• Nenhum resultado encontrado

A INTENSIFICAÇÃO DO FENÔMENO “MERCANTILIZAÇÃO DA DOENÇA” E O SURGIMENTO DO DEBATE

MARKETING* DESENVOLVIMENTO* PESQUISA E

2. O DEBATE SOBRE A MERCANTILIZAÇÃO DA DOENÇA Neste capítulo será apresentado o debate sobre a mercantilização da

2.3 A INTENSIFICAÇÃO DO FENÔMENO “MERCANTILIZAÇÃO DA DOENÇA” E O SURGIMENTO DO DEBATE

Como visto na seção anterior, a mercantilização da doença não constitui em si um processo social absolutamente novo. Ela assume distintas configurações ao longo de seu desenvolvimento histórico. Como visto, desde o século XVI, na figura dos nostrum mongers que traziam pílulas investidas

com um “tipo de mágica preventiva para toda doença ou indisposição”, já é possível estabelecer o nascimento do movimento que caminhará em direção a este fenômeno.

Contudo, é importante destacar a nova conformação e a intensificação desse processo a partir dos anos 90 motivando um crescente número de publicações, relativas ao tema, nesse período e nos anos 200020. A nova configuração estabelecida com o avanço da lógica do pensamento econômico sobre outras lógicas ocorre, em grande parte, devido o acelerado avanço da tecnologia, tanto no sentido de tecnologia como aplicação do conhecimento científico acerca do produto (no caso, o medicamento) como acerca das formas de como o capital irá abarcar outras formas do pensamento humano. O contexto histórico deste período, como será discutido, será propício para a marcha acelerada deste fenômeno.

Um marco fundamental foi o lançamento do livro “Disease mongers: how doctors, drugs companies, and insurers are making you feel sick” da jornalista estadunidense Lynn Payer, em 1992, o qual descreve a “mercantilização da doença” como a ampliação dos limites da doença. PAYER (1992) sistematizou dez táticas utilizadas para se conseguir isto:

• Tomar uma função normal e inferir que há algo errado com ela e que deve ser tratada;

• Alimentar um sofrimento que necessariamente não exista;

20 A começar pelo ano de 1992, data do lançamento do livro da jornalista Lynn Payer, é

notável o crescente número publicações sobre o tema. Marcelo Leite, jornalista e colunista da Folha de São Paulo em artigo intitulado “Pílulas amargas” no Caderno Folha Ilustrada de 19/03/2005, pág. E5, comenta sobre as publicações das editoras de língua inglesa. Diz ele “Eis uma lista apenas dos livros lançados no ano passado sobre o assunto: "The Truth About the Drug Companies", de Marcia Angell (Ramdon House); "On the Take: How Medicine's Complicity with Big Business Can Endanger Your Health", de Jerome Kassirer (Oxford University Press); "The $800 Million Pill: The Truth Behind the Cost of New Drugs", de Merrill Goozner (University of California Press); e "Powerful Medicines: The Benefits, Risks, and Costs of Prescription Drugs", de Jerry Avorn (Knopf)”.

• Definir uma larga proporção da população como possível sofredora de uma “doença”;

• Definir uma “condição” como deficiência ou desequilíbrio hormonal;

• Conseguir os assessores de mídia certos;

• Modelar as questões de uma maneira muito particular;

• Usar estatísticas de forma seletiva para exagerar os benefícios do tratamento;

• Usar o ponto final errado21;

• Promover o uso da tecnologia como algo que está livre de riscos;

• Tomar um sintoma comum que poderia significar algo trivial e fazê- lo soar como se fosse sinal de uma doença grave.

MOYNIHAN (2006) entende que o eixo central desse debate é a transformação de pessoas saudáveis em doentes para facilitar a venda de tratamentos. Para lograr este objetivo, trabalha-se, basicamente, na alteração das definições de saúde e doença22 em um dos seguintes sentidos:

21 Using the wrong end point é a frase, no original. Payer quer dizer que muitas vezes a

finalidade de uma determinada ação é “falseada”; a autora exemplifica a idéia com a mamografia – diz ela que as campanhas para mamografia se gabam pelo seu sucesso mais por causa do número de mulheres que aderem ao exame do que, necessariamente, se este aumento de uso da tecnologia de fato reduziu o risco de morrer por câncer de mama.

22 Embora seja uma questão de extrema pertinência, não adentraremos na enorme

discussão das definições de “saudável” ou “saúde” e “doente” ou “doença”. Entendemos que estas definições variam em termos históricos e se abrem em maior ou menor medida a determinações extra-sanitárias e em diferentes contextos sociais, mas não se trata, exatamente, do objeto desta dissertação. O que nos importa é, entretanto, verificar que o

• Pelo estreitamento da definição de saudável, de modo que aspectos ordinários da vida possam ser rotulados como patológicos ou

• Pela expansão da definição de doença, fazendo com que problemas moderados ou fatores de risco sejam moldados como doenças.

Segundo o autor, isto ocorre por uma profunda campanha de “conhecimento às doenças” que está mais preocupada em vender do que educar. Toda a doença que for alvo de tratamento por uma medicação passa a ser amplamente divulgada para que os profissionais-chaves e o público em geral passem a conhecê-la. Esta campanha ocorre por alianças informais entre corporações farmacêuticas, empresas de relações públicas, grupos médicos e de pacientes que influenciam a opinião pública e aqueles que definem as políticas de saúde e de medicamentos.

Esta campanha tem diferentes estratégias. Aspectos ordinários da vida sendo medicalizados (como a menopausa); problemas moderados retratados como doenças graves (como a síndrome do cólon irritável); manipulação dos fatores de risco que passam a serem forjados como doenças (como a alta taxa de colesterol no sangue e a baixa densidade óssea), entre outros.

Condições pouco conhecidas pela população e ainda pouco reconhecidas pela comunidade científica são popularizadas, como a síndrome das pernas inquietas e a disfunção sexual feminina. Em ambos os casos, a estratégia é inflar as estimativas de prevalência. No caso da disfunção sexual feminina há um empreendimento de esforços para convencer que 43% das mulheres têm essa condição. Embora esta

debate em questão aponta claramente para um deslocamento destas definições no sentido descrito por Moynihan, possibilitando a inclusão de um número cada vez maior de pessoas no território daquilo que podemos chamar de “doença” e que devem ser tratadas; e necessariamente tratadas com medicamentos, como veremos.

disfunção e sua estimativa são muito contestadas e discutidas, ela é amplamente divulgada como um dado certo.

KANE RACED (2006), da Universidade de New South Wales (Austrália), acredita que a mercantilização da doença combina dois aspectos chamados de “pesadelos da vida contemporânea”:

• A “comodificação” (ou a “mercadorização”) que é a conversão das relações sociais em coisas e

• A “patologização”, especificamente a excessiva patologização na rotina diária de nossas vidas.

A autora entende que, a partir de uma concepção construída historicamente para classificar a vida em termos de “função” e “disfunção”, criou-se uma imposição de um padrão universal de comportamento e de experiências humanas. Esta imposição introjeta uma idéia de que condições materiais e sociais, que afetam nossas vidas, possam ser resolvidas por uma pílula. Ela chama, então, essas pílulas de “drogas para o estilo de vida” (“lifestyles drugs”).

RACED (2006) conclui que reduzir a imposição de normas (como saúde e doença) que possibilitem ter a vida regida por uma coisa (objeto ou produto) representa uma enorme oportunidade de negócios. Forjar esta função às drogas, implicaria em políticas de segurança e valor que estejam menos condicionadas a determinações científicas e autoridades profissionais e mais às avaliações éticas e de entendimento das questões ético-filosóficas sobre o pensamento. Uma das questões cruciais emergentes desta proposição é como, nestas condições, ser possível desenvolver uma verdadeira cultura de “consumidores” informados, não-enganados e éticos.

A emergente preocupação com o assunto desembocou, mais recentemente, na realização I Congresso Mundial Sobre a Mercantilização das Doenças, em abril de 2006, na Austrália.

Os principais temas abordados neste Congresso foram a criação das doenças, vendas de sexo e estilos de vida, questões com a saúde mental, o papel da mídia, mulheres e crianças como alvos e estudos de casos. Os estudos de caso foram transformados em artigos e publicados no site Plos Medicine23.

A seção 2.5 apresentará, resumidamente, alguns casos deste debate, descritos em artigos e publicações. Antes, porém, será apresentado, na próxima seção, o contexto histórico contemporâneo que propiciou a intensificação deste fenômeno e o conseqüente surgimento deste debate.

2.4 O CONTEXTO HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO DA INDÚSTRIA