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Introdução

Os processos de litigação têm-se mantido ao longo dos anos como uma das fontes mais sub- exploradas da produção académica relacionada com a história sefardita744. Os seus longos e por vezes exaustivos registos colocam-se, por um lado, como verdadeiros obstáculos ao seu estudo e, por outro, a historiografia mais recente tem igualmente contribuído para o seu esquecimento enquanto importante fonte de investigação histórica. A relevância em estudar os pleitos surge assim como uma necessidade de indagar mais fundo sobre as dinâmicas institucionais e a forma como estas reflectiam a vida política, económica e social de uma dada comunidade, no presente caso, da comunidade portuguesa de Hamburgo. É, afinal de contas, através do sistema de pleitos e de forma mais geral, da justiça comunitária, que a comunidade definia em termos pragmáticos os seus ideais, normas e opiniões, moldando decisivamente o carácter da vida congregacional assim como, indubitavelmente, os padrões comportamentais dos seus membros.

É minha convicção que não somente importantes questões podem ser colocadas através do estudo dos pleitos como todo um novo conjunto de domínios históricos desbravados. Entre algumas destas questões destacam-se, nomeadamente, as seguintes: como viam os judeus portugueses os processos litigiosos? Que importância lhes atribuíam? De que forma os pleitos influenciavam os indivíduos e as famílias que neles participavam e talvez mais importante ainda, quais as indicações que os pleitos forneciam quanto ao estado das relações

interpessoais e a um nível mais profundo, quanto à coesão e solidariedade comunitária?

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Ibidem, tomo I, p. 25, 99, 215, 469; tomo II; p. 10, 257.

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Algumas das poucas tentativas, ainda que parcelares e assistemáticas, podem encontrar-se em SWETSCHINSKI, Daniel M., Reluctant Cosmopolitans…, 2000; TRIVELLATO, Francesca, “Sephardic Merchants Between State and Rabbinic Courts: Malfeasance, Property Rights and Religious Authority in the Eighteenth-Century Mediterranean”, From Florence to the Mediterranean and Beyond: Essays in Honour of Anthony Molho, CURTO, Diogo Ramada, DURSTELER, Eric R., KIRSCHNER, Julius, TRIVELLATO, Francesca (Eds.), Vol. II, Leo S. Olschki, Florence, 2009, pp. 625-648; OLIEL-GRAUSZ, Evelyne,

“Commercial Litigation and Transnational Circulation in the Early Eighteenth Century: The Pimenta- Nunes Pereira Affair", Archives Juives, 2014/2 (Vol. 47), 2014, pp. 77-90; ANTUNES, Cátia, ROITMAN, Jessica Vance, “A war of words: Sephardi merchants, (inter)national incidents, and litigation in the Dutch Republic, 1580–1640”, Jewish Culture and History, 16:1, 2015, pp. 24-44; e KERNER, Alex, “Arbitration and conflict resolution in the Spanish and Portuguese Jews’ Congregation in London in the eighteenth century”, Jewish Historical Studies, 49(1):6, 2017, pp. 72-105.

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A origem dos pleitos na tradição sefardita

A origem dos pleitos enquanto modelo de resolução de conflitos remonta, segundo Maria José Pimenta Ferro Tavares, ao período medieval na tradição judaica ibérica745. A possibilidade dos judeus portugueses terem mantido um conjunto significativo de prerrogativas jurídicas e legais enquanto membros de uma distinta identidade religiosa, possibilitou, ainda que na condição de súbditos do Rei, a liberdade de procurarem resolver os seus diferendos de acordo com as leis e os costumes consignados na sua própria tradição cultural. Os pleitos entre judeus eram assim, como muitos outros assuntos comunitários, resolvidos dentro de instituições judaicas e de acordo com a tradição religiosa judaica, tendo este grau de autonomia sido essencial na preservação e transmissão dos valores e da cultura judaica no seu todo ao longo de séculos. Embora o enquadramento jurídico e sociocultural que caracterizaria o estabelecimento português na cidade hanseática variasse grandemente da dos seus antepassados ibéricos - já para não mencionar as evidentes rupturas ocorridas durante a transição criptojudaica - a verdade é que a institucionalização do judaísmo normativo viria recuperar uma dimensão cultural própria da tradição definida e consolidada durante séculos nos territórios ibéricos. É assim possível falar em continuidades e reconfigurações em meio de rupturas drásticas e estruturais, tanto de mentalidades como de comportamentos e práticas da vida quotidiana. A forma como os pleitos, entre muitos outros aspectos da vida comunitária, vieram recuperar alguns desses vestígios e reconfigurá-los à medida das novas condicionantes e desafios do presente, traduz assim uma adaptação significativa em termos sociais, a qual, como teremos oportunidade de ver ao longo do presente capítulo, merece ser analisada em maior detalhe.

O Processo Litigioso

O enquadramento legal em torno dos pleitos e da actuação da justiça encontrava-se estipulado nos estatutos congregacionais, tendo todas as comunidades da «Nação

Portuguesa» passado disposições com o intuito de regulamentar as obrigações e os direitos de cada jachid, assim como o âmbito e extensão da jurisdição comunitária. Em Londres, por exemplo, qualquer jachid que tivesse dúvidas com o seu próximo devido a letras de câmbio, à detenção de mercadorias ou outra questão similar, deveria comunicar as suas pretensões ao Mahamad, o qual convocaria ambos os intervenientes à junta comunitária, instando-os a tomarem árbitros ou juízes louvados746. Estes, por seu lado, teriam a obrigação de fazer chegar as partes a acordo no prazo máximo de oito dias, findos os quais, ficariam livres para

procurarem a sua justiça por outros meios. Qualquer jachid que decidisse instaurar um processo legal sem seguir os trâmites acima descritos seria sujeito à sanção disciplinar; se porventura o caso envolvesse uma disputa entre dois corretores da nação, a justiça da terra estava-lhes, por norma, vedada, podendo somente recorrer à justiça comunitária, através do Mahamad. Similarmente, na comunidade portuguesa de Pisa, qualquer declaração, juramento

745 FERRO, Maria José Pimenta, Os judeus em Portugal no século XIV, Guimarães e Cª. Editores, 1979, pp.

28-30.

746 BARNETT, Lionel D., El Libro de los Acuerdos: being the Records and Accompts of the Spanish and

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ou testemunho que se pretendesse fazer na justiça da terra sobre um correligionário, teria de obter primeiro a aprovação do Mahamad.

Embora no caso de Hamburgo, parte dos estatutos congregacionais relativos aos pleitos não tenha sobrevivido, a descrição dos inúmeros processos contidos no livro protocolar permite deduzir um conjunto de parâmetros em tudo similares aos acima descritos. Por norma, a abertura de um processo litigioso era, em Hamburgo, um direito reservado a todos os jechidim da comunidade portuguesa, fossem estes de origem portuguesa ou estrangeira. A inexistência de quaisquer taxas ou impostos necessários para a abertura de um processo de pleito deixa adivinhar que estes estariam facilmente acessíveis a qualquer membro da nação,

independentemente do seu estatuto social ou capacidade financeira. Para mais, o acesso aos pleitos era facilitado através da possibilidade do queixoso apresentar-se de livre e espontânea vontade perante a junta da comunidade, sempre que tal pretendesse, manifestando perante o Mahamad a sua intenção litigiosa. A queixa era assim transmitida, oralmente na primeira pessoa, ou por via escrita através de um procurador, e assim que possível eram iniciadas as diligências pela entidade judicial competente – os árbitros, o Mahamad ou o Bet Din747. Perante a recusa da outra parte em tomar compromisso, os queixosos tinham a possibilidade, através de uma petição ao Mahamad, de solicitar a satisfação das suas intenções legais, pressionando o conselho máximo a agir na condição de entidade legal mediadora. No presente caso, a coacção do Mahamad sobre o réu podia tomar a forma de uma simples notificação ou intimação de comparência à junta e, numa segunda fase – em caso de recusa do arguido em tomar compromisso - numa penalização de carácter pecuniária ou religiosa748.

Várias razões podiam concorrer para que um arguido se negasse a submeter à justiça

comunitária. Entre algumas das mais invocadas encontram-se frequentemente objecções aos juízes nomeados (sob o pretexto da sua parcialidade, proximidade de parentesco, etc.) e por outro, a objecção ao próprio Mahamad, nomeadamente, aos seus conflitos de interesse, partidarismo político, predilecções pessoais, ou a quaisquer outras alegações de práticas ou tendências discriminatórias. Um dos mais explícitos casos de favorecimento registados nos livros protocolares diz respeito ao pleito gerado na comunidade de Amesterdão entre Jacob Abas e Matathia Aboab749. Dirigindo-se à liderança de Hamburgo, Jacob Curiel, parente

747 Bet Din: tribunal religioso da comunidade. Ainda que tenha prevalecido uma certa ambiguidade nas

suas áreas de competência, a extensão e limite das suas funções seria explicitamente clarificada numa reforma do sistema judicial efectuada em 1674. Em traços gerais, bastará por agora, mencionar que da multiplicidade de pleitos que chegavam à justiça comunitária, certos casos eram reivindicado em absoluto pelo Mahamad (heranças, testamentos e quetubot), outros seguiam a via da resolução por homens-bons ou árbitros (transacções financeiras e comerciais) e outros ainda eram julgados pelo Bet Din (o tribunal religioso). Ao passo que o Bet Din seguia escrupulosamente a lei religiosa (ou “din torah”, tal como referido pelos portugueses), os árbitros apoiavam-se tradicionalmente no costume ou “estilo mercantil” local. Finalmente, embora ancorando-se publicamente na “din torah”, o amplo poder do Mahamad conferia-lhe liberdade virtualmente infinita para julgar de acordo com os seus próprios interesses e desviar-se, se necessário, dos ditames religiosos. Livro da Nação, tomo I, p. 352, 523; tomo II, pp. 35-38, 65.

748 Intimação a Raphael Milano para se submeter a homens bons contra Esther de Casseres: “(…) se

mande de novo dizer a Raphael Milano por o samas, que de oje em oito dias haja nomeado pessoa por sua parte e se sobmeta como se lhe tem ordenado, e em falta que não venha a esnoga e se proseguira com mais rigor contra elle”. Ibidem, tomo I, p. 515.

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próximo de Jacob Abas e influente decisor político, solicita ao Mahamad dessa cidade que escrevesse ao de Amesterdão para favorecer o seu parente no caso contra Aboab750.

Por seu lado, as objecções colocadas aos juízes passavam geralmente por trâmites processuais um tanto mais específicos. Estas obrigavam, não raramente, à intervenção do Bet Din - o tribunal religioso da comunidade - cuja principal função consistia, entre outras coisas, em zelar pela total observância da lei judaica nos processos litigiosos, avaliando, no seguimento de uma objecção interposta por uma das partes, a conformidade legal da matéria em discussão. Assim que ambas as partes concordavam em submeter-se à justiça comunitária eram então nomeados os árbitros - os chamados “homens bons” ou “juízes louvados” - os quais, em conjunção com o Bet Din, procediam à cuidada revisão, discussão e julgamento do caso, e por fim, à execução da sentença final. Em teoria, a sentença final assentava em três factores fundamentais: de acordo com a força das provas formais apresentadas, em função do

enquadramento estatutário em vigor (escamot), assim como do âmbito jurisdicional em que a decisão se baseava (costume mercantil, leis da cidade, ou lei religiosa judaica)751. A escolha dos juízes ou árbitros era normalmente relegada para os próprios litigantes, tendo cada uma das partes direito a nomear um juiz à sua escolha. Por sua vez, os dois juízes teriam a possibilidade em nomear um terceiro caso não chegassem a acordo, ou se a natureza do pleito assim o exigisse.

A escolha dos juízes obedecia a um conjunto pré-estabelecido de critérios que visavam antes de tudo a promoção da isenção, imparcialidade e equidade na resolução do processo litigioso. Entre alguns dos critérios essenciais para nomeação dos juízes, salienta-se a obrigação destes se encontrarem separados - relativamente a ambas as partes no processo - de um grau de parentesco superior a dois graus, assim como inexistência de negócios e outros tratos financeiros entre as respectivas partes e os juízes nomeados752. A contravenção a alguns destes critérios originava frequentemente a substituição parcial ou integral do corpo de juízes, situação que contribuía para arrastar os processos durante semanas ou meses a fio753.

750 “A pedimento do senhor Jacob Curiel escreveo o maamad ao de Amesterdão pedindo-lhe

favoressesem a cauza de Jacob Abas contra a averassão que intenta fazer-lhe Matathia Aboab o que segue na forma que paresse da copia escrita no fim deste livro”. Ibidem, tomo I, p. 56.

751 Como forma de melhor fundamentar o seu caso, todo um conjunto de documentos eram usualmente

entregues por ambas as partes à junta, tais como os contratos, notas de crédito, inventários, cópias, certificações, quitanças, livro de contas, fianças, e muitos outros documentos de cunho oficial. Para além disso, os litigantes podiam aconselhar-se junto de um procurador (o qual pertencia quase sempre à nação), assim como um “letrado” da terra. Tal foi o caso, por exemplo, de Joseph Pimentel, num pleito movido na justiça da terra contra Netanel Abudiente. Ibidem, tomo I, p. 177. Embora ocasionais, alguns casos referem explicitamente a resolução de pleitos de acordo com as “leis da cidade”. Ibidem, tomo II, p. 58.

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Quanto a este respeito, é de acreditar que os portugueses de Hamburgo baseassem a sua posição na lei judaica, tal como revela a seguinte passagem: “Avendo-se movido dificuldade sobre o compromisso feito entre David Oeb e Mosse de Vargas em que erao arbitros Abram Fidanque e Modechay Frances, e terseiro Jacob Baruch o mosso, se resolveu que por din, não podião Fidanque e Fransses julgar a cauza pelo parentesco que entre eles há, por cuja cauza se acordarão de que em lugar dos ditos juizes elegesse o maamad outras duas pessoas neutrais com a mesma autoridade (…).” Ibidem, tomo I, p. 67.

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Pedido de substituição dos juízes após alegações de “suspeição” por uma das partes: “Em junta persentou Jacob Pardo uma suplica tocante um pleito que tem com Jacob Ulhoa e como ele tem dados por sospeitos a 4 dos senhores da junta para não falar em particulares seos que os dittos neste caso

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A promulgação da sentença final dos pleitos, tinha em teoria, carácter decisivo e inalterável. Não obstante esse facto, podem ser encontrados vários casos de jechidim a contestarem sentenças na base da sua parcialidade e falta de isenção, assim como constantes apelos e recursos à junta comunitária (ou à justiça da terra), como forma de contestar uma decisão tida por injusta754. Enquanto a maioria destas apelações falhavam em obter o resultado desejado, outras atingiam parcial ou integralmente os seus objectivos junto das instituições visadas. Em larga medida, o seu sucesso dependia tanto do seu estatuto socioeconómico como da sua proximidade aos círculos de poder da comunidade, facto que pesava enormemente na sua capacidade para exercer influência junto das autoridades, conferindo, para além do mais, credibilidade à sua proposição.

Outros factores importantes no sucesso do recurso assentavam na própria natureza do pleito, assim como nas condições conjunturais mais ou menos propícias em que o mesmo fora iniciado. Após a sentença, os visados tinham a responsabilidade e o dever de executar, no prazo estipulado pelos juízes, todas as ordens e obrigações por estes determinados. Como garante da ordem e da correcta aplicação da justiça dentro da comunidade, o Mahamad monitorizava cuidadosamente a execução das sentenças promulgadas penalizando todos os que, por uma razão ou outra, falhassem em cumprir o termo de decisão arbitral. Notificações e intimações regulares, assim como eventuais penas, tanto pecuniárias como religiosas, eram impostas a todos os transgressores em função da gravidade do incumprimento e da atitude mais ou menos colaborativa do jachid em causa755.

Reformas no Sistema de Pleitos da Comunidade de Hamburgo

Os primeiros anos da Kahal Kadosh Bet Israel registam um número significativamente escasso de pleitos, pretensões, diferendos, outros que tais, em comparação com os últimos anos registados no livro protocolar. É possível verificar com base nos dados recolhidos no presente estudo, como ao longo dos 30 anos considerados – de 1652 a 1682 – a sua subida assume uma tendência exponencial, passando de uns meros 73 pleitos nos primeiros 15 anos (1652-1667), para um registo próximo dos 200 entre 1667-82756. Com efeito, a preocupação do Mahamad motivada por este aumento drástico de pleitos levou à necessidade de pensar em alternativas para fazer face a um problema de dimensões cada vez mais inquietantes. Em grande medida, as várias reformas empreendidas ao longo dos anos no sistema de pleitos procurariam inverter esta tendência, no entanto, e tal como teremos a oportunidade de ver, factores subjacentes à

aceitão lhes pareceo ao mahamad remeter dita suplica em outra junta de 5 senhores neutrais (…) para que ditos (…) vejão e considerem o lugar que tem esta suplica e o que se deve seguir (…)”. Ibidem, tomo I, p. 216.

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Jacob Ulhoa pede revisão da sua sentença, alegando suspeita de parcialidade de vários membros do júri. Após deliberação dos rabinos que “visto o cazo estar uma vez sentenciado não podia Ulhoa por nelle suspeição”, esta acaba por ser definitivamente recusada pelo Mahamad. Ibidem, tomo II, p. 142.

755

Notificação a Ishac Vas para dar cumprimento à sentença no caso contra Moseh Henriques Aljofreiro: “Em ditto a Ishack Vaz se fara outra emsinuação com Pena de Beraha que ate pasado tisabeab depozite os 216 marcos da sentensa que contra elle tem Moseh Henriques Aljofreiro e em falta se usara do mayor rigor”. Ibidem, tomo II, p. 232.

756 Tais dados encontram-se expostos mais adiante, na secção intitulada “Dados estatísticos sobre os

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própria estrutura da comunidade impediriam a implementação eficaz destas medidas, colocando entraves insuperáveis à empresa reformadora.

A primeira medida, implementada a 23 de Março de 1659, visou acima de tudo facilitar o processo de apresentação de pleitos. Para tal foram delegadas competências a uma entidade assalariada que passaria a funcionar como intermediária entre o Mahamad e os congregantes, encarregando-se de registar todos os casos “em materia de pleitos, pretencoez ou outras quaisquer diligencias que hajam”757. Tal actividade ficou a cargo do samas da nação, Abraham de Campos, o qual passaria a receber um acrescento de 3 placas ao seu salário base.

Sublinhava ainda o Mahamad, que em caso de dúvida, teria sempre a última palavra no que aos pagamentos dizia respeito: “Ficando ao maamad em ocasião de duvida o declarar os factos em que se deve pagar”758.

A ineficácia rapidamente demonstrada por esta primeira medida levaria o Mahamad a propor um novo conjunto de medidas em conjunto com o hacham da comunidade, Mose Israel, como forma de solucionar a resposta letárgica da administração comunitária ao crescente volume de litígios. A mesma passava assim pela nomeação de dois novos oficiais da nação, chamados “deputados”, cuja principal função passaria a consistir na gestão e registo de todas as

diligências de teor civil que dariam entrada na administração pública. Eleitos bianualmente, os deputados passariam, conjuntamente com os restantes órgãos do aparelho governativo, a acudir a “todo lo necessario de mandado de los senhores del mamad (…)” ficando

adicionalmente a seu cargo a gestão das pendências externas envolvendo membros da nação759. Tal significava, antes de mais, proteger os membros da comunidade face a processos instaurados na justiça da terra (tanto nos tribunais de Hamburgo, como nas instâncias de Altona e Glückstadt), passíveis de lesar os interesses da nação. Visando a profissionalização do cargo anteriormente desempenhado pelo Mahamad e, parcialmente, pelo bedel da

comunidade, a medida acumularia um maior nível de competências e poderes nas mãos dos deputados, passando estes a deter o poder de decidir e “tomar resolucion” sobre tudo o que “les pareziere de los negocios”760.

Longe de constituir uma entidade independente, o comité dos deputados continuava, para todos os efeitos, integrado na cúpula do sistema governativo, passando a funcionar como um novo organismo institucional inteiramente subordinado à vontade do Mahamad, dotado de funções administrativas abrangentes, mas restrito à vontade do governo e à sua interferência ilimitada. Em boa verdade, os cargos dos deputados viriam a ser outorgados quase

exclusivamente a ex-parnassim, e a sua eleição pelo Mahamad continuaria a seguir o modelo oligárquico tradicional efectuado por cooptação. Desta forma, o conflito corporizado pela necessidade em, por um lado, gerir os interesses de ordem patrimonial e, por outro, de proceder a uma descentralização das funções administrativas, seria resolvido de forma

757 Livro da Nação, tomo I, p. 138. 758

Ibidem, tomo I, p. 138.

759 Ibidem, tomo I, p. 419. 760 Ibidem, tomo I, p. 419.

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inesperadamente harmoniosa, sem colocar em causa as prerrogativas soberanas da liderança comunitária761.

As expectativas em torno da introdução destas primeiras medidas viram-se, porém, defraudadas, com os pleitos a assumirem uma posição cada vez mais central na vida da comunidade portuguesa. Ao invés de se verificar um desacelerar da tendência litigiosa, assiste- se no período imediatamente seguinte à sua introdução, a uma intensificação não somente do

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