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Como convém a um estudo de inspiração fenomenológica, a fonte essencial de dados foram os relatos/narrativas da pesquisadora (quanto à primeira interrogação) e dos meninos e meninas de rua (para responder a segunda e a terceira interrogação).

Para coletar essas narrativas/relatos utilizou-se entrevista aberta e não-diretiva, relatos escritos ou dados visuais como desenhos, memórias, relatórios de relatos diários de educadores sociais da SEMAS e fotos que compuseram um Diário de Campo e de Itinerância.

As entrevistas se deram sob a forma de grupos de encontro. Procuramos interpretar compreensivamente a linguagem (e expressão) da pessoa; a percepção dessa linguagem funcionou como um veículo de significações, em que procuramos mostrar a perspectiva fenomenológica que não dicotomiza sujeito de objeto, significado de significante; a ação na entrevista não foi intervenção ou tratamento.

As entrevistas fenomenológicas oportunizam penetrar no mundo, na presença, na vida da criança e do adolescente em situação de rua, por intermédio do envolvimento com eles, o pesquisador tomado por cada gesto lingüístico por eles emitidos.

Sendo sujeitos envolvidos nas complexas redes do mundo as crianças e adolescentes em situação de rua se dispuseram a contar suas histórias vividas que se tecem na historicidade. Por mais duras que às vezes nos pareceram ser, tínhamos a consciência de que estas eram as histórias dos gestos humanos. Devido a este fato compreendemos que precisávamos perceber cada gesto, cada movimento, que apesar de serem humanos são únicos, diferente de qualquer outro ser que exista na face da terra.

Os silêncios, que ocorreram, falaram alto, pois se constituem um novo gesto, na forma de entender a fala, a vivência significativa aparentemente não comunicada. É o novo “som” que emana do silêncio, neste sentido Merleau Ponty diz que:

Precisamos, enfim, considerar a palavra antes que seja pronunciada, contra o fundo de silencio que sempre a envolve e sem o qual nada diria ou desvendar ainda os fios de silêncio que a enredam. Há expressões Conquistadas, um sentido direto, correspondente ponto por ponto às locuções, formas, vocábulos instituídos (1971, p. 226).

As entrevistas foram sempre um acontecimento que não cabiam numa programação. Um encontro com uma outra realidade, que não é a do pesquisador, que tem sua identidade própria. Encontro que levará a “compreensão empática” desta outra pessoa que se coloca bem diante do entrevistador, exigindo um novo posicionamento, o de escutá-lo; é com ele e a partir dele que será elaborada a melhor pergunta. No quadro em que metaforicamente pintar-se-á, ele criará as formas e dará seu traço e a cor nesta tela de sua vida.

Na escuta, o outro exigia que o pesquisador o hospedasse em si, no seu ser sendo. Ele queria testar: - “Você sabe escutar”? "Você suporta escutar?" E se ele detectava que, naquele instante, não se estava conseguindo escutá-lo, ele logo descon(fiava) que não se sabia escutá-lo! Mas ao descobrir isso, descobria a humanidade do entrevistador, aquilo que os igualava aos modos de ser sendo. É condição de ser humano: escutar e desejar ser escutado. Por isso, Guimarães Rosa [19--] pontuava que viver é muito perigoso. A psicóloga existencial Henriette Morato (1989), ao produzir suas pesquisas, adota uma postura semelhante a que está se propondo: escutar. Poeticamente, bem ao estilo da escritura existencial, ela ilumina o que se deseja fazer/sentir/pensar junto aos sujeitos/pessoas da pesquisa:

Abro o armário e ouço. Deixo essas vozes me contarem suas histórias. Ouvir histórias faz bem. Como criança que adora ouvir história para dormir. Escuto falas de experiências, de sonhos. Histórias contadas (...) Revelam publicamente intimidades. Dizem e escrevem experiências pessoais. Usam da linguagem poética. Além dos armários, essas histórias contadas e ouvidas abriram meu coração. Apaziguavam-se, apaziguando-me. E minha escuta me levar a sonhar (MORATO, 1989, p. 172).

Por isso os pedagogos e educadores existencialistas acreditam que ao produzir uma pesquisa, também estão a produzir “inter(in)venções psicopedagógicas”, e que cada escuta produz uma “prática educativa” - que até pode ser inclusiva - diferenciada, personalíssima.

Pontuamos aqui que "abrir do armário" no sentido metafórico não foi algo fácil mesmo para alguém que está há mais de 20 anos abrindo este armário todos os dias. Compreendemos que cada dia é único, que cada história contada é única em seus gestos e linguagem, devido a este fato cada "abertura de armário" é envolvida de sabor e, às vezes, dor. É como se fosse sempre um novo ser abrindo uma nova porta.

Não foi possível fazer previsões ou cálculos, mas foi possível pensar no encontro com o outro, na possibilidade de (des)velar e ao mesmo tempo ser (des)velado, na possibilidade de ser um - no sendo, no mundo. “Uma singularidade na pluralidade de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo” (PINEL, 2000, p. 175).

Este instrumento - o de entrevistar - permitiu a coleta de “depoimentos” em um estudo empático e compreensivo acerca do cotidiano dessas crianças e adolescentes, cotidiano esse que fez sentir um deserto “a flor da pele”.

Por isso, não nos limitamos a descrever quantidades de crianças e adolescentes em situação de rua que foram acompanhados, descrevendo em diário de campo. Buscamos conversar com eles por meio de entrevistas abertas - que produziram ou não depoimentos. Thiollent (1998), renomado metodologista qualitativo, sugere que os sujeitos devem ser procurados por meio de pesquisa com maior vivência naquilo que se estuda, e no nosso caso, vivência significativa - por tempo - de estar sendo na rua, (des)velando modos de ser sendo.

Mas ainda assim, nem tudo é perfeito - apesar das tentativas de sê-lo. A experiência é impossível de ser planejada, conduziu a situações de crianças e adolescentes em situação de rua que, por exemplo, estavam em “prisões” vivenciando a perda total da liberdade, tendo experienciado um ato de extrema violência que é o de

assassinar outro ser humano, em meio a este cenário coletado de suas experiências vividas.

Propôs-se escutá-los com toda sensibilidade e prazer que foi possível. Rogers (1978) diz que quando se refere ao prazer de ouvir uma pessoa, quer dizer, ouvi-la em profundidade, com palavras e idéias, ouvindo seus significados pessoais e privados, ouvi-los por mais dolorosas que fossem algumas narrativas, soavam como música aos meus ouvidos, uma música com poder de mexer com o ser.

Muitas vezes foi preciso ser silenciosa para que suas vozes pudessem ser ouvidas/escutadas, para que se pudesse ser transmitido algo a mais acerca de seu mundo, para que pudesse ser apreendido o que realmente importa, para que seu corpo pudesse sair da invisibilidade do dia-a-dia e mostrar-se com dignidade cidadã para a sociedade. Outras vezes também estivemos silenciosos porque não sabia ou não havia o que dizer, nem mesmo o que perguntar. O único ato que restava e que se fazia necessário era o da escuta empática.

Partindo do universo público e por vezes privado da rua, onde se encontra a criança e adolescente que mora nas ruas do Município de Vila Velha, buscamos descre(ver), inspirada na fenomenologia existencial, o cotidiano vivido da criança e adolescente em situação de rua.

Os procedimentos descritos a seguir, que foram utilizados se respaldaram em Erthal (1994), Forghieri (2001) e em Pinel (2005):

٠ mergulhamos existencialmente junto às crianças e adolescentes em situação de rua, e de modo inter-dinâmico, nos distanciamos reflexivamente. Na reflexão é que se procura apreender os significados do que é e como é ser sendo;

٠ tentamos, na reflexão, capturar a existência vivida de ser sendo ali na rua ou outro espaço;

٠ ativemo-nos a transcrever de memória dos encontros, e seguimos sugestões de Bom Meihy (1998) em trabalhar o texto - em termos de gramática e português - objetivando aumentar a compreensão do leitor acerca dos sujeitos da nossa

pesquisa. Ao mesmo tempo mantiveram-se gírias e foram reproduzidas palavras objetivando “transcriar”, isto é, dar sentido ao palco desses atores sociais, e novamente recorrendo a Bom Meihy (1998);

٠ buscamos ampliar a percepção sentida – por meio de uma escritura que (pró)cura (des)velar o que é e como é - acerca da existência vivencial das crianças e adolescentes em situação de rua;

٠ procuramos apreender figuras de um fundo e (des)velar os modos de ser sendo; ٠ optamos por descrever vários e contraditórios modos de ser sendo para que não configure uma estrutura da subjetividade, que não é fixa, mas efêmera - dependendo de ser sendo; si mesmo (psíquico e orgânico); cotidiano; mundo (história, cultura, ideologias, sociedade);

٠ descrevemos um ou mais Guias de Sentido (GS) que por se ligar aos modos de ser sendo, não é um cataloga(dor), nem um diagnóstico. É algo também efêmero, cheio de altos e baixos - um ir e vir constantes. Quando se apreende quietude, logo aparece um furacão de ser sendo. Nada do GS é seguro, mas é algo que aparece, parece, desaparece; e

٠ finalmente, tentamos integrar as partes percebidas/sentidas, procurando compô- las dentro desse mosaico do tipo quebra-cabeça existencial.

Aqui é adequado destacar que experienciamos outros procedimentos, mais e mais intensos, que por serem mais uma significativa experiência - já desvela(dor)a dos modos de ser sendo – optamos por colocar como parte dos resultados e discussão obtidos, pois transformaram-se em atitudes indispensáveis ao (des)velamentos propostos.