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A interação por acoplamentos estruturais

FIGURA 9 Manta de artista

4 PROCESSAMENTO E PRODUÇÃO DE SENTIDOS COMPREENDIDOS COMO PROCESSOS SOCIOBIOLÓGICOS

4.4 A interação por acoplamentos estruturais

Para Maturana e Varela (2007), criadores das teorias da Biologia da Cognição, compreender a nossa humanidade, coletivamente, é entender que entre o observador (nós) e o observado (mundo) não existe qualquer forma de separação, mas uma simples cooperação, auto-regenerativa, singular, e circular (MATURANA e VARELA, 2007). Nesse sentido, vida é um processo contínuo de conhecimento.

Segundo os autores, “o conhecimento é um fenômeno baseado em representações que fazemos do mundo” (MATURANA e VARELA, 2007:08). Assim, “[...] se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação”(MATURANA e VARELA, 2007:12).

Os seres vivos são autônomos, no sentido de serem autoprodutores – capazes de produzirem seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem quando vivem: “Todo fazer é um conhecer e todo

conhecer é um fazer [...]. Tudo o que é dito é dito por alguém” (MATURANA e VARELA, 2007:31).

O fenômeno do conhecimento e o que dele decorre são produtos da nossa experiência cognitiva, que, por sua vez, provém da nossa estrutura biológica individual. Somos solitários no primeiro ato de conhecer, e quando criamos, no mundo, o fazemos pelo fenômeno da autopoiese (autoprodução). Somos, portanto, como seres vivos, sistemas que se autoproduzem ininterruptamente. Em função desta nossa estrutura e de nossa organização, torna-se impossível vivermos uma interação do tipo instrutiva. Nesse contexto, torna-se impossível que algo ou alguém, unilateralmente, possa determinar o que acontecerá dentro do organismo de outro ser vivo, sendo possíveis, apenas, relações que possibilitem um encaixe, um

acoplamento estrutural 45, que nos modifica e modifica o meio, incluindo o meio social. Esta estrutura, porém, não é estática (MATURANA e VARELA, 2007): vamos mudando ao longo da vida pelas interações que temos, conseqüência das relações com outros seres vivos e com o meio ambiente.

Nesse sentido, somos autopoiéticos porque estamos sempre nos recompondo, sendo, a um só tempo, produtores e produto de nós mesmos. A ontogenia – como sendo a história das modificações estruturais pelas quais passou um ser – não cessa enquanto este ser existir. Pelo acoplamento estrutural somos provocados e provocamos mudanças numa relação circular, e assim vamos interferindo no mundo.

Dentre inúmeros casos já estudados de permanência de comportamento aprendido entre gerações foi registrado um estudo importante efetivado numa reserva de macacos habitantes em um arquipélogo do Japão (MATURANA e VARELA,2007; SHELDRAKE, 2004). Pesquisadores colocaram batatas e trigo na praia, para que os macacos fossem até a beira da praia e pudessem ser vistos e estudados. Assim, aos poucos, foram se familiarizando com o mar, saindo da selva ali perto, e mudando seu comportamento. Uma destas modificações ocorreu quando uma das fêmeas – chamada Imo e considerada muito inteligente pelos pesquisadores – descobriu que podia comer batatas sem areia, lavando-as na água

45Acoplamento aqui pode ser entendido como uma ligação, uma conexão ou uma interação entre dois sistemas, mediante o quê se transferem energia/conhecimento de um para outro. Nessas interações, o meio apenas desencadeia as modificações estruturais das unidades autopoiéticas, não as determina e nem as informa. “A isso resulta uma história de mudanças estruturais mútuas e concordantes, até que a unidade e o meio se desintegrem” (MATURANA e VARELA, 2007:87).

do mar. Em questão de dias, outros macacos – em especial os mais jovens – também lavavam suas batatas, imitando-a. Em poucos meses esse comportamento novo já estava estendido a todas as colônias adjacentes no arquipélago. Imo, mais tarde, criou outra conduta: pegava o trigo que estava misturado com a areia – e que era, por isso, difícil de comer – mergulhava-o no mar, aguardava que a areia caísse no fundo e o recolhia, limpo, para a superfície, para comê-lo. Igualmente essa conduta se expandiu imediatamente, registrando-se que os mais velhos eram sempre os mais lentos a aderir ao novo comportamento. Nesse sentido, pela dinâmica comunicativa daquele meio social, novas condutas culturais se instalaram, ultrapassando a história particular de cada indivíduo (MATURANA e VARELA,2007)

A linguagem: acoplamentos linguísticos que imprimem evolução

O surgimento da linguagem imprimiu uma enorme evolução nos seres humanos, e revolucionou suas relações sociais em todos os níveis, expandindo os limites do seu sistema nervoso e, por conseqüência, seus cérebros. Ao transpor estes limites, traduzido em acoplamentos estruturais lingüísticos e, portanto, sociais, (MATURANA e VARELA,2007) emergiram a mente e a consciência do homem. Conforme os autores,

Por sermos humanos, somos inseparáveis da trama de acoplamentos estruturais tecida por nossa permanente ‘trofolaxe’46 lingüística. A linguagem não foi inventada por um indivíduo sozinho na apreensão de um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como ferramenta para a revelação desse mundo. Ao contrário, é dentro da própria linguagem que o ato de conhecer, na coordenação comportamental que é a linguagem, faz surgir um mundo. [...] Percebemo-nos num mútuo acoplamento lingüístico, não porque a linguagem nos permita dizer o que somos, mas porque somos na linguagem, num contínuo ser nos

46 Para Maturana e Varela (2007), o acoplamento entre insetos sociais ocorre por intercâmbio de substâncias químicas, onde há um fluxo contínuo de troca de secreções entre membros de uma colônia. Podemos ver isso observando formigas em fila, que trocam conteúdos gástricos cada vez que se encontram. A isso os autores chamam de trofolaxe: a distribução, entre a população, de certa quantidade de hormônios que especificam e diferenciam papéis. Uma abelha rainha, por exemplo, só é rainha porque é alimentada para isso, e não por hereditariedade. Se a retirarmos de seu lugar, o desequilíbrio de sua falta fará surgir outras larvas que se tornarão rainhas. Entre nós, humanos, a

mundos lingüísticos e semânticos que geramos com os outros. ” (MATURANA e VARELA,2007:257)

Sob este ponto de vista, todo o ato humano ocorre na linguagem que produz o mundo, que nos auto produz, e que se cria com os outros na convivência. Para os autores, a linguagem permeia, de maneira absoluta, toda a nossa história de evolução – a ontogenia - como indivíduos, desde o nosso modo de andar e a nossa postura, até a forma de fazermos política.

Nesse contexto, embora estejamos habituados a considerar a linguagem como um sistema de comunicação simbólica, na qual entidades abstratas (símbolos) nos permitem certo movimento, na verdade a linguagem nos envolve como um fenômeno biológico, que inicia quando nascemos, e segue pelos incontáveis contatos/interações/acoplamentos que vão conduzindo nossa história evolutiva. É um operar recorrente, feito por coordenações consensuais de conduta

(MATURANA, 2009:58).

Nesse sentido, palavras não são representantes abstratos de nossa realidade independente e por isso não são inócuas. As palavras que dizemos e o modo como o fazemos revelam nossa forma de pensar e projetam como será o curso do nosso fazer. Logo, o conteúdo de uma conversa numa comunidade jamais será inócuo para aquele grupo, porque irá arrastar seus fazeres numa determinada direção.

Por consequência, “somos como somos em congruência com nosso meio e nosso meio é como é em congruência conosco” (MATURANA, 2009:63). Qualquer que seja nossa dinâmica e nosso meio, assim o seremos. Quando dois seres/organismos trocam interações recorrentes (Figura 13) acontece uma sequência de mudanças estruturais: o meio de A inclui B e C; o meio de B inclui A e C, e o C inclui A e B, conforme o desenho..

FIGURA 13

Para Maturana (2009), nada do que pensamos ou fazemos é trivial ou irrelevante, porque qualquer que seja nosso pensamento ou ação, isso nos afetará, individual ou socialmente, porque terá consequências no domínio das mudanças estruturais a que pertencemos, porque estamos ligados numa mesma história: a de nossa cultura.

Emoções e interações: no humano, o amor.

Para acontecerem interações recorrentes, é necessário haver uma emoção que organize e estabeleça condutas, que também vão resultar em interações recorrentes (MATURANA, 2009; MATURANA e VARELA, 2007). Nesse sentido, a

rejeição e o amor se constituem duas emoções pré-verbais que possibilitam as

mudanças estruturais: a rejeição determina espaços onde as condutas negam o outro na convivência, e o amor organiza espaços onde emergem condutas de aceitação e legitimação deste outro. Ambos não se opõem, porque a ausência de amor não gera a rejeição; ambos têm como seu oposto a indiferença. Mas, por outra via, eles provocam conseqüências opostas quanto ao âmbito de convivência, porque a rejeição culmina em separação, e o amor amplia espaços e gera linguagens, que

B

A

A

B

C

C

abrem mais espaços de interações com o outro, sem exigências, pela aceitação deste outro como legítimo.

Para Maturana (2009),

O amor não é um fenômeno biológico eventual nem especial, é um fenômeno biológico cotidiano. Mais do que isso, o amor é um fenômeno biológico tão básico e quotidiano no humano, que frequentemente o negamos culturalmente criando limites na legitimidade da convivência, em função de outras emoções (MATURANA, 2009:67).

De acordo com relato do autor, conversar é exercitar o amor e a aceitação do outro. Durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, com as trincheiras, os alemães conversavam com os ingleses ou com os franceses, e acabavam minimizando a guerra. Foi preciso proibir o encontro dos inimigos quando estavam em ambientes fora do campo de luta, porque a natural biologia humana, de mamíferos, tinha dificuldade de sempre substituir o amor por indiferença e, em seguida, por rejeição e ódio, que possibilitasse a destruição do inimigo (MATURANA, 2009).

Estamos habituados a inventar discursos racionais que deixam o amor para segundo plano, desvalorizando emoções em função de supervalorizarmos a razão, salientando, para nós mesmos, que isso – a razão – é o que nos distingue dos outros animais.Para Maturana (2009:92) “se queremos entender as ações humanas [...] temos que observar a emoção que a possibilita. [...] Discursos racionais, por mais impecáveis e perfeitos que sejam, são completamente ineficazes para convencer o outro, se o que fala e o que escuta o fazem a partir de diferentes emoções”.

Na medida em que a diversidade de emoções irá determinar ações distintas, podemos inferir que, em igual medida, haverá diversos tipos de relações, porque as relações estarão relacionadas às emoções que as irão sustentar. Nesse sentido, tudo o que considerarmos relações sociais serão relações que, em princípio, são constituídas pela aceitação do outro na convivência – porque sociais - , baseadas, portanto, em sentimentos de amor. Mas, para Maturana (2009), nem todas as relações são relações sociais. As relações de trabalho, por exemplo, não são fundadas na aceitação da legitimação do outro como um outro, As conversas de trabalho não são fundadas na confiança e no respeito, mas no compromisso de

cumprir uma tarefa ou executar um trabalho. O mesmo se dá nas relações hierárquicas, fundadas na supervalorização ou na desvalorização daqueles que constituem ou não o poder o que, para Maturana (2009) não se configuram, também, como relações sociais.

Assim, não somos o tempo todo sociais, apenas naquelas relações nas quais atuamos numa dinâmica de aceitação mútua. Nossas conversas trazem estas estruturações, embora, segundo Maturana (2009), na biologia humana o social é extremamente fundamental e aparece o tempo todo e por toda parte.

4.5 Em síntese

Com a hipótese dos campos de ressonância mórfica, do contágio por memes e da interação humana por acoplamentos lingüísticos e estruturais, avançamos na compreensão de que os aspectos da existência subjetiva – ser, fazer, conhecer – no domínio da vida, trazidos por Morin (2005), podem se apresentar indistintamente, e ao mesmo tempo, num circuito completamente retroativo, onde ação e conhecimento criam a evolução constante. Segundo Morin, “[...] A vida só é viável e possível de ser vivida com conhecimento. Nascer é conhecer” (MORIN, 2005:58).

Nesse sentido, com o propósito de construir síntese via metalinguagem, trazemos o terceiro conjunto dos fios e cores que, tecidos aos anteriores, vem compondo nossa tapeçaria.

A este conjunto de fios/cores chamaremos, de modo provisório, de A dimensão cognitiva coletiva pela ressonância.

Áreas invisíveis de influência entre seres da mesma espécie, uns atuando sobre os outros, dentro e em torno dos organismos, de modo organizado e hierarquizado, podem criar novos comportamentos-forma, produtos de ressonância em dado ambiente, que resultam de interações e afetam os envolvidos. A ótica da ressonância mórfica modifica a compreensão sobre o modo como produzimos sentidos. Podemos estar ligados, bem mais do que imaginávamos, a lembranças e ações passadas, e pela atenção/intenção sofremos influências aos campos aos quais estamos sintonizados. Nessa hipótese, como grupos, podemos nos conectar a

dimensões que aportam um desenvolvimento maior para nossas próprias experiências e para nossa memória individual.

O modo como conhecimentos perpassam grupos ou sociedades, também parecem ocorrer por memes, unidades de informação que se propagam saltando de mente para mente. Estruturas vivas que se realizam fisicamente, memes podem ser compreendidos como sendo vírus, deslocando-se em descendência, entre gerações, ou de modo horizontalizado, como em epidemias. Cada vez que um meme surge, surge um novo replicador, que tenderá a tomar espaço e irá iniciar um novo tipo de evolução e/ou mudança em qualquer entidade cultural, real ou imaginária, como religião, moda, canções, teorias científicas, conceitos, convenções, paradigmas. Como indivíduos, somos autoprodutores: produzimos o que nos produz, pela nossa experiência cognitiva/estrutura biológica individual. A linguagem nos fez evoluir e alterou nossas relações sociais, expandindo nossos limites para vir a ser, por acoplamentos estruturais lingüísticos, regulados por emoções. Nesse sentido, a rejeição e o amor se constituem em duas emoções pré- verbais que regulam a conduta e a ação humana, em espaços de relações sociais.

Compreender e aceitar tais hipóteses teóricas, como a ressonância mórfica, é acreditar que estamos sob influência de infinitas possibilidades para produzir sentidos, criar ações e evoluir dentro de nossa condição de humanos.