• Nenhum resultado encontrado

Instruções para atingir o Céu

No documento Julio Cortázar: de pontes e duplos (páginas 67-69)

6. Capítulo Final do jogo

6.1 Instruções para atingir o Céu

Ao longo da História, como é possível observar nas citações acima, diferentes correntes de pensamento, particularmente nos estudos lingüísticos e literários, aventuraram-se em reflexões, procurando entender e descrever o ato, ou o processo da tradução. Cada uma das correntes derivadas de tais reflexões buscava explicar conceitos que, historicamente, marcam os estudos tradutológicos, isto é, letra x espírito, fidelidade x infidelidade, autor x leitor, original x cópia, dentre outras dualidades. Os posicionamentos dos componentes binários variavam desde a sacralidade do texto original, que, portanto exigia do tradutor uma atitude servil, fundamentada na idéia de equivalência ou de recursos como tradução literal, palavra-por-palavra, até a tradução como restituição da beleza e da estética, limpando o texto traduzido das escuridões do estrangeiro, como era o caso das belles infidèles. Esses termos e posicionamentos governaram as tentativas de compreender a práxis milenária e infatigável da tradução e regulam, ainda hoje, o andamento do processo tradutório, numa certa luta entre teoria e prática.

O tradutor Rainer Schulte fala-nos dos tradutores como profissionais conscientes da realidade da existência da outra margem, da tarefa de levar bens de uma margem para a outra, da incerteza sobre como aqueles bens serão recebidos na outra margem, na nova cultura:

Através do ato de tradução torna-se possível a comunicação entre dois textos. Porém, ao fazê-lo, os tradutores descobrem os particulares matizes emocionais e culturais existentes na sua língua que não admitem ser transplantados para a língua receptora. 108

Tradução e criação são, portanto, atividades gêmeas, e, de acordo com Octávio Paz “trata-se de desmontar os elementos do texto, pôr uma outra vez em circulação os signos e retorná-los à linguagem [...]” 109. O fato configura um desafio para o tradutor, que se vê obrigado a acompanhar o autor na sua viagem de estratégias

108 BRADFORD, 1997. Introdução da coletânea de artigos por Rainer Schulte. P. 9. Minha tradução de: A

través del acto de la traducción, hacen posible la comunicación entre dos textos. Al hacer esto, no obstante, también [los traductores] descubren los particulares matices emocionales y culturales existentes en un idioma que no pueden ser transplantados al idioma receptor

109

PAZ, 1990, p.22. Minha tradução de: ‘Se trata de desmontar los elementos de ese texto, poner de nuevo en circulación los signos y devolverlos al lenguaje [...]’.

discursivas, onde as palavras tornam-se as pontes para levar a carga de uma margem para a outra.

Já em 1890, Sigmund Freud escrevia, a propósito do tratamento psíquico: “as palavras são ferramenta essencial”. 110 A palavra surge aqui com todo seu poder de criação, é fundadora, mas sempre ambivalente no processo de interpretação, uma tradução intralingual. Aí está uma das sementes da instabilidade do significado.

Derrida, estudando a différance do significado, discute a problemática das falhas, perdas e infortúnios que impedem qualquer língua de ser uma 111. O confronto de amor e ódio entre espírito e tradução estimula a batalha tradutória dentro do texto original sustentada pela polissemia, explicitando-se e concretizando-se no momento da tradução, impondo a batalha textual.

A tradutora Barbara Johnson112 aborda também a problemática: “A tradução é uma ponte que estabelece, por si própria, os dois campos de batalha separados”, e se vale de Heidegger, para explorar o conceito de ponte:

“Ela [a ponte] não liga simplesmente duas margens, que já estão lá. As margens emergem como tal, apenas no momento em que a ponte atravessa o rio. A ponte, intencionalmente, faz com que permaneçam opostas uma à outra [...] Com as margens, a ponte traz até o rio as duas extensões da paisagem, que ficam atrás de si. Tornam mutuamente vizinhos o rio, a margem e a terra”. 113

Nessas águas de rios, muitas vezes considerados sagrados, navegam os tradutores e as traduções. De uma ponte, para uma outra, os textos fazem as viagens sem fim e talvez, sem origem. Num ir e vir infatigáveis, as vozes de todas as culturas falam todas as línguas depois de uma Babel desconstrutora, fragmentada e dispersa em pedaços, porém produtora de vida, origem das falas multiplicadas. Os tradutores percorrem distâncias entre os vestígios daquela torre única, da unicidade lingüística, da Origem da origem.

As reflexões, que esta dissertação propiciou, terão como base e fundamentação teórica as idéias inovadoras de vários pensadores contemporâneos, entre eles, as de Jacques Lacan (Paris, 1901-1981). Elisabeth Roudinesco oferece-nos uma abordagem do universo lacaniano, a partir de uma ótica pessoal:

110 IN: MORITZ KON, 1996., p.123.

111 IN: OTTONI, 1996, p. 30 112 Idem, p. 32. Grifos meus 113

Jacques Lacan procurou introduzir a peste, a subversão e a desordem no âmago de um freudismo moderado do qual era contemporâneo: freudismo que, após ter sobrevivido ao fascismo, soubera adaptar-se à democracia a ponto de não mais reconhecer a violência de suas origens. A história de Jacques Lacan é a história de uma paixão francesa, balzaquiana. [...] Mas é também a história de um pensamento que, depois de Freud, quis arrancar o homem do universo da religião, do oculto e do sonho, com o risco de evidenciar a impotência permanente da razão, da luz e da verdade ao efetuar essa operação. [...] [Lacan] é o fundador de um sistema de pensamento cuja particularidade foi considerar que o mundo moderno, posterior a Auschwitz, havia recalcado, recoberto e rompido a essência da revolução freudiana.”114

Embora a importância fundamental de Jacques Lacan como psicanalista, abordá- lo implica uma abordagem tradutória, e como salienta Roudinesco, é fazer referência direta a Freud, cujo legado imprime feições que fazem parte do universo da tradução.

A familiar imagem do psicanalista como tradutor é um legado de Freud que comparou com freqüência as suas descobertas iniciais a triunfos de tradução.[...] Freud muitas vezes afirmou ter encontrado uma forma de traduzir os sintomas de histeria e os sonhos para a linguagem comum, [...] Freud comparou [...] os sintomas e os sonhos aos hieróglifos, assim como seu próprio trabalho ao de François Champollion, a quem reputava como o ‛primeiro homem a ter sucesso na leitura de hieróglifos’.[...] Freud escreveu que as primeiras investigações sobre histeria assemelhavam-se ao trabalho de exploradores que encontram ruínas com insólitas inscrições. Os ‛exploradores’ limitam-se a examinar e descrever as inscrições –uma referência óbvia à psiquiatria descritiva [...] Depois dos exploradores [...] vêm os arqueólogos, que buscam o código capaz de decifrar, traduzir, as inscrições- obviamente, uma referência ao próprio Freud. 115

No documento Julio Cortázar: de pontes e duplos (páginas 67-69)

Documentos relacionados