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1. CINEMA DE COPPOLA E CINEMA SOBRE O “FEMININO”

1.1 O MUNDO DE SOFIA COPPOLA

1.1.3 A aposta no hibridismo e na multiplicidade

1.1.3.2 Intenções de provocação

O cinema de Coppola está repleto de referências e citações de outras obras artísticas. Em As virgens suicidas existem alusões à pintura impressionista, especialmente aos trabalhos de Claude Monet, no tipo de imagem que se captura das irmãs Lisbon em várias sequências. Isso pela tentativa de imprimir o momento, e pelas qualidades naturalistas que pretendem guardar o movimento, o fugaz. Fica mais clara aquela alusão, quando um dos planos dessas sequências mostra o diário de vida de Cecília, a mais nova das Lisbon, e nele está escrito “Claude Monet (1840 – 1926)”, pertencente à realidade.

Seguindo com as referências de pinturas, existe um plano que remete à As senhoritas de Avignon, (Demoiselles d’ Avignon, 1907), de Pablo Picasso, e que se encontra em The Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York. O quadro marca o momento para falar do cubismo, que rompe com os realismos e o ideal existente sobre o corpo feminino, considerada a primeira tela que desbarata os valores estabelecidos na arte, pelo qual é reconhecido como o fundador da arte moderna. A composição da obra, assim como as formas e os ângulos daquelas cinco mulheres, que seriam prostitutas, adquire especial semelhança com o plano de Coppola, na sequência em que as garotas são castigadas e ficam reclusas em casa, por decisão da mãe e são visitadas por um sacerdote.

Na época em que Picasso pintou a tela, a Europa estava sendo atingida pela sífilis, uma doença infecciosa, mas que, para a qual, havia tratamento (que não era o caso da lepra no mesmo tempo) e, embora os sifilíticos não fossem excluídos como os leprosos, a sífilis era considerada uma doença moral.

Tal como na pintura, o plano apresenta tons ocre-vermelhos e também azuis, a profundidade espacial é semelhante e só o número de mulheres diminui para quatro, porque Cecília já havia se suicidado. É bem provável que os motivos ou a justificativa para a incorporação desse plano se deva, a uma, ou a diversas razões, mas podemos mencionar que a pintura de Picasso evoca os prostíbulos de Avinyó em Barcelona e retrata o erotismo feminino, além das doenças venéreas que foram uma obsessão para o artista. O que importa é que é similar no visual, na fotografia e que, com certeza, não está aí por acaso.

Temos uma imagem que “cita” outra imagem; são, ao mesmo tempo, várias “janelas”, como diz Machado (2002), recortando a primeira para permitir visualizar outras imagens ou até mesmo fragmentos mínimos de outras imagens, como se fosse exatamente uma montagem cubista. “As imagens são compostas agora com base em fontes, entre as mais diversas: parte é fotografia, parte é desenho, parte é vídeo, parte é texto produzido em geradores de caracteres e parte é modelo gerado em computador” (MACHADO, 2002, p. 240)

Em Encontros e desencontros, Kelly (Anna Faris), uma atriz, amiga do marido de Charlotte, chegou em Tóquio para promover seu filme. Kelly em uma das cenas aparece cantando Nobody Does is Better que é do filme The spy who loved me (Lewis Gilbert, 1977). O James Bond desse filme é Roger Moore, que é a "inspiração" para as fotos que Bob está fazendo no Japão para a publicidade de uma marca de whisky. O fotógrafo pede para ele posar como estrela de cinema, algo parecido com Roger Moore.

A referência adquire um tom de graça e ironia e chama a atenção sobre o cinema de Coppola, no sentido de nunca deixar de lado um de seus referentes: o cinema hollywoodiano. Contudo, faz uma citação do cinema italiano também quando os personagens assistem a A dolce vita (1960) de Federico Fellini e Coppola decide mostrar a clássica cena de Sylvia (Anita Ekberg) e Marcello (Marcello Mastroianni) na Fontana di Trevi que, de alguma maneira, rememora o momento único. Além disso o filme foi um “choque cultural” para a época trazendo uma fotografia inspirada na televisão e na publicidade, com muitos planos fechados e um encadeamento narrativo à base de colagens ou justaposições.

Em Maria Antonieta temos outras “citações”. Coppola aproveita o excesso para mostrar a decadência da monarquia francesa e oferece mostras claras de alusão à elementos de Pop Art. Há um plano que não passa despercebido; existe nele um elemento deliberado que joga ao esquecimento ou deslize. Conscientemente aparecem uns tênis lilases da marca Converse, em meio ao desfile de sapatos de época. Esse modelo de tênis, como um protótipo tipicamente “oitentista”, é mesclado com modelos de três séculos atrás (sapatos desenhados por Manolo Blahnik, e inspirados no século XVIII). O plano poderia remeter à obra El Posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado (1991) de Fredric Jameson, que faz uma comparação entre o quadro Um par de botas (1887) de Van Gogh e os Diamond Dust Shoes (Sapatos de pó de diamante, 1980) de Andy Warhol. Jameson propõe duas leituras possíveis para o quadro de Van Gogh. A primeira exige reconstruir uma situação inicial quando surge a obra, para não se referir a ela de uma maneira puramente decorativa; a segunda, baseada no ensaio A origem da obra de arte (publicado em 1950) que realiza Heidegger, em torno da

ideia de que a obra de arte estabelece uma “verdade” com relação a um determinado contexto.

Em síntese, Heidegger terminaria desvelando a “verdade” dos sapatos ao encontrar uma conexão da obra com o universal; ao contrário, Jameson vê neles um espaço semiautônomo por direito próprio, que formaria parte de uma nova divisão do trabalho produzida pelo capital. Referente aos sapatos de pó de diamante e o que “representam”, Jameson dirá: “eles já não nos falam, evidentemente, com a imediatez do calçado de Van Gogh, de fato quase me atreveria a dizer que na realidade não nos falam em absoluto” (JAMESON, 2001, p. 30). Todavia, ambas interpretações tomam os sapatos de Van Gohg como a expressão de uma realidade mais ampla e profunda, que é possível desvendar mediante a interpretação hermenêutica, questão que não seria realizável nos sapatos de Warhol.

Aqui, estas parcerias conceituais nos falam sobre aparência/verdade; superfície/profundidade, enquanto tradicionalmente a verdade e a profundidade dominam sobre a aparência e a superfície; com isso, não é de se estranhar a carga de conotações pejorativas usada nestes últimos termos.

Nos sapatos de Warhol, porém, não há intenção de profundidade ou verdade. Há uma clara vontade de superficialidade, uma dessacralização da grande pintura. É um atrevimento, uma ironia. Essa desconstrução da obra de arte escancara o desencanto com o moderno. Os sapatos de Warhol são elegantes e frios, mas não são uma dupla, quer dizer, um par. “São vários e diferentes. Não há dupla, há diferença. Luzem impecáveis, não usados, quase como uma imagem publicitária…” (DÍAZ, 2000, p. 48).

A imagem técnica seria toda representação plástica enunciada por, ou através de, algum tipo de dispositivo técnico, assim “a imagem, não vindo diretamente do homem, pressupõe sempre uma mediação técnica para exteriorizá-la, ela é sempre um artifício para simular alguma coisa a que nunca podemos ter acesso direto” (MACHADO, 2002, p.222). Finalmente, toda imagem materializada em algum tipo de suporte é o resultado da aplicação de algum tipo de técnica de representação pictórica, que nunca deixa de pensar a estética fazendo parte dela.

Utilizar uma referência do Pop Art não é mais que tentar passar a mesma ideia contida naquele estilo: a superação do teor artesanal e do valor de originalidade da obra de arte. E ainda, a consciência de uma ampla alteração histórica que aparta o homem da destinação transcendente tradicional. No fundo, aquelas citações não parecem ser cópias literais das telas, porém recriações das atmosferas daqueles pintores. Citações que também precisam de um trabalho aproximado com o diretor de fotografia em busca do plano que se quer conseguir e que são uma referência cultural para um espectador mais atento, capaz de atender as inferências propostas.