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11 Referencial teórico transdisciplinar

11.2 Perspectiva humana

11.2.3 Interatividade: relação homem-tecnologia

A Fenomenologia de Heidegger (1962) apresenta uma visão acerca da dinâmica da interação entre pessoas e os equipamentos disponíveis na experiência cotidiana, na qual a technē seria pertencente à poiesis – algo que se apresenta de determinada forma e serve a finalidades específicas. Ele entende a essência da tecnologia como um modo dos seres humanos conduzirem-se para o mundo: “a ‘vontade de poder’ que se manifesta como ‘vontade de tecnologia’”.

O filósofo destaca ainda a tendência dos objetos a ‘desaparecerem’ quando utilizados; “no momento do uso não há consciência de suas características”. Na mesma linha, Dreyfus (1996) observa que, quando o indivíduo fica absorvido com uma tarefa, a consciência sobre os equipamentos torna-se transparente e a ação intuitiva. Mas, quando falha, torna-se inútil ou indisponível, o equipamento passa a ser notado, pois interrompe o fluxo da atividade (INTRONA, 2011). “Os objetos cotidianos são como partes de nós, perto demais para serem vistos” (TUAN, 1977).

Numa escala mais ampla, tomando-se a relação do homem com o espaço, na qual considera- se que os princípios se aplicam de maneira sistêmica, Walter Benjamin (1968) observa que a "arquitetura sempre representou o protótipo de uma obra de arte, que é percebida pela coletividade em um estado de distração. Arquitetura é apropriada de dupla forma: pelo uso e pela percepção, ou melhor, por tato e visão”. Segundo o filósofo, exceto pelos turistas atentos, edifícios são apreendidos “não tanto pela atenção, mas pelo hábito".

Don Ihde (1990) adota uma base fenomenológica para analisar a variedade e a complexidade da simbiose entre tecnologias e pessoas, estabelecendo quatro tipos para essa relação: (1) corporificada, forma pela qual a tecnologia é incorporada ao sujeito e permeia sua experiência, transformando sua maneira de perceber o mundo (ex: óculos, experiência do espaço através do carro, etc.) – a transparência citada em Heidegger (1962) vem dessa relação, o sujeito passa a não mais notar a tecnologia quanto melhor estiver adaptada ao corpo; (2) hermenêutica, quando a tecnologia é entendida como algo a ser lido e interpretado (ex: painel de instrumentos do carro, display de um artefato, etc.) – navegar por uma cidade não familiar, por exemplo, envolve relações hermenêuticas, de interpretação de mapas e sinais; ao contrário, a relação com os espaços do dia-a-dia ocorre de forma mais inconsciente e intuitiva (WASIAK, 2009); (3) de alteridade, quando a tecnologia é vista como um ente distinto, e o indivíduo relaciona-se com a tecnologia, e não através dela (ex: dispositivos autônomos como robôs, GPS com comando de voz que guia o automóvel, etc.) – pode representar também a relação da tecnologia em uso com as outras ao redor (ex: os outros carros na rua, comunicação M2M, etc.); e (4) de fundo (background), quando a tecnologia é periférica ou fica em segundo plano no foco de atenção

neutra em termos éticos, pois altera ativamente as interpretações humanas da realidade.

Norman (2009) observa que um diálogo bem-sucedido requer conhecimentos e experiências compartilhados. Exige a valorização do ambiente e do contexto, da história e dos diferentes objetivos e motivações dos envolvidos. Ele acredita que esse entendimento mútuo seja um grande desafio, que pode limitar a plena interação homem-máquina, tendo em vista que a comunicação muitas vezes não é fácil nem entre as pessoas. “É necessária uma forma mais natural de interação, que possa ocorrer de modo transparente, sem esforço, para obter uma simbiose harmoniosa entre o homem e a máquina ao realizarem uma tarefa em conjunto”.

Norman (2009) faz um paralelo entre a evolução dos humanos e das máquinas inteligentes e autônomas. Ambos precisam funcionar de forma eficaz, confiável e segura no mundo real; o mundo, por sua vez, impõe as mesmas exigências e requisitos sobre todas as criaturas: animais, humanas e artificiais. Para lidar com a realidade, animais e humanos desenvolveram complexos sistemas de percepção e ação, emoção e cognição. O autor sugere a necessidade de desenvolver sistemas análogos para que as máquinas possam perceber o mundo e agir sobre ele, pensar, tomar decisões e resolver problemas: “máquinas são fundamentalmente diferentes: superiores em alguns aspectos, especialmente em velocidade, potência e consistência; inferiores em outros, especialmente em habilidades sociais, criatividade e imaginação”. Ele acredita que a ausência de empatia e de habilidades sociais nas máquinas seja a causa dos problemas de interação, que não se resolvem com soluções meramente técnicas.

Cibernética (do grego kybernḗt - condutor, timoneiro, piloto) foi definida em obra homônima por Norbert Wiener (1965) como “a ciência da comunicação e controle em animais e máquinas”. A teoria busca explicar a síntese da informação automatizada. Wiener percebeu que era possível desenvolver máquinas capazes de reunir informações sobre o mundo e inferir conclusões lógicas, resultando em ações que a máquina poderia implementar de forma automática, sem a participação de um agente humano. A obra traz conceitos fundamentais, como o de retroalimentação (feedback) e autorregulação, que traduzem a habilidade do autômato (ou sistema) de controlar as próprias atividades.

No livro “The Human Use of Human Beings: Cybernetics and Society”, Wiener (1988) declarou que, se sua visão da Cibernética fosse concretizada, haveria enormes preocupações morais, tornando- se necessário guiar a tecnologia de forma proativa, no sentido de aumentar as capacidades de raciocínio moral em seres humanos e máquinas.

Para Bell e Dourish (2007), a tecnologia desempenha um papel libertador no mundo social, na medida em que aumenta o potencial humano, ampliando a capacidade das pessoas de realizar tarefas

que não conseguiriam de outra maneira. Marshall McLuhan (1965) acreditava que palavras, objetos e meios de comunicação poderiam ser compreendidos como “objetos que estendem as capacidades humanas”: “a roda é uma extensão do pé; o livro é uma extensão do olho; a roupa é uma extensão da pele; o circuito elétrico é uma extensão do sistema nervoso central [...]”.

Das seis premissas propostas por Wilson (2002), apresentadas anteriormente, a terceira estabelece que “nós descarregamos trabalho cognitivo no ambiente”. Em função dos limites de nossa capacidade de processamento de informações (ex: atenção, memória, etc.), nos valemos do ambiente para reduzir a carga de trabalho cognitivo, que passa a armazenar ou até manipular informações que usaremos apenas diante de necessidade, aumentando nossas capacidades cognitivas.

Nesse contexto, Norman (2009) defende uma abordagem mais humana para o design de máquinas que estão interagindo socialmente com as pessoas de forma cada vez mais ampla: “precisamos de aumento, não automação”. Kuniavsky (2010) também alerta para a necessidade de se evitar automação, substituindo as atividades humanas por tecnologias. Em vez disso, ele sugere a mediação, ou suporte às ações das pessoas. Tonkinwise (2014) questiona: “Por que nós, seres humanos, fazemos coisas úteis? Quando as coisas feitas se revelam úteis, parece óbvio - são feitas para facilitar nossas vidas; aumentar a eficácia e eficiência de ‘ser’ humano”.

Para Stiegler (1998), a tecnologia é uma questão filosófica central, “não é apenas algo ‘lá fora’, é também algo imediatamente 'aqui', na própria fonte de nossa humanidade”. Isto significa que quando projetamos novos sistemas tecnológicos também estamos projetando o tipo de humanos que somos (ou nos tornaremos). “Estamos interferindo nas possibilidades de ser das futuras gerações e também na forma como seremos lembrados”.