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Capítulo 1 – Antonio Gramsci e os grupos subalternos

1.4 Intelectuais orgânicos

A compreensão das novas configurações das economias ocidentais e das estratégias de enfrentamento pelas classes subalternas implicaria necessariamente a elaboração de uma nova cultura, referenciada pelos processos históricos e econômicos, que fosse portadora desta compreensão, a partir da filosofia da práxis; tratava-se agora de transformar o mundo, unindo teoria e ação, buscando a inserção ativa e consequente na disputa dos projetos hegemônicos da sociedade. A inserção dos denominados ‘intelectuais orgânicos’ nesta frente é, segundo Gramsci, indispensável, como forma de contrapor à cultura dominante, intervindo ativamente nos espaços da sociedade civil, nos sindicatos, partidos, associações, movimentos e, essencialmente, pelo engajamento na batalha cotidiana, condição para o enfrentamento da hegemonia capitalista.

Já em Alguns temas da questão meridional (1926), a distinção entre o papel dos intelectuais tradicionais, vinculados aos grandes proprietários de terra no atrasado sul da Itália e como elementos constitutivos do Estado é destacada, em contraposição aos intelectuais de novo tipo, que nascem da emergente industrialização do norte do país, o de tipo técnico industrial, que serve de vínculo entre o operariado e a burguesia. Enquanto que no primeiro caso os intelectuais tradicionais desempenham uma função que em sua essência objetiva manter o grau de dependência, da subalternidade das classes camponesas e artesãs, no segundo caso, como decorrência do processo de desenvolvimento capitalista a “situação é literalmente invertida, devido à influência da classe operária e de seus ‘intelectuais orgânicos’ (políticos).” (BUCI- GLUCKSMANN, 1990, p. 44.).

Gramsci rompe com a noção de intelectual tradicional, que o compreende como integrante de um grupo autônomo e, neste movimento, amplia noção corrente do termo, que geralmente é utilizado para denominar os grandes intelectuais, além de ressaltar a profunda a estreita ligação entre intelectuais, política, classe social, mostrando que filosofia e educação devem tornar-se práxis política. É na realidade social concreta, nos processos históricos concretos, que ele busca situar o substrato da sua noção ‘ampliada’ de intelectuais, ao afirmar que:

“Cada grupo social, nascendo do terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista gera junto consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc.” (GRAMSCI, 1982. p. 3-4.).

Esta origem, igualmente, não nasce de um terreno abstrato, mas de formações econômicas e sociais pré-existentes, que representam uma continuidade histórica do desenvolvimento desta categoria. Assume o autor dos Cadernos do Cárcere que a atribuição de um critério único para caracterizar esta atividade incorre em um erro metodológico que busca tal critério naquilo que é inerente às atividades que os mesmos desenvolvem e que – tal critério – deve ser compreendido no sistema de relações sociais em que as tais atividades ocorrem. Mais uma vez aqui, há uma insistência de que o trabalho intelectual não ocorre de forma abstrata, mas é mediado pela realidade social. À função intelectual não corresponde um estrato social independente, mas sim uma estreita e necessária ligação com os processos econômicos e sociais, formando-se em conexão com os grupos sociais fundamentais, sejam eles as classes subalternas, sejam eles a classe social capitalista dominante.

Importante também é a ampliação desta noção no sentido de demonstrar que todos os homens são intelectuais, apesar de nem todos exercerem a função social de intelectual. Decorre desta afirmação que toda a massa social exerce funções de caráter organizativo em sentido lato, no campo da produção, da cultura, no campo administrativo-político, o que implica reconhecer que a distinção entre intelectual e não intelectual diz respeito à função social exercida pelos sujeitos. O trabalho humano, por mais taylorizado e mecanizado que possa ser, apresenta e requer certa compreensão técnica, certa atividade intelectual. O trabalhador não se distingue por realizar um trabalho manual ou instrumental, mas por realizar um trabalho em determinadas condições e em determinadas relações sociais. Gramsci reconhece o exercício da intelectualidade como condição humana, coletiva, que envolve reciprocidade entre sujeitos sociais que aprendem e ensinam. Política e cultura, economia e filosofia são elementos indissociáveis e, na perspectiva gramsciana, se relacionam, de forma orgânica, se interpenetram na perspectiva de transformação social, de emancipação humana e dizem respeito às formas de acatamento ou questionamento das relações de poder estabelecidas socialmente. A crítica à cultura dominante abre possibilidades de intervenção nas práticas concretas no cotidiano dos grupos subalternizados, na participação nos movimentos sociais, nas relações de trabalho, nos sindicatos, etc.

O intelectual de Gramsci é orgânico (no sentido de vinculação a um grupo social, em que se unem teoria e prática, através da reflexão consciente sobre essa) e voltado a impulsionar a sociedade inteira. Esta organicidade apresenta-se em termos de luta social, histórica e política; é igualmente democrático, no sentido de ser determinado a superar a relação de poder-dominação;

e popular, dada a sua sincronia com a cultura e projetos hegemônicos dos subalternos, na perspectiva da democratização e universalização da cultura e da própria intelectualidade.

Esta caracterização de intelectuais implica uma profunda conexão ao mundo do trabalho, às organizações políticas e culturais mais avançadas que seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade - e a um projeto global de sociedade – além de estar vinculada à cultura, à história e à política das classes subalternas que se organizam para construir uma nova civilização (modernidade). Mesmo não escrevendo um título sob o denominação de “Os intelectuais e a organização da cultura”, Gramsci estava absolutamente convencido de que tal organização é essencial, principalmente a partir da laicização do Estado, posto que a cultura passa a ser resultante das tramas que ocorrem na sociedade civil, não direta e necessariamente subordinada ao Estado configurando um “... sistema das instituições da sociedade civil cuja função dominante é a de concretizar o papel da cultura na reprodução ou na transformação da sociedade como um todo.” (COUTINHO, 2011, p. 17.). É, então, essencial às disputas pela hegemonia, pelo consenso ativo ou passivo, que ocorrem no interior nos aparelhos privados de hegemonia e, sendo assim, a formação dos intelectuais necessários à disputa de projetos de sociedade, não ocorre unicamente no espaço escolar (embora Gramsci atribua à escola um papel destacado), mas também na situação de trabalho, nas fábricas, nos partidos políticos, igrejas e outras organizações e associações da sociedade civil, espaço privilegiado de atuação dos intelectuais. A formação de consciências críticas que possam intervir de maneira proativa nos embates sobre a construção de outra sociedade é essencial às lutas hegemônicas, pois é

“A partir do momento em que um grupo subalterno se torna realmente autônomo e hegemônico, suscitando um novo tipo de Estado, nasce concretamente a exigência de construir uma nova ordem intelectual e moral, ou seja, um novo tipo de sociedade e, portanto, a exigência de elaborar os conceitos mais universais, as armas ideológicas mais sofisticadas e decisivas.” (GRAMSCI, 1986, v. 4, p. 347).

Os intelectuais orgânicos às classes sociais subalternas cumprem, na abordagem gramsciana, uma importante função dirigente e organizativa, mas também no campo da elaboração teórica e ideológica que coincidindo com a prática, possa traduzi-la conceitualmente como uma compreensão das relações sociais e indiquem caminhos para uma virada em direção ao proletariado revolucionário. A vinculação orgânica e real dos intelectuais às classes subalternas é um requisito indispensável, pois a formulação teórica, filosófica a respeito da classe e do sujeito fundamental são indissociáveis, ou seja, os intelectuais não são detentores de uma consciência de

classe que os distingue do operário, que não é apenas o instrumento da transformação social, mas o protagonista por excelência desta transformação. Trata-se de

“... construir sobre uma determinada prática uma teoria, a qual, coincidindo e identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente, eficiente em todos os seus elementos, isto é, elevando-os à máxima potência” (GRAMSCI, 1999, v. 5, p. 195).