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Instituições religiosas e educativas

A sinagoga

A sinagoga (ou esnoga) era a mais importante instituição da comunidade. A mesma servia não somente como centro da vida religiosa, onde tinham lugar os principais ritos e cerimónias públicas, mas igualmente como centro da actividade política, social e cultural da comunidade. Era dentro da sinagoga que os portugueses prestavam culto, meldavam, conduziam e seguiam o serviço religioso e ouviam os sermões semanais proferidos pelos rabinos.

A dimensão política da sinagoga prende-se essencialmente com o facto de a mesma servir, por um lado, como local de congregação da junta - a liderança secular da comunidade – e por outro, como lugar onde decorriam a maior parte dos processos judiciais. Na sua grande maioria, os registos congregacionais da comunidade, entre os quais, livros protocolares, registos financeiros, livro dos escamot, contratos e privilégios da nação, eram cuidadosamente guardados no seu interior, em alas específicas do complexo sinagogal. Os juízes ou “homens honrados” conduziam dentro da sinagoga as diligências relativas aos casos judiciais,

consultando para tal o Bet Din ou os hachamim, sempre que surgissem dúvidas quanto à interpretação da lei ou perante a necessidade de efectuar juramentos611.

Como local congregacional por excelência, a sinagoga servia como palco para a proclamação de todo o tipo de comunicados públicos. A publicação de novas escamot, ou a sua renovação tinha lugar na porta exterior da sinagoga, de forma a que todos estivessem devidamente informados das alterações efectuadas, assim como das obrigações de cada jachid perante o regime estatutário vigente. Igualmente na porta de acesso eram afixadas as listas de

609 Ibidem, tomo I, p. 65. 610

Ibidem, tomo I, p. 10.

611 Certas cerimónias religiosas como divórcio, o casamento levirato ou o arrependimento público eram

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devedores da sedaca, do direito da nação e de outros impostos em falta612. Todos os anos em Shabat nachamu (o Shabat subsequente ao feriado Tishá BeAv), os estatutos comunitários eram lidos na sua íntegra a partir da teba, o palco situado a um dos extremos da sinagoga613. Igualmente da teba eram proclamados os perdões públicos de membros “remonstrantes” da comunidade, uma cerimónia carregada de simbolismo que marcava a retractação pública de um membro recalcitrante e a sua consequente reentrada no seio da comunidade614.

Mais do que em qualquer outro lugar, a sinagoga reflectia de forma particularmente explícita a estratificação social da comunidade. Os assentos eram atribuídos em função do estatuto socioeconómico dos congregantes e quanto maior a proximidade ao hekhal - o armário onde se situava o sefer torah - maior o prestígio do jachid. O Mahamad e os hachamim ocupavam os lugares mais prestigiados da sinagoga, os quais se situavam perto da arca sagrada, a um dos extremos do edifício. De seguida vinham os hazanim e os seus assistentes, os quais, em razão de conduzirem o serviço religioso, situavam-se no palco da teba. Seguiam-se então - por decrescente de importância e, correspondentemente, de distância ao hekhal - a elite socio- financeira da comunidade, os funcionários religiosos, a classe média de profissionais liberais, mercadores, corretores, pequenos comerciantes, e por fim, a indiscriminada massa de destituídos e pobres da nação, entre os quais se encontravam os tudescos, os mulatos e os negros da nação615. Uma vez que a competição pelos melhores lugares constituía uma

permanente fonte de conflito, o Mahamad tinha particular atenção em preservar a ordem pré- estabelecida dos assentos, e proceder a alterações sempre que necessário616. Viagens

temporárias e saídas de membros para outras congregações constituíam oportunidades únicas para alcançar um lugar vacante e cobiçado, facto que motivava frequentes arranjos e ajustes pelo Mahamad de forma a evitar “moléstias” durante o serviço religioso617.

A assiduidade durante o serviço religioso atingia o seu ponto máximo especialmente durante os Shabatot, os feriados e as épocas festivas. Embora sejam parcos os dados relativos à observância religiosa dos portugueses, é possível prever com algum grau de probabilidade,

612 Rol dos incumpridores da sedaca e do direito da nação afixado na porta da singagoga: “havendo-se

deferentes vezes pregoado neste Kahal kadosh que os que devessem a sedaca e direito da nação do anno passado fossem servidos (…) e visto não aver bastado tantas advertencias ordenarão os senhores do mahamad que (…) se deem ainda 15 dias de termo e quem ate então não o tiver feito se porão seos nomes em hum roll na porta da esnoga e a estes senhores lhe dao tempo mais 8 dias e não pagando ficarão encorrendo em pena de beracha (…).” Ibidem, tomo II, p. 188.

613

“(…) em 17 de tamus se juntou o mahamad e revendo as escamot se puserão em ordem para que Sabat Nachamu se lea todas as que se devem observar na teba (…)”. Ibidem, tomo I, p. 38.

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David de Cáceres é obrigado a pagar 10 reichtalers e a ler um perdão público na teba, perante toda a congregação: “avendo-me nesta santta caza alterado com pouco respeito della dando escandalo grande e toda a congregação de que estou muy arrependido prometendo ao diantte enmenda pesso perdão humildemente a el Dio benditto e sua santta ley, e a todo estte Kahal Kadosh e me sujeito as mais penas que os senhores do maamad me quizerem impor”. Ibidem, tomo I, p. 204.

615 Embora não tenham chegado até nós os registos dos assentos na sinagoga de Hamburgo, é de crer

que estes se baseassem sensivelmente nos mesmos princípios que regulavam a disposição dos assentos na congregação Talmud Torah de Amesterdão.

616 Termo sobre a proibição de mudar de lugar, o qual se leu em teba perante toda a congregação.

Ibidem, tomo I, p. 296.

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Um exemplo de uma contenda sobre os assentos na sinagoga é a que tem lugar, por exemplo, em noite de Tishá BeAv entre David Bravo e Jacob de Simão Machorro, com empurrões e “roins palavras” de ambas as partes. Ibidem, tomo I, p. 324.

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uma diminuição da assiduidade durante os dias de semana assim como durante as rezas da tarde, por altura da Mincha618. Fosse por motivos profissionais, descuido pessoal, ou por outras razões de força maior, a fraca assiduidade registada durante o serviço da tarde teria levado os líderes portugueses a adaptar o programa diário das rezas em função das

disponibilidades e dos costumes de observância da maioria dos congregantes. Assim, de acordo com uma nova escama passada a 24 de Novembro de 1678, resolvia-se, por unanimidade de votos, que a “mincha [reza da tarde] ficasse has duas oras como se

costumava” e que “mea ora antes de Arbit619 [reza da noite] se diga outra minha para que a possao dizer com kahal os que não vierao a tempo”620. Adicionalmente, concluía o novo decreto que “entre ditta minha e arbitt se dirao salmos ate que dê a ora asinalada para dizer arbit”621. Sem dúvida, esta invulgar reforma do sistema da rezas demonstrava, acima de tudo, o alto grau de flexibilidade das instituições comunitárias, normas e tradições religiosas quando confrontadas com adversidades de ordem pragmática. Ao invés de serem os congregantes a modificarem os seus costumes, foram, no presente caso, as instituições que se adaptaram às necessidades e tendências dos últimos.

Num mundo maioritariamente controlado por homens, o papel relegado às mulheres dentro do espaço sinagogal era consideravelmente reduzido, especialmente no que tocava à

observância religiosa. Contrariamente aos homens, os assentos femininos não eram atribuídos nem seguiam nenhuma ordem previamente determinada; as mulheres teriam que se

contentar com os poucos lugares disponíveis à retaguarda do complexo sinagogal, numa galeria especificamente reservada. Em Hamburgo, esta galeria encontrava-se demarcada da área masculina por um gradeamento, o qual teria sido construído após alegações de

devassidão e de falta de pudor demonstrado por algumas mulheres da nação622. Neste aspecto, o Mahamad de Hamburgo seguia a prática fortemente segregacionista em vigor na comunidade irmã de Amesterdão, assim como de forma mais geral no conjunto do mundo judaico623. As horas de entrada e saída eram escrupulosamente observadas. As restrições neste aspecto eram bastante claras: nenhuma mulher podia permanecer na sinagoga após o

crepúsculo ou depois da última reza do dia. A contravenção deste estatuto resultava numa multa pesada não somente para a mulher envolvida mas também para o funcionário incumbido de vigiar a sinagoga624.

Administração dos assuntos sinagogais

Em grande medida, a administração dos assuntos sinagogais ficava a cargo da liderança comunitária. Era o Mahamad que decidia sobre questões fundamentais tais como: a) a atribuição de assentos e a distribuição de funções honoríficas; b) contratação de funcionários

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A Mincha é a oração da tarde no judaísmo, situando-se entre as duas outras rezas diárias, a shacharit, recitada ao acordar, e a arbit, após o anoitecer.

619 Arbit (hebraico: arvit) diz respeito à última reza do dia, a qual é recitada após o anoitecer. 620

Ibidem, tomo II, p. 212.

621 Ibidem, tomo II, p. 212. 622 Ibidem, tomo I, p. 91. 623

“Femmes”, Dictionnaire Encyclopedique du Judaïsme, WIGODER, Geoffrey (Dir.), Cerf Robert Laffont, Paris, 1996, pp. 363-65.

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religiosos e o supervisionamento do seu trabalho; e c) administração dos assuntos financeiros, dos objectos rituais e dos aspectos relativos à manutenção do edifício.

A divisão do trabalho dentro da sinagoga seguia o modelo tradicional praticado

universalmente nas comunidades judaicas contemporâneas. Os hachamim tinham a seu cargo a importante tarefa de preparar e realizar as darsas semanais (sermões), as quais incidiam normalmente sobre os assuntos do dia: violação de importantes escamot625, lições morais e éticas, questões sobre a lei, ou admoestações práticas sobre a importância da caridade e do acto filantrópico626. A periodicidade dos sermões seguia em grande medida o método

praticado em Amesterdão (“o estillo de Amstradama”), a par de algumas mudanças menores: os dois hachamim em funções repartiam entre si os dois Shabatot do mês, darsando a cada 15 dias de forma alternada627. Nos dias maiores de primavera e verão (desde Pessach até Succot) os sermões eram feitos pela manhã, durante a reza de mincha, ao passo que durante os restantes 6 meses do ano os mesmos tinham lugar à tarde, “por ser assim mais comodo”628. Desta forma pretendia o Mahamad evitar o incómodo causado por fazerem-se “os darazes (…) pella manha nestes dias curtos de inverno”629. Em ocaziões especiais como nas cerimónias de shurot, o baal berit (pai do menino recém-nascido) teria a possibilidade de chamar a darsar quem pretendesse, posto que notificasse com antecedência o Mahamad630.

Outros principais deveres do hacham consistiam em “dar os dinim na teba”, principalmente “em dias de ley”, presidir às lições da yeshivah principal da congregação, a qual tinha lugar dentro da sinagoga, numa câmara localizada debaixo do rés-de-chão631. Adicionalmente eram encarregados de assistir às cerimónias de casamentos, aos divórcios, assim como a quaisquer ocorrências públicas que requeressem a sua consulta em matérias de lei judaica (tribunal religioso, escamot, kashrut, matérias de juramentos, etc.)632. Para além dos hazanim, que conduziam o serviço religioso, o Mahamad contratava os serviços de um bedel – o samash – o

625 Sermão do hacham geral David Coen de Lara sobre a recém publicada escama relativa ao pecado de

malsinaria: “o qual ajuntando toda a nassão de 13 annos para sima no Kahal kadosh de bet Ysrael em Roschodes nissan se publicou e leu na teba a que seguio hum daras sobre o mesmo sugeito que fes o senhor H. David Cohen (…)”. Ibidem, tomo I, pp. 54-55.

626 Solicitação ao hacham para comover a congregação a alargar-se nas suas contribuições: “(…) pedia se

advirtise ao senhor Hacham que quando darsase admoestase ao povo que se alargassem nas caixinhas [que] andão por as portas e que se nomease dia no anno para se faserem nedava para dita misva por ser couza de tanta importancia e (…) se nomeou o dia de sebuot para a nedava que se lhe consedeo no qual dia ou sabat antes de novo fara o senhor Hacham daras para este particular para comover ao povo (…)”. Ibidem, tomo II, p. 258.

627 Resolve-se seguir o estilo de Amesterdão no que respeita aos sermões: o incómodo causado pelo

“fazereim-se os darazes (…) pella manha nestes dias curtos de inverno” leva o Mahamad a seguir o estilo de Amesterdão, “che a saber que se haja de Darsar de pascoa de pesach ate sucot na congregação geral ao sabat pella manha e os outros seis meses de inverno seja a tarde por ser assim mais comodo”. Ibidem, tomo I, p. 83. 628 Ibidem, tomo I, p. 83. 629 Ibidem, tomo I, p. 83. 630 Ibidem, tomo I, p. 25. 631 Ibidem, tomo I, p. 282.

632 Os juramentos eram feitos e levantados unicamente pelos hachamim assalariados da nação. Todos

os outros eram considerados inválidos, tal como demonstra a escama em questão: “que ninguem se intermeta em alevantar nenhu juramento salvo os senhores dois hahamim assalariados pela nação e todo o alevantar feito por outra qualquer pessoa dão por vão e invalido ficando o juramento em seu vigor, e cada um tera bom cuidado nisto para não incorrer em pecado”. Ibidem, tomo I, p. 143.

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qual era responsável por assistir os congregantes dentro do espaço sinagogal, levar a cabo tarefas de limpeza e manutenção do edifício, assim como zelar pela inviolabilidade do espaço sagrado e de todos objectos guardados no seu interior633. De forma mais geral, o samash era responsável por executar um largo conjunto de tarefas delegadas tanto pela liderança secular, como pelos funcionários religiosos, servindo como principal ponto de contacto entre os congregantes e os diversos orgãos administrativos e religiosos do kahal.

As despesas operacionais da sinagoga eram cobertas, maioritariamente, pelos rendimentos auferidos durante o serviço litúrgico, nomeadamente através das promessas e ofertas, assim como de doações voluntárias feitas por privados. A honra de recitar segmentos específicos da Torá, realizada principalmente às segundas-feiras, quintas-feiras e aos Shabatot, era

geralmente acompanhada por várias contribuições realizadas pelos congregantes, muitas das quais motivadas por competição interna em torno de prestígio e de tratamento preferencial. As doações de artigos religiosos e artefactos sagrados seguia o mesmo impulso auto-

promocional. Objectos tais como os sifrei torah, os rimonim, os parochet, as lâmpadas e os castiçais, assim como muitos outros artefactos considerados kodesh (sagrados), eram não somente usados para o serviço ritual, mas serviam efectivamente como propriedade a ser utilizada pela nação para o rendimento da bolsa geral634. Tais rendimentos, sem dúvida, supriam parte das despesas regulares efectuadas dentro da sinagoga, as quais incluíam nomeadamente gastos de iluminação, tais como o óleo, a cera e o azeite, assim como outros associados ao uso ritual, como o vinho, os artigos das “quatro espécies” (arbahat haminim) durante o Succot, e muitas outras.

Legislação sobre a conduta e a ordem dentro da sinagoga

Tal como em Amesterdão, Livorno e outros centros da nação portuguesa, a sinagoga constituía um dos locais emocionalmente mais voláteis da congregação. A descarga frequente de tensões sociais, motivadas tanto pela competição ou pela rivalidade entre diferentes facções ou indivíduos, resultava não raramente em conflitos fisícos e verbais de considerável violência, muitos dos quais suscitando a intervenção das autoridades comunitárias. Ameaças, insultos, trocas de murros e pontapés, constituíam alguns dos mais rotineiros casos635. Mais episódicos mas não menos alarmantes, a utilização de armas brancas como punhais e espadas

evidenciavam a intensidade do fervor a que chegavam muitos dos conflitos e a natureza por vezes beligerante e impulsiva dos seus intervenientes636.

633 Tais tarefas e actividades foram já descritas em detalhe, no capítulo dedicado aos samashim. 634

Exemplo disso é por exemplo a já mencionada venda da prata kodesh:“ordenou que se tomasse nota de toda a prata codes que ay na esnoga central e medrasim e o pezo della para que vista nesta junta se possa calcular aquella que se podera escuzar para milhor governo e saber o que se pode vender”. Ibidem, tomo I, p. 154.

635 Altercação na sinagoga entre Joseph de David Oeb e Manoel de Jacob Valancos: tendo o primeiro

levantado a mão e “dado e bofetadas a manoel de Jacob Valamcos”. Ibidem, tomo II, p. 101.

636

Condenação a Jacob de Mercado por “aver sahido [em] dia de Sabat com hua espada contra Joseph Benveniste”. Ibidem, tomo II, p. 83. Caso entre Daniel Habilho e David Aboab na bolsa de valores da cidade envolvendo espadas, facas e pancadas e cauzando grande escândalo. Ibidem, tomo I, p. 206.

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Longe de representar o ideal da conduta desejada pela autoridade comunitária, o desrespeito evidenciado pelos congregantes dentro da sinagoga tomava igualmente outras formas menos explícitas. Entre algumas das quais destacam-se, nomeadamente, a condução de negócios dentro do espaço sinagogal, a movimentação de congregantes durante a liturgia, a deficiente ou apressada recitação das rezas, a utilização de indumentária imprópria para o espaço sagrado e, por fim, as perturbações causadas por gritos, conversas ou gargalhadas637. Este estado de coisas pouco propício à solenidade do local de culto levaria o Mahamad a

implementar, ao longos dos 30 anos considerados, uma longa lista de alterações estatutárias visando regular o comportamento, o vestuário, o serviço litúrgico, e outros aspectos essenciais da vida sinagogal. Estas propunham assim, precisamente, a reforçar a santidade do principal espaço sagrado da comunidade, um objectivo a que se comprometiam com afinco as principais autoridades religiosas e laicas comunitárias, tal como teremos oportunidade de analisar em maior detalhe ao longo das próximas linhas.

Uma das primeiras preocupações da liderança comunitárias deteve-se na necessidade de controlar os ânimos populares durante as celebrações religiosas. A atmosfera festiva que caracterizava muitas das cerimónias do calendário judaico constituíam momentos particularmente propícios para a manifestação de actos desordeiros dentro do espaço

sinagogal. Em noite de Simchat Torá, a 16 de Outubro de 1672, oito mancebos foram acusados de arremessar avelãs e outros frutos a algumas das mulheres presentes, revelando “pouco respeito e decoro do santo lugar”638. De forma a prevenir futuros desacatos que “todos os annos ay em noite de simcha thora”, o Mahamad ordenava assim que se fechasse a sinagoga imediatamente após arbit (a reza da noite), e que, recolhendo o parnas presidente a chave da porta, ficasse interdita a sua reabertura sem motivos de força maior639.

O festival de Rosh Hashanah, o ano novo judaico, era marcado quase invariavelmente por uma ou outra ocorrência tumultuosa, muitas das quais incitadas pelo clima de grande euforia e júbilo que caracterizavam o período. O escândalo em que incorrera David da Silva ao desrespeitar, “com palavras indecentes”, a “Santta Ley, os senhores do governo e toda a congregação” resultaria na sua retractação pública, dias depois, através da leitura de um comunicado perante toda a congregação640. Ao que parece, não obstante a gravidade do seu acto, o Mahamad teria usado “com elle de muitta mizericordia” em resultado de serem alegadamente “dias de contrição, e bespora de kipur”641. Para além da pesada multa de 10 reichtalers, David ficava impossibilitado de entrar na singagoga pelo período de pelo menos um ano. O conteúdo da carta de perdão lida por David da Silva a 12 de Setembro de 1660, perante a congregação, encontra-se registada numa das entradas do livro protocolar: “por quanto em primeiro dia de Roshana com demaziado atrevimento me alterey nesta

637 Uma nova escama, implementada a 28 de Abril de 1653, visava prevenir os excessos resultantes de

“gritos, escandalos e vozes” que se faziam dentro da sinagoga, definindo os valores mínimos das multas a serem pagas pelos transgressores. Tal como transparece do decreto em questão: “sendo tão

indecente a lugares sagrados (…) ordenão os senhores sette que qualquer pessoa que se desconpuzer com vozes ou gritos pagará por cada vez dous Risdaldes e sendo com mayor excesso os senhores sete os apenarao em pennas mayores”637. Ibidem, tomo I, p. 19.

638 Ibidem, tomo II, p. 3. 639

Ibidem, tomo II, p. 3

640Ibidem, tomo I, p. 197.

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congregaçao dizendo palavras escandaloas e descompostas contra o respeito divino e humano, porque merecia a mais rigorosa pena que por nossa religião se podia dar tendo os senhores do mahamad […] por cauza dos dias santos de contrição em que estamos me

ordenarão lesse este papel em que pesso humildemente perdão a el dio benditto aos senhores do governo e a toda esta congregação confessando muyto arrependimento de meu erro e dezacerto e obedecendo as mais penas que me tem ymposto”642.

No sentido de prevenir futuros escândalos ou tumultos, os dois rabinos da comunidade – Izaque Jessurun e Mose Israel – propunham ao Mahamad algumas sugestões a promover para a limpeza e solenidade nos dias santos. Assim, recomendavam que para a véspera de Yom Kipur, assim como em Rosh Hashanah e Pessach, somente “pessoas desentes a santidade” de

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