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Chegando ao Município de Vila Velha, as crianças e adolescentes em situação de rua ficam distantes de qualquer vínculo familiar clássico - modos de ser sendo a procura de outras possibilidades de ser sendo de família e o sentido que ela provoca social e historicamente (segurança, afeto, sustento). Por isso, também se alojam nas ruas de bairros de classe média onde conseguem sobreviver via doações diversas e pequenos delitos, principalmente furtos (anexo 13).

Para aqueles que moram no Município de Vila Velha ou na Grande Vitória, vir às ruas é uma alegre atividade de rotina, onde mostram seus “modos de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo” (PINEL, 2003) nas atitudes de alegria. As crianças que possuem vínculos familiares geralmente vêm à rua quatro dias ou mais dias por semana. Nesse sentido, a rua, muitas vezes, passa a ser para eles um lugar de prazer, pois nela alimentam-se melhor que em casa, usam drogas, fazem sexo e têm acesso a dinheiro - modos de ser sendo do prazer.

G., 9 anos de idade, é um garoto da contradição. Ontem me disse que prefere ficar na rua, pois em casa é menos legal. Já hoje ele pediu-me para levar para casa. Informaram-me que ele está sendo ameaçado6 (PAIVA, Diário Itinerante)

Podemos ver que eles se alimentam (e em grande quantidade). “Comem muito

como se a comida de todo mundo fosse acabar”, metáfora dita a mim por um dono

de uma padaria. São muitos os restaurantes que lhes oferecem comida na hora do almoço - em um clima de muita compaixão e alguma - e pouca - (com)paixão! Muitas as padarias lhes dão leite, iogurte e pão. Muitos são os grupos religiosos que lhes dão sopas, lanches e roupa. Os religiosos (algumas vezes) e os educadores sociais podem oferecer atividades psicopedagógicas na rua. Tudo isso é facilmente observado por quaisquer educadores sociais mais atentos.

6 A partir desse subtítulo serão utilizados trechos do Diário Itinerante, objetivando mostrar ao leitor minha trajetória como cientista social e como profissional de Educação Social, que obviamente está impregnada dos meus modos de ser sendo pedagoga e advogada.

Os relatos dos grupos indicam também que nenhum menino rompe de vez com a escola, com a casa e com a família. O rompimento acontece como “se a noite que vai sendo tragada pelo dia”:

Essa vivência faz alguns meninos e meninas em modos de ser sendo do não- assombro, uma coisa vem, outra vai e nem apreendem incongruências, injustiças. Mas pela própria ambigüidade de ser sendo humano, trata-se de um modo de ser sendo “otimista trágico”, no dizer de Frankl (1991) há alienação que o faz enfrentar, há sorrisos e alegria em meio a tragédia.

O grupo aparece, pois como elemento mutanti que ainda resvala sinais de “lar”, ou como diz Guimarães Rosa “um descanso na loucura”. Um modo de ser sendo na auto-ajuda.

F., 10 anos de idade está dopado de tínner. Cambaleante fala palavras desconexas. Uma “alegria triste”. Estou à escuta, e ele repete palavras que indicam sofrimento (e talvez alegria - pois aparecem para dizê-las): Tia! Olhe minha mãe! Ali... (PAIVA, Diário Itinerante).

Começa indo para rua um dia, depois vai dois, vai prolongando cada vez mais o tempo de permanência na rua. Parece nos seus modos de ser sendo da saudade (mãe), com necessidade de proteção e ser escutado (tia) com demanda de ter um lugar/ aqui (ali).

As crianças e adolescentes em situação de rua vão se encontrando, encostando, agrupando, se tocando. Vão se fazendo pertencer, até que um dia dormem nas ruas “iluminados pela luz da lua” (PINEL, 2003). Este é como se fosse mais um ritual de passagem para viverem uma situação de rua. Talvez o último ritual. Uma experiência nem sempre positiva, mas que os sujeitos nela inventam “táticas” (CERTEAU, 1994) que provocam seus modos de ser sendo na invenção de sentido de vida.

(...) eu não vinha para rua todo dia, quando eu era pequena vinha com minha avó catar papelão, agente não vinha todo dia, depois eu cresci e comecei a vir com as minhas primas todo dia depois da escola, ai agente começou a faltar aulas alguns dias e vinha direto para Coqueiral, um dia a gente perdeu o (colocar relato) ônibus ai dormimos aqui com os meninos que a gente já conhecia, fiquei com medo, mas depois até gostei, dormimos com os meninos numa casinha na praça. Agora acho que tem um mês que tô na rua

direto, mas eu vou em casa levar dinheiro para minha vó [J. 10 anos de idade] (PAIVA, Diário Itinerante).

Devido à idade e o que já passaram em suas casas, o perigo existente na rua não os amedronta (um modo de ser sendo ousados) tanto (a ponto de desistirem da rua), apesar de terem que desenvolver uma defesa de angustia e ansiedade: estar sempre sendo nos modos de ser sendo de prontidão, alerta, tensão!

Segundo contam eles (e, os educadores sociais, já viveram isso, no nosso modo de ser sendo enfrentadores no ofício) eles sabem que o perigo é real, mas não se torna mais real que o perigo de viver em casa.

Eu saí de casa porque minha mãe saiu. Meu pai me pegava sempre e fazia “aquilo” [em tom de voz de sussurro] comigo! Contei para minha mãe isso e ela contou isso para a polícia. Mas ele não ficou preso, aí começou a bater na minha mãe e ela sumiu. (...) Prefiro ficar aqui debaixo da ponte com os meninos, ninguém mexe comigo por que os meninos não deixam, mas agora eu estou esperando neném, acho que vou voltar, meu pai quer que eu volte, mas tenho medo... ]P., portadora do vírus HIV, 14 anos de idade; grávida de 6 meses] (PAIVA, Diário Itinerante).

O pai acusado de abusador ao mesmo tempo a chama de volta, “uma roda viva”. Os modos de ser sendo são impregnados, pois por essa mesma “roda vida”, algo que se repete de modo social e histórico. Roda viva de conflitos, de alienações, de criatividades, de enfrentamentos, de ousadia, de submissão, de ilusão..., nos fazendo lembrar Chico Buarque em sua canção:

A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda viva E carrega o destino prá lá ...

Os meninos e meninas em situação de rua são um grupo de alta rotatividade, ora casa, ora rua, ora retorna, ora não retorna. Talvez sejam modos de ser sendo ao enfrentamento da “roda” que o poeta descreve. Apenas cerca de 20% das crianças e adolescentes em situação de rua são reencontrados nela um ano mais tarde, estando a inventar - em outros lugares (longe dos olhos sentidos das educadoras) modos de ser sendo, talvez se fortalecendo para retornar. Mesmo assim, cerca de

10% “está na rua” há cinco anos ou mais. Recusam-se a ir a abrigos - e todas as conseqüências danosas (e positivas) dessas organizações que tentam copiar os modos de ser sendo família. Ao mesmo tempo já perderam o vínculo familiar, e parecem não suportar a repetição de algo que lhes falta (a segurança que representa socialmente a família).

Eu tô na rua há tanto tempo que nem me lembro mais. (...) Minha mãe morreu e a gente [ele e o irmão] veio para rua depois que ela morreu. Ela comeu uma banana da terra e depois morreu [repete muito essa história de sentidos diversos]. Aí nosso pai começou a beber muito e bater na gente, se juntou com uma piranha que usava maconha. A gente veio para rua. (...) Um dia desses a gente voltou lá na nossa casa e disseram que ele tinha vendido a casa e ido embora com a mulher. Tinha uma irmã nossa com ele que ele deu. Agora não tem jeito mais não, a gente não tem mais casa... Ficar nesses abrigos eu não fico. Uma vez tia, eu fui para aquele abrigo no Aribiri e o “monitor” quis “me comer”. Como eu não quis ele inventou que eu estava usando droga dentro do abrigo aí me colocaram para fora, também antes de sair quebrei a porta de vidro toda, veio até policia, mas eu já tinha vazado, eu não vou não! (...) Esse negócio de ir para igreja, não poder fumar... Eu sou viciado tia” [R., 17 anos de idade; está há dez anos nas ruas de Coqueiral] (PAIVA, Diário Itinerante).

Nos abrigos não raro vivenciam situações de abuso, os meninos, principalmente, de homens - figuras de autoridade que deveriam educar e que geralmente ficam à noite nos abrigos (anexo 14). Muitas meninas e meninas vivenciam situações semelhantes de sofrerem abusos, na maioria das vezes com homens e em casa ou nas ruas. Apenas um diferencial: não existem, por ora, em Vila Velha (ES), abrigos para meninas de rua. Isso demonstra o descuidado das Políticas Públicas contra as mulheres, mas ao mesmo tempo parece que - dentro da nossa sociedade - as mulheres são mais ligadas a casa, à família ou a outro espaço de “proteção” (inclusive os de prostituição). Sente-se que as meninas estão nas ruas, faltando de fato espaço para elas como a criação dos referidos órgãos que deveriam “protegê- las”. L., por exemplo, quer sair da rua porque quer arrumar um namorado e casar, são os sonhos de casar e ser feliz.7

Esses sujeitos fazem - quase sempre - o trajeto de retorno ao lar. As meninas - em geral - o fazem quando engravidam. Os meninos quando se ferem gravemente ou quando arrumam uma “mulher” que os leva para suas casas. A mulher, geralmente, é uma menina de rua ou prostituta. Apenas um pequeno percentual volta para casa

7 Diário Itinerante.

porque se cansam de viver nesse cotidiano inóspito de rua, pois ali têm que inventar muitas táticas de enfrentamento, que os acabam esgotando.

Eu vou voltar para casa sim, aqui na rua é bom, mas as vezes é muito difícil. Tem uns “homi” ai que quer pegar agente a força, machuca e não dão um tostão... Quando a gente está perto dos meninos eles [os meninos] não deixam não. Mas quando a gente tá sozinha tem de fazer de tudo com eles... Se pelo menos dessem dinheiro, né? Mas às vezes é gente até rica que mora nas “etapas”, ai é legal o cara! Ele dá um monte de coisas pra gente. Mas quando esta não só ele mas mais “homi” ai é mais é ruim”, eu quero voltar para casa, arrumar um namorado e casar, sair da rua [L. 15 anos de idade] (PAIVA, Diário Itinerante).

Durante todo tempo de coleta de dados escutamos discursos “cacos”, como metafóricas peças (lingüísticas) soltas, monossilábicas. Esses fragmentos se transformam num imenso quebra-cabeça que pode ou não ser montado ou decifrado pelo pesquisador (e pelo leitor), do qual emergem os diversos e híbridos (e complexos) modos de ser sendo sobreviventes. Mas as observações de ações desses sujeitos - na maioria das vezes - aparecem com bastante riqueza de detalhes.

Estou nas ruas há um tempão [balança as mãos e olha para cima]. E eu não acho ruim não, aqui eu fico com quem eu quero, ontem fiquei com A, amanhã já combinei ir para casa do pai do meu filho, aquele taxista tia, ele queria até casar comigo, eu que não quero [V.16 anos de idade , paulista, há 3 anos em Coqueiral, portadora do vírus HIV] (PAIVA, Diário Itinerante).

Os relatos acerca do cotidiano permitem escutar vozes e gestos, perceber passos, vislumbrar com uma certa claridade as sombras que se forma nos modos de ser sendo criança e adolescente em situação de rua. Segundo Certeau (1994) “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras do espaço” (p. 207). Os relatos permitem escutar essas crianças e adolescentes excluídos na cidade de Vila Velha, inventando diálogos junto deles.