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Os pressupostos ora elencados permitem antes de mais demarcar a figura da simulação de outros institutos que, numa leitura menos cuidada, se poderiam considerar como sobrepostos61.

Partindo do primeiro requisito da simulação, o pacto simulatório, através do qual os simuladores acordam e delineiam toda a estratégia simulatória, permite distinguir a simulação da figura da reserva mental, art.º 244.º do CC. Nesta última o intuito do declarante é enganar o próprio declaratário, de forma unilateral, não existindo, portanto, acordo entre o declarante e o declaratário sobre a aparência criada, prejudicando a validade da declaração. Pode, no entanto, ser aplicado o regime da nulidade da simulação, caso a reserva seja conhecida pelo declaratário (art.º 240.º, n.º 2 ex vi art.º 244.º, n.º 2, ambos do CC). A proximidade da simulação prende-se precisamente com o eventual conhecimento do declaratário, mas ainda assim não existe acordo ou intenção de enganar terceiros, que são requisitos próprios da simulação. Mesmo a existir

58 Assume-se o conceito de terceiro enquanto pessoa estranha ao núcleo das partes que participam na mancomunação e da qual não depende a perfeição do ato, mas cujos efeitos se poderão repercutir sobre a sua posição jurídica. Ressalvando ainda que para o preenchimento desse conceito não é necessário que a pessoa seja alheia ao negócio simulado. Assim, cf. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral, op. cit., pp. 149-150, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado, op. cit., p. 884 e ac. do STJ de 14.02.2008, no Proc. n.º 08b180.

59 Negócios caracterizados por serem compostos por uma única parte, com uma ou mais pessoas cujos interesses, ainda que parcialmente divergentes, apresentam elementos comuns que se articulam do ponto de vista da produção dos efeitos jurídicos.

60 Cf. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 170. Por oposição à admissão da simulação nos negócios não recipiendos, considerando o testamento como uma exceção, veja-se INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Manual, op. cit., pp. 170-171.

61 Para maior desenvolvimento destes institutos na doutrina, veja-se, nomeadamente, JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Civil. Teoria Geral, Vol. II, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1995, pp. 188-210 e 231-243, MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral, op. cit., pp. 215-278; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil. Teoria Geral, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 120-172 e 209-129; e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 654-681 e 697-701.

fingimento por ambas as partes a título individual, continuaremos perante a figura da reserva mental, ou melhor dupla reserva mental, por ausência do pacto simulationis.

A par deste, o requisito da intencionalidade da divergência permite-nos distanciar esta figura de outras possíveis, nas quais, embora haja divergência entre o elemento interno e externo, esta apresenta-se como não intencional, isto é, involuntária. A título de exemplo:

a) casos em que o legislador não atribui qualquer efeito jurídico à declaração, salvo se houver culpa do declarante. O art.º 246.º do CC prevê neste âmbito duas situações distintas: i) quando o declarante manifesta, através do seu comportamento, uma vontade sem ter consciência de que o mesmo corresponde a uma declaração negocial, isto é, sem ter noção de que ficará vinculado juridicamente e ii) quando a aparência criada, embora consciente, ocorre por força de um ato de coação física, exterior à vontade do declarante. Ambos os casos pautam- se por uma falta de vontade negocial, dirigida à celebração de um negócio jurídico concreto, inexistindo ainda na segunda hipótese vontade de praticar qualquer comportamento (vontade de ação).

b) Erro na declaração ou erro-obstáculo (art.º 247.º do CC), isto é, o declarante tem vontade de ação mas a declaração expressa não corresponde ao realmente pretendido devido a um lapso, não tendo o próprio declarante consciência da divergência. O lapsus calami ou linguae pode ser conhecido ou pelo menos cognoscível pelo declaratário, pelo que se considera válido, seja por via do n.º 2 ou do n.º 1 do art.º 236.º do CC, respetivamente, conforme a vontade real do errante.

O erro na declaração opera numa fase externa da declaração, no momento da sua exteriorização, pelo que não deverá ser confundido com os vícios na própria formação da vontade, v.g. arts.º 251.º a 253.º, 255.º e 257.º, todos do CC, nos quais, a haver divergência, esta radica logo numa fase preliminar da construção da vontade.

Neste conspecto, a propósito do erro, importa abordar a figura da errada qualificação do negócio jurídico, sendo que, aqui, como o próprio nome indicia, a qualificação acordada e atribuída pelas partes ao negócio não está conforme o conteúdo estipulado. Por outras palavras, as partes conjeturaram a celebração de um determinado negócio, realidade consensual a que efetivamente se querem vincular, mas, por consequência de um erro (de qualificação jurídica) na inscrição dos termos ou cláusulas insertas no contrato, o respetivo texto/acordo acaba por induzir um tipo de negócio substancialmente diferente daquele que as partes, em consciência, pretenderam convencionar. Perante casos do tipo que ora se nos apresenta, a doutrina qualifica

de falsa demonstratio non nocet, mantendo-se o negócio celebrado transmutado para os efeitos da qualificação adequada (art.º 236.º, n.º 2, do CC).

Não basta, no entanto, que haja uma divergência intencional, isto é, pode o declarante emitir uma declaração que não coincide com o pretendido, sem conhecimento do declaratário, mas fá-lo convencido que a aparência é do conhecimento deste último. Aqui estamos perante uma declaração não séria, segundo o regime configurado no art.º 245.º do CC, habitualmente utilizada com uma finalidade didática, cénica ou até meramente jocosa, sem intuito de enganar ou prejudicar outrem. A não verificação de efeitos negociais enquanto consequência da declaração significa uma forma rigorosa da nulidade, em compatibilização com o disposto nos arts.º 285.º e ss. do CC, podendo o declaratário ser indemnizado por dano de confiança, art.º 245.º, n.º 2, desde que verificados os pressupostos legais.

Por último, haverá que destrinçar a simulação do negócio jurídico fiduciário, enquanto “negócio atípico pelo qual as partes adequam, mediante uma cláusula obrigacional ou real, o conteúdo de um negócio típico a uma finalidade diferente da corresponde à causa do negócio instrumental por elas selecionado”62. O pacto fiduciário, parte integrante do conteúdo do negócio, confere poderes que, embora extravasem o seu escopo, só poderão ser utilizados na medida da finalidade estipulada, correspondente à vontade real das partes.

Pontualmente, no decurso deste e do próximo capítulo, e em função de determinadas características atribuídas à simulação, teremos oportunidade de a diferenciar de outros regimes que, como os anteriores, não deveremos confundir, mormente o regime dos negócios indiretos, da falsidade e da fraude à lei, que nos revelam particular interesse para o sistema fiscal.