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Julio Cortázar: de pontes e duplos

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Academic year: 2021

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(1)Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71)3263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br. Julio Cortázar: de pontes e duplos. por. Cristina Rosa Santoro. Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Ramos. SALVADOR. 2007.

(2) Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71)3263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br. Julio Cortázar: de pontes e duplos. por. Cristina Rosa Santoro. Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Ramos. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Letras.. SALVADOR. 2007.

(3) A Mis queridísimas hijas, que sempre me acompanharam. Mi papá, que não está, mas estaria feliz com esse projeto. Julio (y ‛sus hermanos’), que mora no coração de todos os argentinos..

(4) AGRADECIMENTOS. Às minhas filhas Magdalena, María e Carolina, que caminharam generosamente ao meu lado. Ao governo do Brasil pela confiança e por me ter oferecido a possibilidade e o prazer de desenvolver a minha pesquisa. À professora Elizabeth Ramos, por me guiar nos estudos da tradução e pela orientação enriquecedora. À professora Ana Rosa Ramos, pela solidariedade e amizade sincera. Aos colegas da minha turma de Mestrado, por estarem ali até hoje. A mis grandes amigos argentinos, por el incondicional apoyo a distancia. Ao pessoal da Biblioteca Central da UFBA por ter disponibilizado generosamente o material do acervo. Ao Núcleo de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA, pela possibilidade que me deu de crescer no ambiente acadêmico. À psicanalista Marita Manzotti, pela atenção dada às minhas consultas de longa distância. Ao meu colega e amigo Hernán Yerro, por disponibilizar a sua tese como guia para a pesquisa e pelo apoio constante. Ao CNPq, pelo valioso apoio financeiro. E, finalmente, a todos os que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste trabalho..

(5) Che Yo tuve un hermano./ No nos vimos nunca / pero no importaba. / Yo tuve un hermano / que iba por los montes / mientras yo dormía. / Lo quise a mi modo, / le tomé su voz / libre como el agua, / caminé de a ratos / cerca de su sombra. / No nos vimos nunca / pero no importaba, / mi hermano despierto / mientras yo dormía, / mi hermano mostrándome / detrás de la noche / su estrella elegida./ Julio1. 1. CORTÁZAR, Todos los fuegos, el fuego, 1966..

(6) RESUMO Em quase toda a obra de Julio Cortázar percebe-se uma particularidade: o duplo. Paris x Buenos Aires, o rio de La Plata x o rio Sena, as pontes, um lado e outro das margens dos rios e do oceano que separam lugares de vivência do autor e que se tornam as chamadas dos orillas. O duplo, em Cortázar, adota diversas manifestações – espelhos, reflexos, imagens, visões – e o tema do desdobramento deriva de vivências do autor. O duplo, figura central de nossas reflexões, temática presente nos estudos literários e nas abordagens psicanalíticas rankianas, freudianas e lacanianas, pode ser aplicado ao ato tradutório, na medida em que muitos esperam do texto traduzido a construção de uma imagem apenas especular, esquecendo o duplo que todo ser (texto) carrega na sua essência mais profunda: um duplo que precede. Outros, no entanto entendem a tradução como ponte entre línguas e linguagens: de um ser para um outro, de uma margem para a outra, de um texto de partida (o ‘original’) para o seu texto duplo, o texto traduzido. A analogia ‛ser-texto’ nos abrirá as portas para esse jogo da amarelinha onde a primeira pedra será jogada a partir do texto de partida, para vivenciar a angústia na passagem, mimese, identificação e repulsa diante do outro – o duplo – na tentativa de atingir o Céu: o texto de chegada.. Palavras-Chave: Duplo. Pontes. Texto-Ser. Tradução.

(7) RÉSUMÉ. Presque au long de toute l´œuvre de Julio Cortázar, on perçoit une particularité: le double. Paris face à Buenos Aires, le Rio de la Plata et la Seine, les ponts, un côté et l´autre des bords des rivières et de l´océan séparant des lieux témoignant de la vie de l´auteur et qui deviennent ce que l´on appelle: las dos orillas. Le double, chez Cortázar, adopte-t-il diverses manifestations –miroirs, reflets, images, visions- et le sujet du dédoublement trouve ses bases de formation à des vécus de l´auteur. Le double, figure centrale de nos réflexions, thématique présente à nos études littéraires et aux abordages psychanalytiques rankiennes, freudiennes et lacaniennes, il peut même être outil de description de l´acte traductoire, dans la mesure où beaucoup parmi nous, on n´attend que la construction d´une image miroir à partir du texte traduit, tout en oubliant le double que tout être (texte) mène au plus profond de soi : un double que précède. D´autres, par contre, comprennent la traduction comme un pont entre langues et langages: d´un être vers un autre, d´un bord vers l´autre, du texte de départ (‛l´original’) vers son texte double, le texte traduit. L´analogie ‛être-texte’ nous ouvrira les portes au jeu de Marelle où la première pierre sera-t-elle lancée depuis le texte de départ, afin de vivre l´angoisse dans le passage, la mimesis, l´identification et le refus devant l´autre – le double- dans la tentative d´atteindre le Ciel: le texte d´arrivée.. Mots clés: Double. Ponts. Texte-Être. Traduction.

(8) LISTA DE ILUSTRAÇÕES. Figura 1 - Julio Cortázar. Página 14. Figura 2 - Do lado de cá - A desembocadura do Rio de la Plata divide Buenos Aires e Montevidéu.. 17. Figura 3 - Do lado de lá - Paris, rio Sena. 17. Figura 4 - Julio Cortazar duplicado. 44. Figura 5 - Julio Cortazar: As mãos do cronópio na escrita. 55. Figura 6 - O Jogo da Amarelinha: uma transição em jogo às portas do Céu. 58. Figura 7 - As portas do céu. 79.

(9) SUMÁRIO. Página 1. INTRODUÇÃO. Capítulo 1. 11. 2. Capítulo 2. Um tal Julio. 14. 2.1 Julio Cortázar, auto-retrato. 14. 2.2 De outros lados. 16. 2.3 Do lado de cá. 17. 2.4 Do lado de lá. 17. 2.5 O Puzzle de um Perseguidor. 19. 2.6 Maravilhosas ocupações. 21. 2.7 O canto dos cronópios. 22. 2.8 Alegria e tristeza do Cronópio. 23. 2.9 A outra margem. 25. 3. Capítulo 3. Todos os contos o conto. 27. 3.1 Axolotl. 27. 3.2 A Distante. 29. 3.3 O outro céu. 31. 3.4 Julio, os seus métodos de trabalho. 42. 4. O duplo. Um tal Julio: cronópio duplicado. 44. 4.1 Estranhas Ocupações. 44. 4.2 Instruções para entender um duplo. 45. 4.3 Julio, os seus solilóquios narrativos. 54. 4.4 Julio, as suas errantes duplicações. 55. Capítulo transição O Jogo da Amarelinha: uma transição em jogo às portas do Céu. 58.

(10) 5. Capítulo 5. Da Terra para o Céu. 59. 5.1 História de divinos e babelos. 60. 5.2 A porta condenada. 62. 5.3 Distante. 63. 6. Capítulo 6. Final do jogo. 66. 6.1 Instruções para atingir o Céu. 67. 6.2 Um tal Lacan, tradutor. 69. 6.3 O outro Sigmund. 71. 6.4. Lacan na torre. 76. 6.5 Final de etapa. 77. CONCLUSÃO. 80. REFERÊNCIAS. 83. ANEXO 1 - Glossário. Fora de hora. 91. ANEXO 2 – Contos analisados na dissertação: Axolotl, Lejana, El otro cielo. 93.

(11) INTRODUÇÃO Capítulo 1. A importância da tradução é incontestável. A infatigável história do homem (tradutor) desde a con-fusão babeliana até os tão controvertidos pós-modernos comprova o fato. Apesar do mérito e da sua inegável função milenária, a tradução carrega no seu longo percurso o desprestígio, o desrespeito, a imagem fantasmástica e estranha (Unheimlich). Não raro, espera-se dela apenas a imagem especular, secundária, sinônimo do duplo, mas um duplo inferior. Com o intuito de contribuir para a expansão do que se entende como ato tradutório, esta dissertação abordará o duplo segundo diversas óticas: literárias, tradutológicas, psicanalíticas, baseando-se na obra literária de Julio Cortázar, cuja narrativa fantástica permitirá desenvolver a figura do outro (o duplo) como tradutor do eu do autor, como elemento estético particular cortazariano, ponto de partida para uma abordagem da construção textual. Visando à formação do texto e na defesa da premissa de que todo texto é precedido de um outro, de que toda língua e linguagem traduzem e carregam outras línguas e linguagens, de que o outro (o duplo) faz parte de UM e de TODOS, na cadeia de elos, de Narcisos e espelhos, analisar-se-á o tópico a partir de uma analogia da formação do ser, que carrega o duplo (o outro) milenário e ancestral e torna-se sujeito (de linguagem) no apelo do Outro. Em vista disso, a pesquisa pretende como ponto de partida, estudar uma seleção de textos de Cortázar, focalizando os contos: Axolotl, A Distante e O outro céu. O romance O Jogo da Amarelinha nos fornecerá também elementos de importância significativa no que diz respeito à construção da narrativa de Julio Cortázar. Apreciaremos que, nos textos analisados, a figura do duplo torna-se capital dentro do tecido narrativo e, ao analisar a linguagem, as escolhas estilísticas cortazarianas, observaremos que constituem elementos construtores: o discurso como tradutor dos traços ideológicos do autor. Tal constatação confirma a importância do texto traduzido como re-criação e transformação. As imagens, que iremos estudar, demonstram o duplo constituído na diferença da imagem que a precede, sem que seja pensado como inferior a esta.. 11.

(12) Defendemos a hipótese de que o narrador, de acordo com diferentes teorias literárias e lingüísticas, é construído dentro da linguagem, através das palavras. Assim, o escritor encontra-se, no mundo, movido pela ação da linguagem, força propulsora e também objeto de criação. Jacques Derrida e Jacques Lacan sustentarão o desenvolvimento das nossas colocações a partir das suas reflexões inovadoras que imprimiram feições singulares no que diz respeito à constituição do ser: sujeito da linguagem. No entanto, a voz do próprio Julio Cortázar ilustrará também as nossas premissas, especificamente ao sustentar que uma grande parte da sua produção “ordenase sob o signo da excentricidade, posto que nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever”1. Ao analisar a narrativa cortazariana, salienta-se não só a questão da escrita como fonte de criação e vida, mas também se aprecia que Cortázar é convite para as nossas inquietações e reflexões quanto ao duplo, no que respeita à justificativa de escolhas narrativas, é também como fundamento do ato tradutório. Sigmund Freud, em seu ensaio dedicado ao estudo do Estranho (“Das Unheimliche”, 1919), investiga os sentidos da palavra alemã ‛heimlich’, vocábulo que se desdobra, já que os significados são duplos: o conhecido leva consigo o seu duplo (o estranho) a partir da própria palavra que o nomeia. A questão do duplo é ancestral, faz parte da história e da gênese humana. A premissa que sustenta tal hipótese é a de que, segundo Sigmund Freud, originalmente, o ‛duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‛enérgica negação do poder da morte’. Otto Rank – em O duplo– salienta que o duplo é a própria personalidade (sombra ou reflexo), assegurando sobrevivência futura e desenvolve a idéia da literatura como tradução e reflexo da personalidade dos narradores. O psiquiatra Otto Rank nos oferecerá fundamentação teórica para os conceitos que se pretendem colocar desde o ponto de vista da psicanálise, porém impondo uma visão basicamente literária. Ao analisar a questão do duplo na literatura, e extrapolá-lo aos estudos da tradução, este trabalho busca trazer nova luz à tradutologia. Ao falar do ato tradutório, impõe-se uma reflexão em duplo: falar em tradução implica a abordagem do outro, da outra margem, daquele outro texto a ser criado, mas também, e implicitamente, daquele outro texto que todo tecido narrativo contém, daquele duplo (os elos de uma cadeia de elos) que toda produção textual carrega. Ao trazer nova luz para as teorias da tradução,. 1. CORTÁZAR. In: Valise do cronópio, 1974, p. 166, 167, 168.. 12.

(13) o desafio focaliza uma tentativa de desenvolvimento de uma analogia entre criação textual e formação do ser. Pretende-se demonstrar que o texto-ser leva o duplo em sim mesmo, que se corporiza no apelo do outro: do texto e do ser. A premissa que sustenta tal hipótese é aquela que afirma que o texto fonte se torna texto no apelo do texto de chegada: sem esse apelo, a existência textual é posta em dúvida, já que sem tradução (intra e interlingual) não existe construção textual. Em paralelo, o ser se torna sujeito no apelo do Outro: o ser da linguagem abordado pelos conceitos lacanianos. A dissertação está organizada em seis capítulos e dois anexos. O Capítulo 1 apresenta a Introdução. O Capítulo 2 oferece uma visão geral das características da vida e da narrativa de Julio Cortázar. No Capítulo 3, aprecia-se uma detalhada análise de três contos de Julio Cortázar: Axolotl, A Distante e O outro céu, na tentativa de ilustrar a abordagem do ‛outro’, elemento constante na narrativa cortazariana. O Capítulo 4 constrói-se a partir do duplo em Cortázar, segundo a teoria literária e a psicanalítica, desenvolvida por Otto Rank e, também, por Sigmund Freud, num jogo de imagens e traduções do eu do autor no texto. Segue-se um Capítulo de transição no qual o desenho do Jogo da Amarelinha ilustra e dialoga com os conceitos que se pretendem colocar. O Capítulo 5 introduz comentários sobre a tradução ao longo da história salientando a particular importância do ato tradutório como construtor textual e elemento de base do percurso histórico onde tudo é tradução. O Capítulo 6 aborda a formação textual numa analogia da formação do ser apoiando-se nas teorias propostas por Jacques Lacan, tradutor de Freud. O duplo, o Outro, o ser-texto, a imagem especular, as pontes estabelecendo laços serão os elementos a serem desenvolvidos que sustentarão os argumentos que se pretendem colocar. No Anexo 1, inclui-se um glossário explicativo dos intertítulos presentes ao longo da dissertação. O objetivo do glossário é esclarecer o jogo de palavras estabelecido a partir de títulos de contos e de coletâneas de Julio Cortázar. No Anexo 2, inclui-se os três contos analisados na dissertação: Axolotl, Lejana e El otro cielo.. 13.

(14) Capítulo 2 Um tal Julio. 2.1 Julio Cortázar, auto-retrato. Nasci em Bruxelas em agosto de 1914. Signo astrológico, Virgem; portanto, astênico, com tendências intelectuais, o meu planeta Mercúrio e a minha cor, o cinza, mas na verdade, gosto do verde. O meu nascimento foi um produto do turismo e da diplomacia; meu pai fora designado para uma missão comercial argentina na Bélgica e como acabava de se casar, levou minha mãe para Bruxelas. Aconteceu que nasci naqueles dias da ocupação de Bruxelas pelos alemães, ao início da Primeira Guerra Mundial. Estava com quase quatro anos, quando a minha família conseguiu voltar para a Argentina. Eu falava quase apenas em francês e dele conservo o ‘r’ na minha pronúncia, de que não consegui jamais me afastar. Cresci em Bánfield, um vilarejo nos subúrbios de Buenos Aires, numa casa com um jardim cheio de gatos, cachorros, tartarugas e. 14.

(15) papagaios: o paraíso. Mas, naquele paraíso, eu era Adão, o que quer dizer, que não tenho lembranças felizes daquela época, muito constrangimento, uma sensibilidade excessiva, uma tristeza freqüente, asma, braços quebrados, os primeiros amores desesperados, LOS VENENOS é muito autobiográfico. Estudos em Buenos Aires: escola secundária concluída em 1932. Professor de segundo grau, em 1935. Primeiros empregos: disciplinas em vilarejos e cidades do interior, de passagem por Mendoza, entre 1944 e 1945, depois de ter trabalhado no ensino de segundo grau, durante sete anos. Pedi demissão por causa da frustração do movimento anti-peronista, com o qual estava envolvido. Voltei para Buenos Aires. Já havia passado dez anos desde que começara a escrever, mas não publicava nada, ou quase nada (o livrinho de sonetos, talvez um conto). Entre 1946 e 1951, vida portenha, solitário e independente, convencido de ser um solteiro irredutível, amigo de poucas pessoas, melômano, apaixonado pelo cinema, pequeno burguês cego diante de tudo o que acontecia para além da esfera do estético. Tradutor público. Um grande ofício na minha vida naquela época, egoistamente na solidão e na independência. 2. As próprias palavras de Julio Cortázar (1914-1984) iniciam a dissertação, estratégia que tenta salientar os traços do universo literário, fantástico e metafísico do autor. Ao falar da voz do escritor latino-americano Julio Cortázar, fazemos alusão a uma vasta produção, cuja característica singular é a de ser uma narrativa tingida pelas marcas do coloquial. O leitor cortazariano debruça-se num discurso literário que se apresenta sob o formato de um diálogo infatigável narrador-leitor, sendo todos esses traços construtores de uma literatura flutuante sobre as orillas do rio, as margens das águas. Literatura flutuante na vacilação, ou na perturbação, entre duas realidades fantásticas (no que se refere aos contos da primeira produção narrativa cortazariana), duas ordens justapostas no mesmo plano, paralelas, convergentes e, ao mesmo tempo opostas.. Esse sentimento do fantástico, como eu gosto de chamar, já que acredito que se trata de um sentimento, além de ser um pouco visceral, esse sentimento me acompanha desde o início da minha vida [...] desde criança, recusei-me a aceitar a realidade tal como pretendiam [...] explica-la meus pais e meus mestres. Vi sempre o mundo de uma maneira diferente, senti sempre que entre duas coisas que parecem perfeitamente delimitadas e separadas, existem espaços através dos quais,. 2. Carta de Julio Cortázar a Graciela Maturo enviada de Paris, em 4 de novembro de 1963, e incluída no livro “Julio Cortázar y el hombre nuevo” de Maturo.. 15.

(16) [...] fluía um elemento, que não podia se explicar com leis, que não podia se explicar com lógica [...].3 [...] Quase todos os contos que tenho escrito pertencem ao gênero chamado fantástico diante da falta de um melhor nome, e eles se opõem a esse falso realismo que consiste em acreditar que todas as coisas podem se descrever e se explicar, conforme o otimismo filosófico e científico do século XVIII, isto é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, de princípios, de relações de causa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem cartografadas. No meu caso, a suspeita de outra ordem mais secreta e menos comunicável, e a fecunda descoberta de Alfred Jarry, para quem o verdadeiro estudo da realidade não residia em leis, mas nas exceções a essas leis, têm sido alguns dos princípios orientadores da minha busca pessoal de uma literatura à margem de todo realismo demasiado ingênuo [...].4. 2.2 De outros lados. Ao longo de sua obra, Julio Cortázar constrói representações que traduzem a sua ideologia e a cultura, o seu lugar de fala, trazendo marcas do ser rio-platense, a fala local do portenho com vivências duplas (dos orillas/duas margens), com imagens sempre entrecortadas pelas vivências parisienses. Os traços textuais com movimentos lingüísticos e jogos polifônicos trazem um sujeito duplo, que se revela na collage de imagens do Rio de La Plata e de Paris.. 3. http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz5.htm. El sentimiento de lo fantástico. Conferencia en la U.C.A.B. Minha tradução de: Ese sentimiento de lo fantástico, como me gusta llamarle, porque creo que es sobre todo un sentimiento e incluso un poco visceral, ese sentimiento me acompaña a mí desde el comienzo de mi vida, desde muy pequeño, [...] me negué a aceptar la realidad tal como pretendían [...] explicármela mis padres [...]. Yo vi siempre el mundo de una manera distinta, sentí siempre, que entre dos cosas que parecen perfectamente delimitadas y separadas, hay intersticios por los cuales, para mí al menos, pasaba, se colaba, un elemento, que no podía explicarse con leyes, que no podía explicarse con lógica, [...]. 4 http://www.ucm.es/info/especulo/numero34/bestiari.html. Minha tradução de: Casi todos los cuentos que he escrito pertenecen al género llamado fantástico por falta de mejor nombre, y se oponen a ese falso realismo que consiste en creer que todas las cosas pueden describirse y explicarse como daba por sentado el optimismo filosófico y científico del siglo XVIII, es decir, dentro de un mundo regido más o menos armoniosamente por un sistema de leyes, de principios, de relaciones de causa a efecto, de psicologías definidas, de geografías bien cartografiadas. En mi caso, la sospecha de otro orden más secreto y menos comunicable, y el fecundo descubrimiento de Alfred Jarry, para quien el verdadero estudio de la realidad no residía en las leyes, sino en las excepciones a esas leyes, habían sido algunos de los principios orientadores de mi búsqueda personal de una literatura al margen de todo realismo demasiado ingenuo. (CORTÁZAR, Julio. Obra crítica/2, Madrid: Alfaguara. 1994, p. 365-385).. 16.

(17) 2.3 Do lado de cá. A desembocadura do Rio de la Plata divide Buenos Aires e Montevidéu.. 2.4 Do lado de lá. Paris, rio Sena. 17.

(18) Tais especificidades, quanto aos traços que podem definir o ser Julio Cortázar – narrador homodiegético – podem impor dificuldades ao leitor-tradutor, que se encontra inseridas num outro lugar de fala, e que se propõe a recriar o imaginário rioplatense, a ideologia de intelectual latino-americano, além da cultura do autor. Julio Cortázar, na sua dupla origem “belgo-argentina”, embora tenha morado os últimos 33 anos da sua vida na França, tem características que o definem como escritor latino-americano de fala portenha, a partir do seu compromisso político e sentimental com Cuba e a Nicarágua. Ao longo da extensa produção, a narrativa de Cortázar apresenta mudanças quanto às escolhas estéticas e discursivas. A primeira quebra na evolução narrativa pode ser observada em El Perseguidor (conto incluído na coletânea Las armas secretas) no qual Cortázar se afasta da narrativa fantástica, construindo um discurso a partir de um olhar introspectivo, voltado para o homem, o próximo, o Outro. Cortázar declara que “tinha olhado muito pouco”5 para o gênero humano até escrever El Perseguidor. A partir desse conto, encontra a voz discursiva definitiva – quanto à busca metafísica – explicitada a partir da personagem principal (Johnny Carter) e também de todos os protagonistas que serão “os perseguidores” na procura de “algo” que dê sentido à vida. Cortázar encontra na prosa o sentido essencial e se torna um escritor comprometido. A segunda etapa inicia-se em 1961, quando realiza sua primeira visita a Cuba, onde tomará consciência do “[...] meu grande vazio político, da minha inutilidade política. A partir desse dia tratei de documentar-me, tentei entender, ler [....]”.6 Naquele momento, nascia um outro escritor. El libro de Manuel7 seria testemunho dessa mudança, e a recepção da obra, associada ao sintoma de desconfiança provocada tanto na direita, quanto na esquerda, estimulariam Cortázar para a reflexão e a transformação. Os novos rumos inesperados na obra do escritor refletem-se como um eixo de toda a sua produção literária e ensaística. Durante os primeiros dez anos das três décadas de exílio político voluntário, em Paris, iniciados em 1951, o escritor descobre 5. http://www.literatura.org/Cortazar/escritos/charla.html. Minha tradução de: “había mirado muy poco”. ”. Juego y compromiso. Conversación de Omar Prego con Julio Cortázar. 6 Ídem. Minha tradução de: “mi gran vacío político, de mi inutilidad política. Desde ese, día traté de documentarme, traté de entender, de leer”. 7 CORTÁZAR, 1973.. 18.

(19) sua ligação afetiva com a América Latina, na condição de intelectual latino-americano, apesar da distância física.. Eis um trecho de uma das mais conhecidas cartas para o poeta Roberto Fernández Retamar que pode servir como testemunho do processo de mudança e de compromisso de Cortázar: [....] Na verdade, não lhe parece paradoxal que um argentino quase inteiramente voltado para a Europa na sua juventude, a ponto de queimar as naves e partir para a França, sem nenhuma idéia precisa do seu destino, tenha descoberto aqui, depois de uma década, a sua verdadeira condição de latino-americano? [...] se tivesse ficado na Argentina, meu amadurecimento como escritor fosse traduzido de uma outra maneira, provavelmente mais perfeita e satisfatória para os historiadores da literatura, mas certamente menos desafiante, provocadora e fraternal para aqueles que lêem meus livros por razões vitais e não com vistas à ficha bibliográfica ou à classificação estética [...].8. 2.5 O Puzzle de um Perseguidor. Embora se observem duas etapas, quanto ao tratamento discursivo, aquela primeira “burguesa”, fantástica, onírica e a segunda “metafísica”, de compromisso e testemunho, o narrador é um ser único, dividido pela procura dupla, navegando entre duas margens, recriando o seu mundo de representação em caleidoscópio. Jean Starobinski, ao analisar a obra de Jean-Jacques Rousseau, oferece-nos uma outra via de leitura e interpretação da escrita cortazariana: [....] A dificuldade para Rousseau (para Julio) consiste em encontrar uma linguagem que seja fiel ao sabor incomparável da experiência pessoal, inventar uma escrita bastante maleável e bastante variada para dizer da diversidade, das contradições, dos detalhes ínfimos, dos ‛nadas’, do encadeamento das ‛pequenas percepções’ cujo tecido constitui a existência única de Jean-Jacques (de Julio). Ele vai então procurar um 8. http://www.literatura.org/Cortazar/escritos/intelectual.html. Minha tradução de: [...] ¿No te parece en verdad paradójico que un argentino casi enteramente volcado hacia Europa en su juventud, al punto de quemar las naves y venirse a Francia, sin una idea precisa de su destino, haya descubierto aquí, después de una década, su verdadera condición de latinoamericano? [...]si me hubiera quedado en la Argentina, mi madurez de escritor se hubiera traducido de otra manera, probablemente más perfecta y satisfactoria para los historiadores de la literatura, pero ciertamente menos incitadora, provocadora y en última instancia fraternal para aquellos que leen mis libros por razones vitales y no con vistas a la ficha bibliográfica o la clasificación estética. [...]. 19.

(20) estilo apropriado a seu objeto, e esse objeto não é nada de exterior, nada ‛de objetivo’; é o eu do escritor, sua existência pessoal, em sua infinita complexidade e em sua diferença absoluta. O homem, aqui, quer expressamente se confiar a uma linguagem que o represente e na qual poderá reconhecer sua própria substância. [...] 9. Escolhas, trânsitos, migrações geográficas, sentimentais e discursivas, jogos/imagens, estéticas e estratégias lingüísticas são fatores essenciais no mundo cortazariano de representações, tradutores do “eu” de um narrador que encontra na frase, tonalidades e música, traços ideológicos e culturais do autor. O intelectual, romancista e poeta Julio Cortázar vê-se influenciado por duas tendências às quais se filia dentro do contexto da literatura moderna: o surrealismo e o existencialismo. A interseção entre esses dois movimentos artísicos-literários é um nítido sintoma de atualidade na Buenos Aires do pós-guerra. Cortázar deixa-se levar pelas estéticas propostas pelas duas correntes, mas também sente profunda admiração pelos escritos de Lautréamont e Baudelaire. Eis que Os cantos de Maldoror (do conde de Lautréamont) e Uma temporada no inferno (de Arthur Rimbaud) são, segundo Cortázar, mergulho na consciência enigmática e exploração da super-realidade. Para Cortázar, ambas as obras conseguem a fusão completa entre romance e poema, inquietação singular na progressão da escrita cortazariana que se inicia no poema e atinge, no romance, um novo modelo de narrativa. Segundo Cortázar, Os cantos de Maldoror e Uma temporada no inferno constituem auto-indagações sobre a realidade última do homem. São, à sua maneira, modelos de romances autobiográficos. Daí Rayuela (O Jogo da Amarelinha) apresentar profundas marcas da influência daqueles dois poetas franceses, tornando-se, segundo apreciações de Cortázar, o romancepoema: tentativa de abolição dos limites entre o narrativo e o poético, gerando um texto dotado de uma dupla propriedade ou potência comunicativa, sendo ao mesmo tempo uma chave de acesso ao humano. Esse amálgama vincula-se à visão surrealista. Não obstante, Cortázar não se conforma com o aspecto poético que o surrealismo lhe oferece e procura, no romance, uma indagação: trata-se do romance como ato de consciência, uma auto-análise. E Cortázar quer torná-lo portador de interrogações sobre o destino e o sentido.. 9. STAROBINSKI, 1991, p.198-199. Grifos meus.. 20.

(21) Outorga-lhe uma razão social; não a gregária ou a vicária (duas palavras que reitera até transformá-las em tiques léxicos), não a individual, nem a servil. Sabe que quando escreve acolhe, escolhe e projeta valores suprapessoais, sabe que com seus textos produz bens sociais. Eles lhe permitem superar sua solidão, estabelecer com os outros o contato válido que contribua para originar uma autêntica comunidade. Escrever, para Cortázar, constitui uma tentativa de conquista (ou compreensão) do real. A boa literatura encarna para ele uma forma de ação (não a ação das formas, e sim as formas da ação); daí a escolha do existencialismo como teorética de sua práxis romanesca. O existencialismo o incita a assumir sua precariedade, a se maravilhar por existir e a se assumir por inteiro, a encontrar por si mesmo a maneira de participar de uma realidade que não cessa de se construir e de constituí-lo. 10. 2.6 Maravilhosas ocupações. Cortázar, ‛o inconformista’, o contestador da literatura confinada às belas artes, lança-se à procura de uma escrita como testemunho do vínculo entre pessoa e mundo, numa busca que supera não só o literário, mas também o lingüístico. Cortázar postula uma literatura rebelde: ela deve ser expressão total do homem. Quer assentar o seu ser na letra. A literatura, segundo Cortázar, “tem que se manifestar como o modo verbal de ser do homem,. 11. [...] pelejando nessa linguagem de máxima implicação. pessoal, que transcende o verbal para virar totalidade humana.”12 No prefácio à edição dos Contos Completos 1, o romancista peruano Mario Vargas Llosa faz uma abordagem singular do mundo estético de Julio Cortázar. Em Julio, a literatura parecia se dissolver na experiência do dia-a-dia e impregnar a vida toda, animando-a e enriquecendo-a com um fulgor particular sem privá-la de seiva, de instinto, de espontaneidade. [...] Para ele, escrever era jogar, se divertir, organizar a vida – as palavras, as idéias – com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a irresponsabilidade como o fazem as crianças e os loucos. [...] Não é a toa que [...] o mais ambicioso de seus romances tenha como título O Jogo da Amarelinha, um jogo de crianças.13 10. In: Saúl Yurkievich, 1998, p. 19. Idem, 1998, p. 16 12 Idem, p. 17 13 CORTÁZAR, Cuentos Completos 1, 1994, p. 15. Minha tradução de: En Julio la literatura parecía disolverse en la experiencia cotidiana e impregnar toda la vida, animándola y enriqueciéndola con un fulgor particular sin privarla de savia, de instinto, de espontaneidad. [...] Para él escribir era jugar, divertirse, organizar la vida –las palabras, las ideas- con la arbitrariedad, la libertad, la fantasía y la irresponsabilidad con que lo hacen los niños y los locos. [...] No es casual que [...] la más ambiciosa de sus novelas llevara como título Rayuela, un juego de niños. 11. 21.

(22) O jogo é uma forma de ficção, uma representação de algo ilusório que substitui a vida. O mundo discursivo cortazariano é distração, divertimento, fabulação, “o jogo é também um recurso mágico para conjurar o medo atávico do ser humano à anarquia secreta do mundo, ao enigma da sua origem, condição e destino”.. 14. Para. Cortázar o jogo é também refúgio para a sensibilidade e a imaginação. “Seus jogos com raciocínios contra o pré-fabricado, as idéias congeladas pelo uso e o abuso, os preconceitos e a solenidade, a negra fera de Cortázar, quando criticava a cultura e a idiossincrasia do seu país”.. 15. O jogo, os jogos, já que na verdade, na obra de Cortázar. jogam o autor, o narrador, as personagens e joga também o leitor, que se debruça num narrador-prestidigitador que colhe palavras, inventa-as dando-lhes vida e humor, pulando entre o Céu e o Inferno no inefável jogo da amarelinha.. 2.7 O canto dos cronópios. Portanto, poderia afirmar-se que a narrativa cortazariana se caracteriza singularmente pela diversidade lingüística, e também pela diversidade de linguagens. Linguagens que traduzem as vastas influências refletidas na narrativa: trata-se de músicas ouvidas e vivenciadas pelo narrador (e pelo autor), de frases-poemas (e poemas musicais) de outros escritores e músicos. Aprecia-se, nas citações de diferentes contos e romances, um tecido textual organizado por diferentes línguas, que coabitam no discurso ficcional, como traço tradutor de Julio Cortázar, escritor argentino-belga, tradutor de inglês, no exílio francês. Para ilustrar a diversidade lingüística mencionada, pode-se apreciar, no livro Um tal Lucas, o capítulo Lucas, suas errantes canções. Trata-se de um texto organizado a partir de outras vozes/línguas, neste caso, da letra de uma canção de jazz, em inglês, que o narrador está ouvindo ou recordando. Constrói-se, assim, uma narrativa de. 14. CORTÁZAR, Cuentos Completos 1, 1994, p. 15. Minha Tradução de: [...] el juego es también un recurso mágico para conjurar el miedo atávico del ser humano a la anarquía secreta del mundo, al enigma de su origen, condición y destino. 15 Ídem, p. 16. Minha tradução de: Sus juegos con alegatos contra lo prefabricado, las ideas congeladas por el uso y el abuso, los prejuicios y la solemnidad, bestia negra de Cortázar cuando criticaba la cultura y la idiosincrasia de su país.. 22.

(23) testemunho sentimental das vivências do narrador (e do autor), que nos traz as suas frustrações e vitórias: [....] Ethel Waters despedia-se do filho [....] “There’s a mother always waiting for you at home, old sweet home” [...] Claro, doutor Freud, a aranha e tudo isso. Mas a música é uma terra de ninguém [...] só importa uma voz murmurando as palavras da tribo [...] “And if you get in trouble, Jim, just write and let me know”. Tão fácil, tão belo, tão Edil Walters. Just write, claro. O problema é o envelope. Que nome, que endereço é preciso pôr no envelope, Jim? [...].16. 2.8 Alegria e tristeza do Cronópio. Observa-se a mesma estratégia em ensaios de autoria cortazariana nos quais, ao se auto-descrever, salientando suas extravagâncias e as características singulares de sua personalidade e de sua vida, Cortázar utiliza versos de Edgar A. Poe, para melhor ‘ilustrar-se’. Trata-se de versos do outro que o traduzem e tornam-se seus. Desde muito pequeno assumi, com os dentes cerrados, essa condição que me separava de meus amigos e por outro lado os atraía para o raro, o diferente, o que metia o dedo no ventilador. Não estava privado de felicidade; a única condição era coincidir às vezes (o camarada, o tio excêntrico, a velha louca) com outro que tampouco calçasse certo o seu número, e claro não era fácil; mas logo descobri os gatos, em que podia imaginar minha própria condição, e os livros onde a encontrava de cheio. Nesses anos poderia dizer-me os versos apócrifos de Poe: From childhood´s hour I have not been As others were; I have not seen As others saw; I could not bring My passions from a common spring – Mas o que para o virginiano era um stigma (luciferino, mas por isso mesmo monstruoso) que o isolava e condenava, And all I loved, I loved alone não me divorciou daqueles cujo redondo universo só tangencialmente compartia. Hipócrita sutil, aptidão para todos os mimetismos, ternura que ultrapassava os limites e me dissimulava; as surpresas e as aflições da primeira idade coloriam-se de ironia amável. 17 O pluriculturalismo do escritor é acrescido do componente francês. Em 1981, recebeu, do então presidente francês François Miterrand, a nacionalidade francesa, em reconhecimento e agradecimento pelo seu trabalho literário. A partir dessa época,. 16 17. CORTÁZAR, 1982, p. 293-294 CORTÁZAR, Valise do cronópio. 1974, p. 168. 23.

(24) Cortázar decidiu não apenas morar na França, mas também desenvolver uma vasta produção literária, estendida às traduções, nesse país.. Julio Cortázar permanece, porém, um indivíduo de todos os lugares e, ao mesmo tempo, de nenhum lugar – “moro onde me dá vontade”. 18. – apesar das. profundas raízes portenhas. Cortázar delineia-se a partir de um exílio, de uma tentativa de atingir o seu ‘Céu’, como aquele de O Jogo de Amarelinha, e a partir da busca constante de todos os protagonistas dos seus contos que tentam encontrar algo que dê sentido à vida. ...o kibbutz do desejo [...] é um resumo de andar dando voltas por aí, de rua em rua [...] kibbutz, lugar eleito para erguer a barraca final [...] para unir-se ao mundo, à Grande Loucura, à Imensa Burrice, abrir-se à cristalização do desejo, ao encontro. 19 Como já mencionado, a obra literária de Julio Cortázar se constrói através de uma linguagem repleta de jogos, de cruzamentos lexicais, semânticos, fonológicos, sempre transgressores das normas gramaticais, de neologismos, de um “glíglico”. 20. em. jogo erótico. Elementos todos construtores de cultura, de ideologia e de um estilo que pode constituir um desafio para o tradutor, na condição de leitor, que se vê diante da tarefa de captar a forma, o sabor do “rio”, do tango, da melancolia. O ficcionista Cortázar põe em movimento elementos da linguagem, quebrando e subvertendo a realidade, organizando um universo regido pelo ‘duplo’, para chegar à outra margem, à outra orilla, tentando jogar os leitores no centro do ‘labirinto’: as viagens entre as orillas se sucedem entre Buenos Aires e Paris, atravessando o Atlântico; entre Buenos Aires e Montevidéu, atravessando o Rio de la Plata; entre a Terra e o Céu, atravessando a narrativa de O Jogo de Amarelinha; entre um personagem e o seu duplo; entre duas realidades fantásticas, duas ordens justapostas no mesmo plano e a suspeita de outra ordem mais secreta e menos comunicável. O narrador cortazariano, perpassado pela linguagem, dividido pela dupla procura, recria o seu objeto textual quebrado, construído às vezes, apenas por frases 18. http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz4.htm. Minha tradução de: habito donde me da la gana 19 CORTÁZAR, O Jogo da Amarelinha. 1974, p. 181 20 Língua inventada por Cortázar usada especialmente em Rayuela, mas também em outros contos. Tratase de um léxico que compõe passagens de alto conteúdo sensual, especificamente no capítulo 68 de Rayuela.. 24.

(25) inconclusas que ficam praticamente penduradas no parágrafo. Em O Jogo de Amarelinha, por exemplo, o leitor encontra, no final do capítulo 127, a expressão ‘solta’: “A menos que”. Nada mais. Adiante, no Capítulo 32, a Maga, dirigindo-se ao menino morto, diz: “Parece incrível que alguma vez, Rocamadur”. No Capítulo 36, na conversa com a clocharde: “Se Célestin estivesse ali, certamente que. Claro que. Célestin: infatigável”. Para Cortázar, a arte e o pensamento convencionais são insuportáveis, daí a sua procura de “ordem na desordem”. Daí O Jogo de Amarelinha com sua complexidade e sofisticação, onde Paris se torna um subúrbio de Buenos Aires: a voz do personagem Horácio ilustra a figura: - Você não sente como nós, a cidade como uma enorme barriga que oscila lentamente debaixo do céu, uma gigantesca aranha com as patas em... [menciona bairros de Buenos Aires]…, e as outras metidas na água, pobre animal, com toda a sujeira que é esse rio. 21. 2.9 A outra margem. Percebe-se, portanto, a construção de uma particularidade presente em quase toda a obra de Julio Cortázar: o duplo. Paris x Buenos Aires, o rio de La Plata x o rio Sena, as pontes, um lado e outro das margens dos rios e do oceano que separam lugares de vivência do próprio autor e que se tornam as chamadas dos orillas, que terminam por construir um caleidoscópio, um movimentado jogo proposto pelo ficcionista em sua obra e para o qual o leitor é convidado a participar. O duplo, que se revela nos textos é, portanto, resultado da vivência do autor, que transita entre as duas margens literais e metafóricas. Em entrevista a Ernesto González Bermejo, Cortázar lembra de uma experiência vivida sob efeito de um medicamento para a cura de uma doença: Certo dia [...] eu ia caminhando pela Rue de Rennes e percebi – sem arriscar-me a olhar – que eu mesmo estava me acompanhando na minha caminhada. [...] com uma sensação de horror, senti-me desdobrar fisicamente. Conseguia, porém, raciocinar com lucidez: entrei num bar,. 21. CORTÁZAR. Trad. Fernando de Castro Ferro, 1974, p. 271. Texto de Julio Cortázar, 2003, p. 384: Rayuela: “No sentís como nosotros a la ciudad como una enorme panza que oscila lentamente bajo el cielo, una araña enormísima con las patas en San Vicente, en Burzaco, en Sarandí, en el Palomar, y las otras metidas en el agua, pobre bestia, con lo sucio que es este río”.(Cap. 40). Grifos meus.. 25.

(26) pedi um café e o bebi rapidamente. Fiquei esperando e, de repente, percebi que já podia olhar que eu já não estava ao meu lado. 22 O duplo é uma obsessão fortemente presente na narrativa cortazariana e, singularmente, no conto A Distante (Lejana), que faz parte do livro Bestiário, escrito entre 1947 e 1950. Segundo palavras do autor, na entrevista já mencionada23, já naquele conto, o duplo não era influência de outros autores, mas resultado de sua própria experiência de vida, refletida também em outros de seus contos. O conto faz parte do corpus desta dissertação, já que fundamenta e ilustra a figura do duplo como elemento de extrema importância na narrativa de Julio Cortázar. Porém, A Distante é apenas um dos exemplos com relação ao tratamento do duplo na vasta produção do autor. Em outros contos, tais como O outro céu e Axolotl, pode-se também observar a sua construção, numa espécie de ‘obsessão’ cortazariana. Portanto, seguem-se análises dos textos escolhidos.. 22. http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz4.htm. Conversaciones con Cortázar [Fragmentos] Ernesto González Bermejo. Minha tradução de: Un día [...] yo estaba caminando por la rue de Rennes y en un momento dado supe - sin animarme a mirar - que yo mismo estaba caminando a mi lado; [...], con una sensación de horror espantoso, sentía mi desdoblamiento físico. Al mismo tiempo razonaba muy lúcidamente: me metí en un bar, pedí un café doble amargo y me lo bebí de un golpe. Me quedé esperando y de pronto comprendí que ya podía mirar, que yo ya no estaba a mi lado. 23 http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz4.htm.. 26.

(27) Capítulo 3 Todos os contos o conto. 3.1. Axolotl. Para Cortázar, o eu é sempre passagem, um ser inevitavelmente incompleto que busca sem cessar a complementaridade. Nos seus contos, todos os parâmetros da percepção se modificam a serviço dessa busca permanente. As suas personagens assistem impotentes, à desintegração do tempo, do espaço e, sobretudo, da sua própria identidade. O eu uno é uma impossibilidade assumida e a transferência de identidade parece ser uma estranha forma de aperfeiçoamento do ser. É o que sucede em dois contos singulares: Axolotl (da coletânea Final del juego) e A Distante, em que a impossibilidade do eu torna-o passagem para outro, passagem que desemboca numa inversão total das perspectivas e faz do observador o observado. Em Axolotl, o conto começa com uma terrível afirmação: Houve uma época em que eu pensava muito nos axolotl. Costumava ir vê-los ao Aquário do Jardin des Plantes e passava horas inteiras a olhar para eles, a observar a sua imobilidade, os seus movimentos obscuros. E agora sou um axolotl. 24 Todo o conto não será mais do que a evocação desta insólita transferência. Lentamente, o narrador vai ficando hipnotizado por aqueles pequenos seres que descobriu um dia no aquário do Jardin des Plantes e, à guisa de visita-los diariamente, estabelece com eles um diálogo mudo, obcecado pela idéia de que gostariam de se comunicar com ele, de que haveria neles qualquer coisa de terrivelmente humano:. Não há nada de estranho nisso, logo desde o primeiro instante eu senti que alguma coisa me ligava a eles, algo muito longínquo e esquecido, que, no entanto, continuava a nos unir […]. Creio que era a cabeça dos axolotl, essa sua forma triangular rosa e dos seus olhinhos de ouro. Aquilo olhava e sabia. Aquilo reclamava. Não eram animais. […]. 25 24. CORTÁZAR, Cuentos Completos 1, 1994, p. 381. Minha tradução de: Hubo un tiempo en que yo pensaba mucho en los axolotl. Iba a verlos al acuario del Jardin de Plantes y me quedaba horas mirándolos, observando su inmovilidad, sus oscuros movimientos. Ahora soy un axolotl. 25 CORTÁZAR, Cuentos Completos 1, 1994, p. 381/383. Minha tradução de: No hay nada de extraño en esto, porque desde un primer momento comprendí que estábamos vinculados, que algo infinitamente. 27.

(28) À medida que a narração avança, avança também o processo de osmose que irá transformar o narrador num axolotl. Primeiro, através do nome desses estranhos seres, já que o autor nos lembra de que axolotl, palavra de origem mexicana, significa larva e que larva, em latim, significa também máscara ou fantasma. Máscara ou fantasma de quem, senão dele próprio? Eis o tal abismo insondável que eles escondem, o tal mistério que o unia a eles, e que vinha de tão longe. Eles sabiam e reclamavam sua presença, do fundo do seu silêncio inquietante, reclamavam-no como um deles. Eis a terrível revelação. Mas o fantástico de Cortázar insinua-se também de forma extremamente sutil, nas entrelinhas, criando pequenas brechas, que desmontam completamente o cotidiano, como a mudança de perspectiva narrativa que, sem transição alguma, passa do ponto de vista do narrador para a primeira pessoa do plural, um “nós” inesperado que engloba o narrador e os axolotl numa só e mesma pessoa. Há uma espécie de estranha solidariedade entre os dois lados do aquário, fundada num mútuo reconhecimento. O desdobramento acontece, porque existe um inquietante relacionamento entre o homem e o animal que torna possível, neste caso não só uma metamorfose, mas também uma transferência de identidade. O último parágrafo do conto inverte totalmente as perspectivas, deixando o leitor estupefato perante tão incrível paradoxo. Desta vez, é o narrador que se encontra no aquário e pensa no homem que, de vez em quando, o vem visitar, cada vez menos, agora, já liberto da sua terrível obsessão. O fantástico de Cortázar tem traços de ironia. Agora o narrador, transformado em axolotl, termina com o desejo de que o homem escreva sobre eles, ou melhor, sobre “nós”, os axolotl. Fecha-se o ciclo. O texto termina, justamente, por onde já tinha começado, o início hipotético da história dos axolotl: Agora sou definitivamente um axolotl, e se penso como um homem é apenas porque todo axolotl pensa como homem dentro da sua imagem de pedra rosa. Acho que, de certa forma, consegui comunicar-lhe tudo isto, nos primeiros dias, quando eu era ainda ele. E nesta solidão final para a qual ele não voltará mais, resta-me o consolo de pensar que talvez ele escreva qualquer coisa sobre nós; vai pensar que inventa um conto e vai escrever tudo isso sobre os axolotl. 26. perdido y distante seguía sin embargo uniéndonos. […] Yo creo que era la cabeza de los axolotl, esa forma triangular rosada con los ojillos de oro. Eso miraba y sabía. Eso reclamaba. No eran animales. 26 CORTÁZAR, Cuentos Completos 1, 1994, p. 385. Minha tradução de: Ahora soy definitivamente un axolotl, y si pienso como un hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre dentro de su imagen de piedra rosa. Me parece que de todo esto alcancé a comunicarle algo en los primeros días, cuando yo era todavía él. Y en esta soledad, a la que él ya no vuelve, me consuela pensar que acaso va a escribir sobre nosotros, creyendo imaginar un cuento va a escribir todo sobre los axolotl.. 28.

(29) Esquema análogo desenvolve-se em A Distante.. 3.2. A Distante. Como já antecipado, os contos cortazarianos apresentam influências de outros autores que abordaram a narrativa com a figura do duplo. Porém, no conto A Distante, e segundo as palavras de Cortázar, as marcas de intertextualidade não se evidenciam: Não acredito que se trate de uma influência literária. Quando escrevei esse conto [...] A Distante, entre 1947 e 195, [...] essa noção do duplo, não era [...] uma contaminação literária. Era uma vivência.. 27. Em A Distante, uma das personagens, Alina Reyes, la pituca ou grã-fina de Buenos Aires, vislumbra-se em um outro país distante, a Hungria, como uma mulher diferente, numa outra situação econômica: ao invés da rica que é, vê-se mendiga. Assim, toda vez que Alina percebe, como num sonho, a presença da sua ‘outra’, do seu duplo, percebe uma mulher pobre e maltratada, padecendo frio, em Budapeste. No conto, a personagem transforma-se na mendiga e a mendiga se torna a ‘rainha’. Tudo se funde no frio e na neve. Os sapatos furados, o vestido cinza. Lindíssima. Segundo o próprio Cortázar: [...] a mendiga sai de dentro do corpo maravilhosamente vestido da “pituca”, enquanto a rica fica na ponte transformada em mendiga [...] trata-se de uma grã-fina de Buenos Aires que tem, por momentos, uma espécie de visão. Ela não está apenas em Buenos Aires, mas também em um outro país muito distante onde tudo é o contrário: lá, ela é uma mulher pobre, uma mendiga. Pouco a pouco, a mulher vai imaginando quem poderia ser a outra mulher, até que vai procurá-la e a encontra em uma ponte e se abraçam. E aí se produz a mudança no interior do duplo. A mendiga vai embora com o corpo maravilhoso coberto de peles e a grã-fina fica na ponte como uma mendiga esfarrapada [...]28. 27. http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz4.htm. Minha tradução de: No creo que se trate de una influencia literaria. Cuando yo escribí ese cuento [...], "Lejana", entre 1947 y 1950, [...] esa noción de doble no era [...] una contaminación literaria. Era una vivencia. 28 http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz4.htm. Minha tradução: “[...] la mendiga sale del cuerpo del cuerpo maravillosamente vestido da la pituca, mientras que la rica fina se queda en el puente transformada en mendiga […] se trata de una pituca de Buenos Aires que tiene, por momentos, una especie de visión Ella no está sólo en Buenos Aires, sino también en otro país muy lejano donde todo es opuesto: allí, es mujer y pobre, una mendiga. Poco a poco, la mujer imagina quién podría ser la otra mujer, hasta que va a buscarla y la encuentra en un puente y se abrazan. Y se produce el cambio dentro del doble. La mendiga parte con el cuerpo maravilloso cubierto de pieles e la pituca se queda en el puente como una mendiga andrajosa.”. 29.

(30) A personagem Alina Reyes coloca o problema do desafio ao destino, à luta entre ela ‘rainha’ e a mendiga abatida pelo frio, numa ponte de Budapeste. Escrito a partir de dois pontos de vista narrativos diversos – em forma de diário e em seguida a partir de um narrador onipresente – o conto joga com a ambivalência de desejo de proteção e auto-piedade: [...] E Nora que diz dormir com luz, com barulho, entre os apressados relatórios de sua irmã em meio do despir-se. Que felizes são, eu apago as luzes e as mãos, dispo-me aos gritos da lufa-lufa diária, quero dormir e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a corrente que Rex arrasta toda a noite contra as alfenas. Now I lay me down to sleep... [...] 29 Como em outros contos, há a presença alegórica da ponte. Em O Jogo da Amarelinha, por exemplo, enquanto o personagem Horácio observa o rio a partir de uma ponte, a personagem Maga o adverte de que se afogará em ‘rios metafísicos’. Em A Distante depara-se o leitor com uma outra ponte, desta vez sobre o Danúbio, um rio gelado, envolto em vento, onde a mendiga espera a rainha, o seu duplo. A própria personagem, Alina vê-se forçada a definir o seu direito à existência, entre duas ‘orillas’: se existe como alguém que vai ao concerto ouvir Chopin, ou se é mendiga maltratada em Budapeste, congelada pelo vento do rio. Alina Reyes odeia e ama ao mesmo tempo. Sentimentos alternados de culpa e castigo, prazer e aflição, no sofrimento da mendiga na ponte, e na rotina sonâmbula do seu mundo aristocrático noturno. O ódio vem sempre à noite e se tece de anagramas e pontes lançadas para Budapeste, a partir de Buenos Aires:. Tenho que repetir versos, ou o sistema de buscar palavras com a, depois com a e e, com as cinco vogais, com quatro [...] a lua desceu [...] a criança olha, olha [...] com três e alternadas, cabala, lagoa, animal [...] Assim passo as horas: de quatro, de três e dois, e depois palíndromos... 30 Mas o encontro tão fantasiado, aquela fusão dos seres assegura a vitória: E as duas mulheres se abraçaram rígidas e caladas na ponte. 31 [...]. 29. CORTÁZAR, 1951, p.29 CORTÁZAR, 1951, p. 29 31 Idem, p. 39 30. 30.

(31) Apertava a magríssima mulher, sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço, com um crescer de felicidade igual a um hino, a um voar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos na fusão total afastando as sensações de fora, a luz crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa da sua vitória, sem celebrá-la por tão sua e finalmente. 32 A Alina rica funde-se na outra, a fusão do duplo se concretiza. A mendiga pobre entra no corpo da burguesa, metamorfoseando-se nela, parte ricamente vestida sem olhar para trás. A Alina nova, sem os seus sapatos furados, mas na vitória: ‘ia lindíssima em seu vestido cinza, um pouco de cabelo solto contra o vento, sem voltar o rosto e seguindo’. Da ponte para a praça. No duplo registro desse conto, a personagem é dotada da consciência do Outro. Os mesmos pés, que sentem o gelo do Danúbio, sentem a neve nos sapatos nas festas de Buenos Aires, ou no salão dos concertos, onde se ouve Chopin. Não se trata restritivamente de um sonho, mas da vigília da insônia, da vigilância objetiva das coisas. Essa certeza ou essa consciência da realidade impõe a vitória da ilusão, sobre a reconciliação ou a fusão dos seres. Essa presença é momentânea, mas constante na narrativa cronológica do diário de Alina. A cena da ponte define e resolve um problema existencial, pondo ao alcance do indivíduo sua possibilidade de continuar vivendo em meio a anagramas e combinações e, simultaneamente, seguir vivendo na fusão com o duplo. 3.3. O outro céu. Embora na década de 40, Cortázar tenha assegurado não ter sido influenciado pelas leituras dos seus autores preferidos, observa-se, na década seguinte, um narrador influenciado pelas leituras fantásticas, especialmente as de Lautréamont e de Edgar Allan Poe, autor em cuja produção literária destaca-se a presença do duplo, como é o caso do conto William Wilson: imagem especular em interação, espelhos/retratos animados, outro ‛eu’. Em “O outro céu” (El otro cielo)33, Cortázar constrói a trama do conto sobre uma montagem dupla. Trata-se de duas histórias, numa narrativa tecida pela voz e pelas 32 33. CORTÁZAR, 1951, p. 39 CORTÁZAR. IN: Todos os fogos, o fogo, 1974.. 31.

(32) vivências de um personagem-narrador homodiegético que percorre dois espaços, duas histórias, duas vidas, num tempo em duplo, onde tudo se funde num ser dividido entre uma visão mágica e a observação dos fatos que compõem a rotina do seu cotidiano. O narrador desloca-se entre duas geografias: Paris e Buenos Aires. Do lado de cá, o trânsito portenho se estabelece no centro da cidade, na tradicional Pasaje Güemes, na Rua Florida. A história contada aconteceu na adolescência do narrador, ao qual se juntam outras personagens, desfilando em diferentes focos ficcionais: na vida de dentro – a casa materna, a mãe do narrador adolescente e sua noiva Irma, que será a mulher do narrador adulto; na vida de fora – as galerias, a Bolsa, as ditaduras, a Segunda Guerra Mundial, a violência social: [...] entrar no desvio prazenteiro do cidadão que se deixa conduzir por suas preferências de rua, e quase sempre meu passeio terminava no bairro das galerias cobertas, talvez porque as passagens e as galerias sempre foram a minha pátria secreta. 34 [...] Aqui, por exemplo, a Pasaje Güemes, território onde já há tanto tempo fui deixar a infância como um terno usado. Por volta do ano vinte e oito, a Pasaje Güemes era a caverna de tesouro em que deliciosamente se misturavam a suspeita do pecado e as pastilhas de hortelã. 35. A frase “e quase sempre meu passeio terminava no bairro das galerias cobertas” anuncia a entrada da outra história: a do lado de lá, a do outro lado, em Paris. As personagens serão as mesmas que as da Galérie Vivenne: Josiane – a prostituta, amante do adolescente; a figura enigmática do sul-americano, o dono do bar e seus fregueses, as demais prostitutas da galérie. Do lado de fora, estão Laurent – o estuprador assassino – a guerra, a violência das ruas: [...] Josiane trabalhava naquele bairro [...] Pode ter sido coincidência, mas tê-la conhecido ali, enquanto chovia no outro mundo, o de céu alto e sem grinaldas da rua, parece-me um sinal que ia além do encontro banal com qualquer prostituta do bairro. 36. Antes de avançar nesta análise, impõe-se uma reflexão sobre a epígrafe do conto, um convite para a leitura do duplo, também a partir da intertextualidade. A 34. CORTÁZAR, IN: Todos os fogos, o fogo, 1974, p. 135. Idem, p. 136. 36 Ídem, p. 137-38. 35. 32.

(33) citação remete a Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont (1846-1870), poeta uruguaio, da otra orilla, naturalizado francês, cujos escritos fantásticos, povoados de perversão, impressionaram Cortázar: Ces yeux ne t´appartiennent pas.... où tu les as pris ? Trata-se do canto IV (entre os VI cantos publicados) de Les Chants de Maldoror (Os Cantos de Maldoror), livro poético escrito entre 1868 e 1869. O poema, dividido em seis cantos, descreve cenas brutais, por vezes de violência extrema, nas quais a crueldade, a maldade, a covardia e a estupidez humana se destacam. O nome da personagem, Maldoror, leva-nos a uma outra leitura: mal- aurore- or, o mal na/da aurora, sob o ouro do sol nascente, na penumbra precursora, características da personagem ficcional que talvez sejam também os traços profundos da personalidade de Ducasse, poeta extremamente criticado pelos contemporâneos, apesar de precursor da literatura fantástica. Daí a grande influência em Cortázar. Como estabelecer o laço, isto é, traçar a ponte entre essas duas orillas: a argentina (embora belga) e a francesa (embora uruguaia)? Torna-se evidente que as origens e vivências em duas geografias reúnem, de maneira particular, as vidas de Cortázar e de Ducasse. A literatura, porém, se apresenta como traço peculiar. Lautréamont (l´autre + a/mont // o outro monte, morro, ou o outro lado) conta as peripécias de Maldoror, personagem movido para o crime como resultado do ódio e da rebeldia adolescente. A história ficcionalizada do lado de lá, na nostálgica Paris das galerias e passagens, convida o leitor a saltar a ponte entre Lautréamont e o texto cortazariano, já que a violência urbana parisiense parece encarnada no assassino e estuprador Laurent, nome cujas letras estão contidas em Lautréamont, personagem fantasmagórica que estrangula as apavoradas vítimas (as prostitutas das galerias, ‛as Josiane’ cortazarianas) nas sombras das noites da Paris, da Galérie Vivienne, numa representação da violência da guerra, do que acontece lá fora, nas ruas. O narrador destaca os horrores que a existência de Laurent causa para as personagens de Paris, nas ruas da cidade. O alívio de Josiane, quando a polícia o prende,. 33.

(34) faz-se sentir a partir de estratégias discursivas. O uso do discurso indireto livre, por exemplo, evidencia o efeito peculiar nas Josiane da galeria: [...] O pior é que ninguém sabia nada de Laurent [...] Toda a teoria veio abaixo quando o dono do café, que milagrosamente ouvia qualquer diálogo, lembrou-nos que ao menos se sabia alguma coisa sobre Laurent: a força que o tornava capaz de estrangular as vítimas com uma mão só. Esse rapaz, qual... . Sim, já era tarde e seria melhor voltar para casa’37 [...]... Até que novamente veio o deslumbramento, fui encontrar Josiane na Galérie Colbert e cientificar-me, entre beijos e abraços, de que Laurent já não existia, de que o bairro havia comemorado noite após noite o fim do pesadelo, de que todo mundo perguntara por mim, ainda bem que Laurent teve fim, mas onde eu estivera metido que não sabia de nada, e tantas coisas mais e tantos beijos. 38. As lembranças da juventude são narradas, em flashback, a partir de um presente datado por volta de 1946, segundo os dados históricos a que o narrador se remete. O narrador da cena portenha, dentro dessa anacronia discursiva, já está adulto, casado com a noiva Irma e fixado na casa da mãe. Vê-se no pátio com plantas em momentos do ritual do mate, no sofá da sala (lugar obrigatório de encontro com a noiva), na Bolsa. Todos, territórios das angústias cotidianas. O percurso parisiense ocorre na Galérie Vivienne, mas num tempo diferente em relação à história portenha, já que o narrador nos conta fatos acontecidos por volta de 1868 (guerra entre a França e a Prússia): [...] eu gostava de caminhar sem rumo determinado, galerias cobertas, onde qualquer espelunca sórdida e empoeirada me atraia mais do que as vitrinas expostas à insolência das ruas abertas. A Galeria Vivienne, por exemplo [...] esse mundo que escolheu um céu mais próximo, de vidros sujos e gessos com figuras alegóricas que estendem as mãos para oferecer uma grinalda, essa Galeria Vivienne a um passo da ignomínia da Rue Réamur e da Bolsa (eu trabalho na Bolsa) [...]39 [...] Felizmente àquela hora a idéia da guerra ia se diluindo na memória de todos, a ninguém ocorria repetir os refrões obscenos contra os prussianos [...] o dono e nós jurávamos eterna amizade e morte aos prussianos [...] 40. 37. CORTÁZAR, IN: Todos os fogos, o fogo, 1974, p. 142. Grifos meus. Idem, p. 154. Grifos meus. 39 Ídem, p. 136-137 40 Idem, p.148/149 38. 34.

(35) O narrador extremamente homodiegético ou autodiegético, conforme Genette41, tal qual Cortázar, foi adolescente em Buenos Aires, em 1914. A narrativa é iniciada, explicitando a sua presença e protagonismo, desenhando um percurso em cadência nostálgica do tempo feliz do passado, na incerteza da perda e na esperança de recuperá-lo:. [...] Acontecia-me às vezes que tudo ia por si mesmo, abrandava–se e cedia terreno, aceitando sem resistência que se pudesse passar assim de uma coisa a outra. Digo que me acontecia, se bem que uma esperança estúpida me faça crer que ainda me pode acontecer. É por isso, se começar a caminhar a esmo pela cidade parece um escândalo quando se tem família e trabalho, há momentos em que torno a perguntar–me se já não seria época de voltar a meu bairro preferido, de esquecer-me dos meus afazeres (sou corretor de Bolsa) e, com um pouco de sorte, encontrar Josiane e ficar com ela até a manhã seguinte [...]42. Nesse primeiro parágrafo, o narrador faz uma apresentação sintética de tudo que será desenvolvido no ato da narrativa. A visão do narrador é percebida como se fosse o olho de uma câmera (Ces yeux...) que esquadrinha a cidade, anda pela vida, deslocando-se do hoje para o ontem, nas lembranças e frustrações: abre a narrativa com o tempo imperfeito, salientando a interação entre as ações no passado e no presente, unindo-o a um outro tempo (aceitando sem resistência que se pudesse passar assim de uma coisa a outra...), de uma outra realidade, galeria, passagem subterrânea ou céu. Porém, já nos parágrafos seguintes, o tecido do campo lexical traduz a dúvida do narrador, quanto às vivências da juventude da Pasaje Güemes, que se torna Galérie Vivienne: [...] Lembro-me dos cheiros e dos sons, algo como uma expectativa e uma ansiedade, o quiosque onde se podiam comprar revistas de mulheres nuas e anúncios de falsas manicuras, e já naquela época eu era sensível a esse falso céu de gesso e clarabóias sujas, a essa noite artificial que ignorava a estupidez do dia e do sol de fora. Observava, com falsa indiferença, através das portas da passagem onde começava o último mistério, os vagos elevadores [...] que conduziram [...] também, mais acima, aos supostos paraísos com mulheres da vida [...]43. 41. GENETTE, s/d, p. 244-245-246-247 CORTÁZAR, IN: Todos os fogos, o fogo, 1974, p. 135 43 Idem, p. 136. Grifos meus. 42. 35.

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