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O outro Sigmund

No documento Julio Cortázar: de pontes e duplos (páginas 71-91)

6. Capítulo Final do jogo

6.3 O outro Sigmund

No que diz às traduções freudianas feitas por Lacan, o psicanalista introduziu diversas categorias conceituais. Embora a importância capital de todas as noções lacanianas inovadoras, a releitura de Lacan da Fase do narcisismo119, será de especial interesse para esta pesquisa, fase conhecida segundo Lacan como O Estádio do

espelho120.

Com relação às idéias introduzidas por Lacan em O Estádio do espelho, Moura Castro salienta que a criança se identifica com a própria imagem refletida no espelho, reconhecendo-se: “[...] nesse reconhecimento [...] Da experiência da imagem especular resulta um par imaginário, narcísico em que o eu e o outro são reversíveis.” 121

119 Freud acreditava que algum nível de narcisismo (ver Capítulo 4, rodapé 66) constitui uma parte de todos os seres desde o nascimento. Em sua dimensão primitiva, o narcisismo está relacionado com o momento em que são instauradas no sujeito, através do olhar de terceiros, as qualidades que o definem para os outros e para si mesmo. É através desse investimento externo sobre o psiquismo que vai ser instaurado (no narcisismo primário) um estado precoce em que a criança investe toda sua libido em si mesma.Na melhor das possibilidades, então, constitui-se um campo da ilusão, ou da ilusão narcísica: o pequeno sujeito vai passar não só a ser alimentado por uma imagem ao mesmo tempo integrada e de perfeição, mas também vai poder, a partir daí, definir-se, identificar-se, reconhecer-se. Freud define essa imagem perfeita de si mesmo como ‘eu ideal’. À medida que se constitui, essa auto-imagem vai ser cultivada e defendida como uma necessidade de satisfação narcísica. Em última análise, é uma relação de amor consigo mesmo que surge e daqui para frente se transformará numa demanda: demanda de ser objeto do amor de um outro. O ‘eu ideal’ erige-se como uma referência perene no psiquismo, uma ilusão e um modelo ao qual o eu sempre buscará ‘retornar’: uma posição na qual estava a perfeição narcísica e na qual se assenta a ilusão de ter sido amado e admirado sem restrições.

120 Segundo Eliana de Moura Castro, com relação ao Estádio do Espelho, pode-se observar que essa fase

faz-se presente na criança, entre os 6 e 18 meses: [...] quando situada defronte do espelho, inicialmente não se reconhece e pensa estar diante de um ser real. Num segundo momento, a criança compreende que ali está apenas uma imagem. Somente num terceiro tempo ocorre o reconhecimento da própria imagem como tal, no espelho. Esse reconhecimento [...] é a experiência inaugural de si como unidade [...] A criança tem então, a imagem antecipada de seu corpo como totalidade, que vem substituir a angústia do corpo fragmentado. [...]. LACAN. IN: CASTRO, 1986,p. 48-49

121

As figuras introduzidas pela descrição de Moura Castro, evocam parágrafos da narrativa cortazariana, como é o caso do conto O outro céu no qual, e como já foi desenvolvido no Capítulo 3, a personagem central coloca-se num espaço especular que lhe permite encontros e fugidas, travessias e passagens de um mundo para o outro, de um eu para o outro especular. Trata-se de um desdobramento espacial, analogia do desdobramento do eu reversível.

[...] as passagens e as galerias sempre foram a minha pátria secreta [...] atravessar o Pasaje Güemes [...] com a lembrança da adolescência [...] o antigo fascínio [...] eu gostava de caminhar sem rumo determinado, sabendo quem num dado momento entraria na zona das galerias cobertas [...] a insolência das ruas abertas. A Galeria Vivienne [...] ou o Passage des Panoramas [...] quanto desse bairro foi meu desde sempre, desde muito antes de eu desconfiar já era meu [...] (eu) postado num canto do Pasaje Güemes [...]122

Segundo a explicação do próprio Lacan, o Estádio do espelho é uma identificação total no que se refere à transformação produzida no sujeito, quando assume uma imagem (‛imago’):

[...] O Estádio do espelho é um drama cujo alcance interno se precipita de insuficiência e antecipação - e que passa a sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, engendra os fantasmas que se sucedem de uma imagem despedaçada do corpo a uma forma que chamamos ortopédica de sua totalidade – e à armadura finalmente assumida de uma identidade alienante que vai marcar com sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental. [...].123

Os conceitos lacanianos e os dos teóricos que se debruçam sobre as reflexões do psicanalista, sempre tentando análise e compreensão, nos levam para evocações das narrativas ficcionais cortazarianas. No conto O outro céu, observa-se um par imaginário espacial e o outro do eu, como ilustramos na citação acima. No entanto, e voltando à nossa análise do Capítulo 3, vemos que em A Distante, o par imaginário é engendrado pelo fantasma, a imagem despedaçada, a identidade alienante-alienada.

122 CORTÁZAR. IN: Todos os fogos, o fogo, 1974. P 135, 136, 137. Minha tradução: [...] los pasajes y las galerías han sido mi patria secreta desde siempre [...] cruzar el Pasaje Güemes [...] con el recuerdo de la adolescencia [...] la antigua fascinación [...] me gustaba echar a andar sin rumbo fijo, sabiendo que en cualquier momento, entraría en la zona de las galerías cubiertas [...] la insolencia de las calles abiertas. La Galerie Vivienne [...] o el Passage des Panoramas [...] cuánto de ese barrio ha sido mío desde siempre, mucho antes de sospecharlo ya era mío [...] apostado en un rincón del Pasaje Güemes [...]. Grifos meus. 123

Às vezes sei que tem frio, que sofre, que batem nela [...] porque sou eu e

batem nela [...] Digo-me: ‛Agora estou atravessando uma ponte gelada,

agora a neve entra nos meus sapatos furados’. Não é que sinta nada. Sei apenas que é assim, que em algum lugar atravesso uma ponte no mesmo instante (mas nem sei se é no mesmo instante) em que o menino dos Rivas aceita o chá e faz sua melhor cara de tarado. [...] (Nora) disse: ‛Mas, que é que você tem?’ Acontecia àquela, a mim raramente. Algo horrível devia ter acontecido a ela. Batiam nela ou se sentia doente e justamente quando Nora ia cantar Fauré e eu no piano [...]124

Lacan desenvolve a fase do espelho enfatizando as lutas, as resistências, os

ciúmes pela rivalidade com o outro e coloca o eu em situação de perigo. A imago

aparece fragmentada, mutilada: o duplo mostra-se em projeções heterogêneas e provocadoras de angústias até o momento da identificação.

Descrições lacanianas da fase especular que deixam fluir na espontaneidade as figuras colocadas pela narrativa em A Distante, sustentando as análises de Otto Rank:

‛Rank aborda esses traços psíquicos dos diferentes escritores a partir de uma análise

pormenorizada dos seus comportamentos, e enfatiza como esses aspectos tão particulares definem a produção literária de todos eles.’125

Assim passo horas: de quatro, de três, e duas, e mais tarde palíndromos. [...] Alina Reyes. É a rainha e ... [...] Tão belo, este, porque abre um caminho, porque conclui. Porque a rainha e .... Não, horrível. Horrível porque abre caminho a esta que não é a rainha, e que outra vez odeio de noite. [...] Mas sim Alina Reyes, e, por isso, ontem à noite, aconteceu outra vez senti-la e o ódio. [...] Somente posso odiá-la muito, odiar as mãos que a jogam ao solo e também a ela, a ela ainda mais porque batem nela, porque sou e batem nela. 126

(Alina Reyes)Chegou à ponte e a atravessou até o meio, andando agora com dificuldade [...] No meio da ponte desolada a andrajosa mulher [...] esperava com algo firme e ávido [...] Alina esteve junto a ela repetindo, agora o sabia, gestos e distâncias como depois de um ensaio geral. Sem temor, liberando-se afinal [...] esteve junto a ela e estendeu as mãos, negando-se a pensar, e a mulher da ponte se apertou contra seu peito e as duas se abraçaram rígidas e caladas na ponte [...] 127

124 CORTÁZAR, 1951, p. 30-31. Grifos meus.

125 Ver Capítulo 4 desta dissertação, p. 51-52

126 CORTÁZAR, 1951, p. 30. Grifos meus.

127

Narrativas cortazarianas, aqui contempladas, demonstram encontro e fusão na ponte, ilustrando o estádio especular. Descrições lacanianas da fase especular que explicam a constituição do eu - sujeito e segundo o nosso interesse, dão clareza quanto à formação do texto: luta do narrador no confronto com o seu duplo e a sua língua. Língua que segundo Derrida não é nunca UMA:

[...] não tinha eu pensável ou pensante antes de esta situação estranhamente familiar e propriamente imprópria (uncanny, unheimlich) de uma língua inominável. É impossível contar as línguas [...]. Não tem cálculo, daí que o UNO de uma língua, que foge de toda aritmética, não é nunca determinado. 128

Luta do narrador; luta do tradutor, que se debate entre os textos e as línguas, nunca seus-suas, jamais UM-UMA Unheimlich.

Prosseguindo com mais alguns conceitos desenvolvidos por Lacan observa-se que nos anos 50, o psicanalista assegurava que o ser tem acesso ao sujeito através da linguagem, salientando que o ser vivo precede o acesso à linguagem: o sujeito é efeito da presença e da ação da linguagem. O sujeito não surgiria, se o ser vivo não tivesse alguém que lhe falasse, esse alguém (a mãe/o grande Outro) que se situasse no lugar do Outro, do primeiro Outro e, a partir daí, esse ser vivo se visse introduzido pelo Outro, o da linguagem. Isso quer dizer, que o ser se torna sujeito numa relação de fala. Nessa relação de fala, se produz uma transformação: as necessidades se tornam demandas. No processo, no ato da fala, a demanda [demande] leva a uma castração, a uma frustração, operação descrita por Lacan como imaginária.

[...] (A frustração) é um efeito estrutural do acesso à linguagem que se produz na medida em que a necessidade biológica real não coincide nunca com o significante do pedido, isto é, com o significante da demanda. [...]129.

128

DERRIDA, 1996, p. 55. Minha tradução de: [...] il n'y avait pas de je pensable ou pensant avant cette situation étrangement familière et proprement impropre (uncanny, unheimlich) d'une langue innombrable. Il est impossible de compter les langues [...] Il n'y a pas de calculabilité, dès lors que l'Un d'une langue, qui échappe à toute comptabilité arithmétique, n'est jamais déterminé.

129 MAZZUCA, GODOY, SCHEJTMAN, ZLOTNIK, 2003, p.105. Minha tradução de: ‘(La frustración) es un efecto estructural del acceso al lenguaje que se produce en la medida en que la necesidad biológica real no coincide nunca con el significante del pedido, es decir, con el significante de la demanda. Grifos meus.

Resulta evidente que o acesso à linguagem é um ato violento. No Estádio do Espelho, Lacan salienta a agressividade, a resistência e a rivalidade com o outro especular. A agressividade e a falta resultam de que o significante instaura a falta do ser na relação com o Outro. Neste nível de operações estabelecem-se relações de amor e ódio, nas quais a linguagem é o ator principal.

[...] Esta fase do estádio do espelho se caracteriza pela agressividade, a concorrência e a rivalidade com o outro especular, rua sem saída do imaginário onde o objeto surge como objeto de desejo do outro [...].130

No entanto, o que significa o ‘ser’ no confronto com o ‘Outro’ para Lacan?

[...] O segundo, o Outro absoluto, é aquele a quem nos dirigimos além do semelhante, aquele que estamos sempre obrigados a admitir além da relação especular, aquele que diante de nós aceita ou recusa, aquele que nos engana, se for o caso; sem nunca poder saber se nos engana ou não, aquele a quem sempre nos dirigimos. Sua existência é tal, que o fato de se dirigir a ele, de ter com ele, uma linguagem é mais importante que tudo o que possa estar em jogo entre ele e nós [...]. 131

A justificativa de ter introduzido estas reflexões lacanianas na dissertação encontra a sua explicação no fato que elas permitem estabelecer uma analogia entre a constituição do sujeito de linguagem e a formação e construção textual: apelo, confronto, luta, resistências e fragmentações, amor e ódio, identificações e metamorfoses, sempre estabelecendo pontes com o Outro; aquele Outro da linguagem, da língua, das línguas, do ser.

Concluindo com nossos comentários no que diz a respeito às inovações introducidas por Lacan, poderiamos salientar que toda vez, quando questionado sobre as incertezas nas explicações quanto ao real, Lacan responde ironicamente que o real é o estritamente impensável “[...] é Inominável (Innombrable)”132. Esse Inominado do ser

130 MAZZUCA, GODOY, SCHEJTMAN, ZLOTNIK,2003, p.157. Minha tradução de: ‘Esta fase del

estadio del espejo se caracteriza por la agresividad, la competencia y la rivalidad con el otro especular, callejón sin salida de lo imaginario donde el objeto surge como el objeto del deseo del otro. ’

131 LACAN. In: BALMÈS, 2002, p.139. Minha tradução de: “El segundo, el Otro absoluto, es aquel a quien nos dirigimos más allá de ese semejante, el que estamos obligados a admitir más allá de la relación del espejismo, el que frente a nosotros acepta o se niega, el que llegado el caso nos engaña sin que podamos saber nunca si nos engaña o no, aquel al que siempre nos dirigimos. Su existencia es tal que el hecho de dirigirse a él, de tener con él un lenguaje, es más importante que todo lo que puede ponerse en juego entre él y nosotros.”

132

que nos leva a pensar no Inominado discursivo, no Non-dit de Lamiral133, na Indecidibilidade ou no Indezível derridiano. Indecidibilidade que flui sob as palavras e

o léxico propriamente dito134. Indecidibilidade e silêncio (o fluxo da língua135) que o texto freudiano indaga: [o texto freudiano] ‛aflora nas palavras e as diferenças entre

as línguas que dizem a mesma coisa por vias diferentes’. 136

6.4 Lacan na torre

Tendo introduzido as noções inovadoras das pesquisas lacanianas, salienta-se a importância singular desses conceitos no que diz respeito ao nosso interesse.

A abordagem dos aspectos renovadores lacanianos torna-se base das nossas reflexões por razões duplas. Por um lado, Lacan liberta o signo saussuriano da univocidade, imprimindo no discurso os traços definitórios da polissemia e, portanto, derrubando as cadeias da estrutura e das imposições na milenária tarefa tradutória: coloca a necessidade das reflexões sobre a tradução intralingual, intralinguagem, instaurando a noção de multiplicidade de linguagens e de línguas.

A língua já não é mais UMA. Afasta-se de aquele sonho de unidade na Torre:

[...] sonho de unidade, do corpo único, da compreensão sem limites, do conhecimento de

tudo e de todos, da completude: sonho irrealizado e irrealizável que habita a humanidade para todo o sempre .... [...] 137

Por outro lado, baseando-se no Mestre Freud, Lacan ultrapassa as descrições, tenta uma decifração das velhas inscrições, além dos hieróglifos, das pressuposições: Lacan explora, interpreta, abala linguagem e ser. Ao se arrogar tradutor de Freud, Lacan faz o ‛détour’ babeliano, apropria-se da herança sagrada e nomea-se sucessor do primeiro ‛profeta-tradutor’, herdeiro na linhagem divina. Lacan traduz naquela liberdade divina de Moisés, introdutor do prestígio sacralizado no ato tradutório, como primeiro porta-voz/tradutor de Deus, enquanto Lacan investe a tradução, a tarefa do

133 http://www.revuetexto.net/marges/marges/Documents. In: «L'inconscient est structuré comme un

langage» : « à la différence des autres discours théoriques qui s'assignent des significations transparentes

par décrets terminologiques, le référent signifié par la psychanalyse est le langage même de l'inconscient, c'est-à -dire le non-dit, voire le non-sens ». Minha tradução: In: «O inconsciente está estruturado como

uma linguagem». ‛diferente dos outros discursos teóricos que se atribuem significações transparentes a

partir de decretos terminológicos, o referente significado pela psicanálise é a linguagem mesma do inconsciente, quer dizer, o não-dito, o não-sentido’

134 IN: OTTONI, 1996, p. 104 135 Ídem, p. 105

136 Ídem, p. 106. Grifos meus 137

tradutor e o texto traduzido de autoridade científica. À luz das suas releituras e interpretações, observa-se que Lacan atualiza e reivindica a figura do tradutor secundando antigas noções defensoras deste ofício infatigável e milenário. Eis o caso de Goethe (1749-1832): ‛O Alcorão diz: Deus deu para cada povo um profeta falante da

própria língua. Portanto, cada tradutor é um profeta para o seu próprio povo. ’ 138

Conceitos de um escritor do século XIX que já dera os primeiros passos na tentativa de atingir a natureza divina do texto traduzido; palavras evocadoras das reflexões derridianas colocadas no Capítulo 5: Ele [Deus] os destina à tradução, ele os sujeita à

lei de uma tradução necessária e impossível [...] (o double bind) 139. Portanto, aprecia-

se a idéia da tradução autorizada pela divindade, pelo Deus na sua acepção absoluta: tanto judaico-cristã, quanto muçulmano; noção de singular importância retomada pelas pesquisas e descobertas psicanalíticas desde finais do século XIX até nossos dias.

Passeando-se pelos campos de Freud, Lacan atinge o alvo, já que de porta-voz sagrado de Deus volta-se tradutor pós-moderno sacralizado pela intelectualidade do século XX, permitindo-nos delinear o percurso tradutório a partir do andamento dos profetas-tradutores: da Terra prometida, da Babel despedaçada para o Céu do ser- texto//texto traduzido.

6.5 Final de etapa

Nessa incessante luta de reivindicações, manipulações, perdas e ganhos ao longo do percurso histórico e discursivo, debatendo-se entre o divino e o secular, a tradução insinua-se no silêncio audível do texto. Esse silêncio audível, essa indecidibilidade da língua, da linguagem (o Inominável), do texto [e do ser] que nem já é primeiro, visto que todo texto [todo ser] está precedido de outro texto instaurando a figura do fantasma, do estranho: o Outro. Um outro da língua que é sempre o estranho-familiar ou o

familiarmente estranho140: o ser e o texto num jogo de analogias carregando o Outro, debruçando-se nas beiras da imago especular, confrontando o Narciso no espelho textual.

Sujeito da linguagem para Lacan [...] o sujeito é [...] alteridade, carrega em si o outro, o estranho. Que o transforma e é transformado por ele. É

138 BERMAN, 1984, p. 93. Minha tradução de: Le Coran dit: Dieu a donné à chaque peuple un prophète

dans sa propre langue. Ainsi, chaque traducteur est-il un prophète pour son peuple.

139 DERRIDA, Torres de Babel, 2002, p. 20, IN: CORACINI, 2007, p. 46. Grifos meus.

140

interessante lembrar que se o sujeito é um lugar no discurso, heterogêneo na sua própria constituição e, por isso mesmo, fragmentado, cindido, o indivíduo (indiviso, uno) é [...] ilusão de inteireza, de totalidade, de coerência, de homogeneidade [...]141

O texto do ser-tradutor encontra no confronto o texto–autor, ambos dois carregando as próprias fragmentações ancestrais, levando o Outro, o duplo. No encontro especular, no olhar textual se produz a comoção, como Lacan descreve no seu Estádio do espelho. Constrói-se a ponte da tradução sobre o rio ou estabelece-se o encontro sobre a ponte. No entanto, a fusão se concretiza.

[...] (Alina Reyes) sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço, com um crescer de felicidade igual a um hino, a um voar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos na fusão total afastando as sensações de fora, a luz crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa da sua vitória, sem celebrá-la por tão sua e finalmente. 142

A Alina nova, sem os seus sapatos furados, na vitória: ‘ia lindíssima em seu vestido cinza, um pouco de cabelo solto contra o vento, sem voltar o rosto e seguindo’. Da ponte para a praça.

Apesar da violência sofrida pelo ser na sua constituição, o ser atinge a fase de sujeito. Apesar da violência sofrida pelo texto no processo tradutório, o texto atinge a fase de texto novo, texto feito à imago narcísica especular, porém, já não mais desvalorizado, desapreciado porque duplo. O texto novo torna-se ser-texto no apelo para o texto original que carrega todos os outros textos indecíveis. Porém, o texto original torna-se também texto no apelo do outro, sem o qual ele não atingiria nunca o estatuto textual. O texto de chegada leva a carga do desprestigio ao ser nomeado

traduzido desde a Babel entranhável, embora reivindicado pela revolta freudiana, a

releitura-tradução lacaniana e a tarefa infatigável dos cronópios que na angústia criativa escrevem, traduzem e sofrem na total felicidade.

[...] Sempre serei como um menino para muitas coisas, mas um desses meninos que, desde o começo, carregam consigo o adulto, de maneira que, quando o monstrinho chega a adulto, ocorre que, por sua vez, carrega consigo o menino [...]. Escrevo por falência, por deslocamento; e como escrevo de um interstício, estou sempre convidando que outros

141 CORACINI, 2007, p. 17

142

procurem os seus e olhem por eles o jardim onde as árvores têm frutos que são, por certo, pedras preciosas. 143

No convite de procura e encontro dos frutos preciosos da língua, das linguagens, as pedras textuais jogadas da Terra para o Céu atingem sua meta: o ato tradutório declara-se na vitória de Alina, no silêncio do Axolotl metamorfoseado; no inferno feliz de Julio carregando o menino (o duplo) numa eterna viagem entre duas realidades fantásticas, duas ordens justapostas no mesmo plano e a suspeita de outra ordem mais

secreta e menos comunicável. Indo na ‛Rayuela Amarelinha’ desenhada no chão para a

pátria secreta da passagem, do rio, do céu de gesso, do Céu babeliano, para a pátria

No documento Julio Cortázar: de pontes e duplos (páginas 71-91)

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