irão se dar.71

Essa obra representou a emergência epistemológica da figura do viajante naturalista, pois fundamentou a sua observação, distinguindo-o do viajante leigo, que em tese observaria sem método. Teve profunda aceitação em Portugal, já que Vandelli, professor do curso de Filosofia Natural da Universidade de Coimbra, era correspondente de Lineu e consentia com os estudos do naturalista sueco. Assim, em Portugal a primeira obra desse mesmo gênero é do próprio Vandelli: Viagens Filosóficas, ou

Dissertação sobre as importantes regras que o Filosofo Naturalista deve nas peregrinações observar, de 1779. Assim como a Instrucio, a memória de Vandelli só se

dirige ao campo da História Natural, deixando a questão dos elementos sociais ou morais sem tratamento extenso. Nela o paduano tinha o objetivo de “criar direções sistemáticas para o diagnóstico de gêneros exploráveis nas colônias ultramarinas, principalmente o Brasil, tendo em vista o seu potencial econômico”. Para tal, o Manual