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1. CINEMA DE COPPOLA E CINEMA SOBRE O “FEMININO”

1.1 O MUNDO DE SOFIA COPPOLA

1.1.4 Realidade e fantasia

No cinema contemporâneo, a simultaneidade e a multiplicidade com que os elementos audiovisuais são processados na tela podem dar a impressão de uma certa frivolidade ou superficialidade, o que Arlindo Machado chama de “um jogo de pirotecnia” com as possibilidades de intervenção da tecnologia. Essa estética da saturação, do excesso, “a máxima concentração de informação num mínimo de espaço-tempo e também da instabilidade (ausência quase absoluta de qualquer integridade estrutural ou de qualquer sistematização temática ou estilística)” (MACHADO, 2002, p. 239).

Considerando o cinema a arte das aparências e fantasias, é capaz de nos dizer como a realidade mesma se constitui como uma construção social e cultural, além de simbólica e ideológica. Neste sentido, a ficção cinematográfica pode ser mais real que a própria realidade. O real se opõe ao imaginário e está à margem do simbólico porque está fora da linguagem, porém, é uma falta que articula o espaço simbólico. Isto é, a fantasia pode funcionar como uma distância que permite afrontar a realidade.

Pode-se afirmar que a filmografia de Coppola se caracteriza, desde o ponto de vista do estilo e de seus objetivos, pela superposição de duas visões que são diferentes, chocam-se entre si e vão subsumindo uma na outra: a fantasia e o realismo. A fantasia privilegia o aspecto fictício e espetacular do cinema; o realismo, sua capacidade para registrar a vida cotidiana. A primeira conduz à valorização do entretenimento e o desfrute; a segunda, à exaltação da condição humana e, por conseqüência, seus medos, obsessões, depressões. Nesse sentido, a convivência que Coppola cria entre personagens e o entorno é interessante. Temos o estado de contemplação letárgico e também o espetacular; como, por exemplo, as festas nos três filmes com fogos de artifício, muitas cores, balões.

A noite da única festa da escola na vida das adolescentes, em As virgens suicidas, é coroada no momento em que Lux e Trip recebem o título de rainha e rei, junto com balões; o ambiente é espetacular. Os fotogramas mostram planos gerais da festa, os personagens dançando e, curiosamente, refletores que fazem parte da iluminação da festa, assim como da parte técnica do próprio filme. A estilização e revelação do aparato fílmico pode ser uma vontade autoral, um sublinhado da produção, entre outros motivos, todavia, de qualquer maneira, marca também a distância entre fantasia e realidade no próprio filme.

Em Encontros e desencontros, na primeira noite que Charlotte e Bob saem juntos, decidem ir para um bar com outros amigos; os jogos de luzes e sombras são muito interessantes. A seqüência dura aproximadamente um minuto e meio e os balões com reflexos parecem estar aí só por uma composição estética. Não são próprios do local e só funcionam aportando grandiloquência ao momento, tanto assim que a cena no bar acaba com seu dono ameaçando com tiros a laser um dos amigos de Charlotte. Todos acabam fugindo, correndo e se perdendo por alguns minutos na cidade.

Em Maria Antonieta, a festa de casamento da arquiduquesa com o delfim é um verdadeiro espetáculo. Eles casam com todo o protocolo monárquico e eclesiástico. Em seguida à cerimônia, os fogos de artifício nos jardins de Versalhes, com as iniciais do casal, tomam conta por vários segundos em meio à alegria e celebração, sobretudo para a recém casada Maria Antonieta. Coppola dá conta

dessa passagem criando uma atmosfera própria com uma velocidade narrativa predominantemente lenta, mesclando a cotidianidade de algumas cenas com outras de fantasia.

A fantasia de que falamos também tem representação na descrição enigmática e celestial das virgens, nas imagens de saturação de Tóquio e nos elementos kitsch dentro do Palácio de Versalhes. Mas estes filmes contêm a rudeza da personalidade humana dentro de um quadro de opressão e contemplação. O propósito da diretora parece não ser só o de entreter, que seria próprio do espetáculo, ao mesmo tempo é evidente que tal tendência começa a perder força ante o desafio que apresenta a tendência contrária: a de potencializar aspectos da condição humana, ainda mais, da condição de mulher.

A imaginação pode se entendida como processo de associação contínua e de reestruturação de imagens e conceitos selecionados pela memória. Não é difícil perceber que a representação mais adequada dessa mesma imaginação não são exatamente códigos sequenciais restritivos e lineares.

O pensamento complexo trabalha com um número extremamente elevado de interações e interferências que se dão entre as unidades do sistema considerado e também com as incertezas, as ambiguidades, as indeterminações, as interferências, de fatores aleatórios e o papel modelador do acaso (MACHADO, 2002, p. 252).

O artifício, como a arte, situa-se no imaginário. O imaginário é a origem aonde se configura a identidade de uma determinada sociedade; nele se inclui tanto o fazer como o conhecer da mesma. Sendo criação constante, e como instituição permanente de si mesmo, caracteriza-se pela permanência e pela mudança; portanto, consiste, primordialmente, na criação de significações, de imagens ou de figuras que são seu suporte. Mas, não deve se entender o imaginário como reflexo ou “espelho de”, senão a possibilidade do espelho surge graças a ele.

Ele determina a funcionalidade de cada sistema institucional, as redes simbólicas e o modo de viver, de observar e de “se fazer” a própria existência. O cinema, feito de imagens e pela sua institucionalização como “meio cultural de massas”, converte-se em um instrumento eficaz para a instituição do imaginário social da sociedade. Por falar nisso, no mesmo período clássico da indústria de Hollywood, o cinema foi utilizado como meio de potencialização de determinados modos de comportamento que favoreciam o desenvolvimento da sociedade de consumo e que difundiam no mundo o modelo de vida americano. Por isso, o cinema, como outras artes, contribuiu para a criação do indivíduo social como consumidor, pela institucionalização de certos traços que caracterizaram os filmes produzidos pela indústria hollywoodiana, entre os que se encontram, por exemplo, a difusão de certos tipos de estereótipos femininos.

Portanto, o cinema participa do imaginário e contribui para a construção desse, quando em seus discursos dá lugar à aparição, perpetuação e mudança de estereótipos que participam na criação de significações sociais que, por sua vez, influem nesse imaginário e nos comportamentos dos indivíduos. Este trabalho, então, tem sua inscrição nesse imaginário, através das personagens femininas de Coppola, a partir dos traços, papéis e das características que elas revelam e objetivam dialogar com a “identidade feminina” atual.