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Estamos perante um instituto aflorado no Direito Romano63 e utilizado na antiguidade clássica, não só, mas frequentemente, como meio de atenuar a rigidez da lei em certas temáticas de matriz matrimonial, fosse através da celebração de casamentos absolutamente

62 Cf. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral, op. cit., pp. 347-348.

63 A propósito da evolução histórica da teoria da simulação, cf. JOSÉ BELEZA DOS SANTOS, A Simulação em Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1921, pp. 233-260; FRANCISCO FERRARA, Della Simulazione dei Negozi Giuridici, Milão, Società Editrice Libraria, 1905, tradução espanhola de Rafael Atard e Juan A. de la Puente, La Simulación de los Negócios Juridicos, 3ª edição, Madrid, Editora Revista de Derecho Privado, 1953, pp. 137-172. Para uma visão histórico-comparatística, notavelmente sintetizada, veja-se A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Da Simulação no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 21-52.

Sobre o regime da figura nas Ciências Jurídicas estrangeiras, e a título exemplificativo, veja-se ALBERTO AURICCHIO, La Simulazione nel Negozio Giuridico: premesse generali, Nápoles, 1957, tradução portuguesa de Fernando de Miranda, A Simulação no Negócio Jurídico: premissas gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1964.

simulados para mera obtenção de legados ou através da criação de estratagemas que dissimulassem as transmissões gratuitas proibidas entre cônjuges. Tanto para o primeiro caso, típico da simulação absoluta, como no segundo, enquanto exemplo de simulação relativa, a lei romana feria ambos os atos de nulidade: o simulado simplesmente por ser simulado e o dissimulado porque era proibido64. Assim, segundo as disposições romanas, havendo uma vontade real, que subjaz a aparência criada, só lhe seria reconhecida validade uma vez permitida pela regulamentação jurídica.

Foi essencialmente a partir dos trabalhos técnico-jurídicos desenvolvidos pelos jurisconsultos a partir dos séculos XIV e XV, com os designados pós-glosadores, com especial enfoque nos séculos XVII e XVIII pelos jurisconsultos italianos, que a noção de simulação assumiu uma configuração mais rigorosa, no que concerne às suas modalidades e efeitos, e uma autonomia face a outras espécies, afastando-se da figura da fraude à lei. Questões ainda hoje pertinentes como a oponibilidade e os meios de prova da simulação eram já naquela altura objeto de consideráveis debates.

Atenta à multiplicidade de situações de negócios simulados aquando das Ordenações do Reino de Portugal, regia as Ordenações Afonsinas, no Título LXIIII do Livro III, §15.º, 33.º e 34.º, distinguindo da falsidade, ainda que de um modo superficial, a admissibilidade da prova testemunhal mesmo contra ao ato formalizado em escritura pública65. Contudo, apenas com as Ordenações Manuelinas em 1521, no seu Título XV do Livro IV, podemos encontrar uma formulação genérica de simulação, através de uma enumeração exemplificativa de atos simuláveis contra credores e outras pessoas ou em desrespeito das ordenações. Nesta hipótese, juntamente com a nulidade dos atos simulados, outras sanções eram aplicadas, particularmente a perda dos bens objetos de simulação a favor das pessoas prejudicas, do acusador e da Coroa e o exílio das partes contratantes, isto sem prejuízo de o contraente poder confessar a simulação e, assim, ficar eximido de qualquer penalização66. Continuando consciente dos possíveis entraves à prova da simulação por via escrita, o legislador, no Livro III, Título XXXXV, §23, optou por manter a possibilidade da prova testemunhal67.

Pese embora considerada como um ataque ao Direito, as Ordenações Filipinas nada de relevo acrescentaram à regulamentação proveniente das Ordenações anteriores, tendo procedido

64 Digesto 23.2.30; 18.1.55 e 24.1.1, disponível em http://www.thelatinlibrary.com/justinian/digest23.shtml [02.02.2017]. Codex 4.22.2, disponível em http://www.thelatinlibrary.com/justinian/codex4.shtml [02.02.2017].

65 Ordenações Afonsinas, Livro III, Reprodução da edição de 1792, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 226-227 e 235-237. 66 Ordenações Manuelinas, Livro IV, Reprodução da edição de 1797, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 45-47. 67 Ordenações Manuelinas, Livro III, op. cit., pp. 168-169.

à sua transcrição no Título LXXI do Livro IV68. Por essa altura, os comentadores e praxistas portugueses, inspirados nos ensinamentos dos jurisconsultos italianos, centraram-se no estudo jurídico-dogmático em torno desta figura: definiram a simulação enquanto divergência entre a vontade exterior e a intenção interior das partes (machinatio per quam aliud exterius ostenditur, aliud vero intrinsecus intendunt partes), desdobrando-a em simulação lícita, quando a ninguém prejudica, e ilícita, em prejuízo do fisco ou de terceiro; diferenciaram-na de outros institutos como a falsidade, o erro e o dolo; distinguiram as suas várias modalidades, inclusive quando a simulação se traduzia num ato imaginário (velut umbra, et corpus sine spiritu) ou quando ainda era possível autonomizar outra coisa real (quando unum contractum palam facio et ostendo me facere et alium in veritate intendo), sancionando o ato aparente e o mascarado proibido (ex eis dominium non transfertur, licet fuissent juramento vallati ; et tunc non valet ilud quod simulate concipitur, id est, quod palam per simulationem ipsae faciunt nec illud quod secrete facere intendebant); e admitiam como meios de prova em caso de simulação ilícita a prova por testemunhas, indícios e presunções, cabendo posteriormente ao juiz dirimir os indícios bastantes para inferir a simulação, não podendo, em todo o caso, ser arguida pelos simuladores69.

Não obstante, como escreve JOSÉ BELEZA DOS SANTOS, o estudo desenvolvido pelos juristas cultos do antigo direito português sobre esta matéria, meritório de um tratamento especializado e aprofundado pela sua riqueza concetual, não fora devidamente aproveitado pelos jurisconsultos imediatamente anteriores ao Código de Seabra, porventura por influência dos cânones franceses70. Ainda assim, fruto desse desenvolvimento dogmático, atualmente tem-se como assente que se trata de um instituto que, embora enquadrado em diferentes modalidades, pressupõe necessariamente a existência de uma intenção camuflada por uma outra, seja para ludibriar ou para maleficiar outrem, sendo reconhecida validade jurídica apenas à verdadeira vontade se estiver de acordo com as normas legais, distanciando-se de outros institutos, como tivemos já oportunidade de constar, incluindo a fraude à lei, como veremos adiante.

No seio do Código Civil Português, atenta à predominância da simulação fraudulenta, a simulação começou por ser enquadrada, em sentido mais lato, na Parte II do Código de Seabra,

68 Cf. J. H. CORRÊA TELES, Digesto Portuguez ou Tratado dos Direitos e Obrigações Civís, accommodado às leis e costumes da nação portugueza; para servir de subsidio ao novo Codigo Civil, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1840, p. 45; Ordenações Filipinas, Vol. III, Livros IV e V, Reprodução da edição de 1870, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 883-884.

69 Em detalhe, cf. JOSÉ BELEZA DOS SANTOS, A Simulação, op. cit., pp. 255-256; e MAURI LUDOVICI DE LIMA, Commentaria ad ordinationes Regni Portugalliae, in quibus dilucidè singulae Leges explanantur, (…) ad perficiendum Opus Commentariorum ab Emmanuele Gonçalves da Silva, (…) Tomus Primus, (…) Editio Prima, Olisipone: Typis Patriarchalibus Francisci Ludovici Ameno, (…) Lisboa, 1761, pp. 375-377; e MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA DE LOBÃO, Notas de uso pratico e criticas: addições illustrações e remissões (…), Impressão Régia, Lisboa, 1828, Parte I, Título VIII, §10, pp. 295-297.

referente à aquisição de direitos, no quadro dos contratos e obrigações em geral, mais especificamente dos atos e contratos celebrados em prejuízo de terceiro, arts.º 1031.º e 1032.º, previstos no Capítulo XI, Título I, Livro II, Parte II. Após as duas revisões ministeriais levadas a cabo por Antunes Varela em 1961 e 1965 ao anteprojeto liderado por Rui de Alarcão, a noção de simulação e os seus efeitos encontram-se previstos na Parte Geral do Código Civil de Vaz Serra, integrados na Subsecção V da Secção I, respeitante à “falta e vícios da vontade” da declaração negocial, sendo ainda referenciada a propósito dos meios probatórios, art.º 394.º, n.º 2, do regime do casamento e do testamento, nos seus arts.º 1635.º, al. d), e 2200.º. Esta opção pela integração numa subsecção relativa à vontade no quadro da declaração negocial reflete a influência do dogma pandetístico da vontade introduzido no nosso ordenamento através do esforço empregue por GUILHERME ALVES MOREIRA ao reconduzir a simulação aos efeitos da manifestação da vontade71.