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Estive a (pró) cura dos modos de ser sendo das crianças e adolescentes em situação de rua e como podemos compreender a força de um grupo na sobrevivência existencial deles. Nada muito obsessivo, mas algo que vem para nortear-me! O sentido, diz-nos Frankl (1991) é algo que nos dá um rumo e uma direção ao nosso ser sendo, o que Pinel (2003) lembra quando fala que está no cotidiano junto ao outro.

Tal como na dramaturgia, os dados vão aparecendo ao leitor. A vida vivida também é assim. Nem tudo vem com tanta força. Muitas vezes a dor e a alegria aparecem como numa “novela”. Novelas. A arte imita a vida, e para Heidegger (in PINEL, 2003) a arte (des)vela verdade.

Atualmente, reflito que a escolha da rua (como meu campo de pesquisa e de trabalho como educadora - social - de rua), foi uma decisão até fácil. Ao contrário de outros pesquisadores, houve extrema segurança do que estava fazendo. Caminhar

num cotidiano conhecido é algo mais tranqüilo para mim, especialmente após a elaboração de recordações tão arcaicas quanto dolorosas. Embora o que tenha sido o meu cotidiano nas ruas jamais seja totalmente conhecido, é desse cotidiano que se constituem as lembranças do que vivi na rua. O cotidiano alerta-nos Certeau (1986) é prenhe de táticas inventivas, de criatividade. Híbrido e complexo, o cotidiano ao mesmo tempo pode ser repetitivo e alienante como destaca Heller (in PINEL, 2002), e - se bem sentido - é puro lugar/ tempo de provocações, de resiliência, de subversões altivas dos enfrentamentos como descreve Certeau (1994).

No fundo o que nos impregna é esse desejo de segurança. Frankl (1991) revela que a existência é carregada de luta e coragem, pois é algo sempre efêmero, em que a vida aparece interrogando pelo ser de sentido que sempre somos, mesmo diante das vicissitudes.

Essas minhas experiências de vir para as ruas - e fazer delas tempo de educação – faz-me sentir como um barco à deriva jogado para todos os lados num grande (e metafórico) mar em meio às tempestades. Tudo tal qual a música de Baleiro, estou nesse sentido andando sempre à “flor da pele”: “Um barco sem rumo e sem vela, sem rédeas...” . Ao mesmo tempo é desse lugar mesmo da insegurança que procuro aprender, apreender, a descrever, a educar o leitor que ali está.

O ato sentido de educar e de pesquisar (estamos a descrever uma pesquisa de inspiração fenomenológica-existencial e uma intervenção de igual forma) produz em um enorme diferencial da minha atuação cotidiana e profissional. Observar e sentir (escutar e escutar ativamente) a diversidade de conflitos. Encontros e desencontros. Morte-Vida. Vulnerabilidade extrema, resistência, resiliência. Solidão, solidariedade. Coragem de ser, como destaca Frankl (1991).

A entrada na vida cotidiana dos meninos em situação de rua como pesquisadora me (co)moveu muito... muitas vezes me fez chorar ante ao que me era desvelado, senti- me um nada. Interessante, pois compreendi o que é estranhamento para a Psicologia Fenomenologia-Existencial. Uma produção de estranhamento devido ao processo de distanciamento reflexivo. Tal como o encenador Rodolfo García

Vázquez (in SANTOS, 2006) tive - ao modo existencial - de criar-inventar-produzir uma distância, um estranhamento para abrir um novo espaço e uma possibilidade fresca de reconhecimento do cotidiano. É do estranhamento que se produz conhecimento - senti eu! Um estranhar evita o naturalizar, “ser-no-mundo” que se é. Tal qual a autora Escorel em seu estudo (agora sob a forma de livro) “Vidas ao Léu” (1999), a trajetória desta pesquisa também foi marcada por um aguçamento extremo dos sentidos, uma angústia que não saía do peito e um sentimento de impotência que me enfraquecia, não imaginava que fosse ter um desgaste emocional tão grande, afinal esse cotidiano era conhecido, estava nele há mais de 20 anos e não me imaginava com um olhar tão diferente.

Inspirada no que foi possível pela leitura existencial (empática) que fiz (ESCOREL, 1999) - atravessei o “deserto do campo de pesquisa à flor da pele”, às vezes com coragem, outras vezes com covardia outras ainda, com ousadia e raro atrevimento. Muitas vezes, me envolvi e precisei de muita força para distanciar-me da situação, para que a pesquisa não perdesse a possibilidade de ser descrita (e testemunhada pelos leitores), mas apreendi que as capturas acontecem a despeito das teorias que estão em nossa mente, afinal estamos falando do ser, o ser que se (re)faz e refaz, o ser que vive, sobrevive, resiste. Essas são, enfim, as atitudes do profissional que trabalha nas ruas, nas inventivas, nos seus percalços.

Ainda bem que não perdi minha capacidade de ficar, ainda, indignada (efeito do “estranhamento existencial”), de sofrer diante de situações tão graves vividas (que correm o risco social e histórico de serem naturalizadas). Poderia ser tragada pela mesmice. O que se vê ali são crianças e adolescentes nas ruas, espaço público que é impregnado de frio, calor, sede, fome e violência, além dos relacionamentos típicos dos “entre-lugares”.

Dentro do atual contexto vivido nas ruas tais pessoas deveriam estar em casa, na escola. Deveriam estar sob a proteção de alguém - demandam isso. Deveriam ser amadas, cuidadas e alimentadas. Mas elas se encontram nas ruas vivendo processos tão dolorosos (e algumas vezes também prazerosos pela sensação de liberdade produzida ali).

O estar na rua por si só já implica em riscos mesmo se esta é opção uma consciente, mas estar na rua, pois a casa os expulsou, a escola não os incluiu e as Políticas Públicas não os alcançaram, torna esta sobrevivência ainda mais dolorosa e dramática.

As ruas de Vila Velha (ES) são ruas que parecem de uma metrópole. Constato que produzo e invento um “trabalho psicopedagógico de abordagem de rua”. Como uma espécie de geógrafa humana vou capturando gente, timidez, medo, sentimentos persecutórios. Os meninos, por sua vez, não gostam de ter suas falas retidas por algum aparelho, este é um cuidado que estes revelam com sua segurança. Por esse motivo não gravo as entrevistas, na verdade não gostaria, de fato ainda que me fosse permitido, é como se o gravador fosse um ruído a mais em nosso diálogo. Neste mágico momento de diálogo pretendo eliminar o tanto quanto me fosse possível os ruídos.

Coletei junto a educadores sociais os seguintes dados quantitativos (e qualitativamente compreendidos). O fiz de modo o mais informal possível, como um exercício (clássico) de envolvimento. Associado aos dados coletados, inclui dados obtidos em estudo realizado em 2005 (PAIVA et al., 2005).