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11 Referencial teórico transdisciplinar

11.2 Perspectiva humana

11.2.4 Potencialidades (affordances), percepção e ação

“A função das coisas reais é concretizar ou “revelar” a vida em seus vários aspectos. […] Nós habitamos poeticamente quando somos capazes de “ler” as revelações das coisas que compõem nosso ambiente8”.

(Christian Norberg-Schultz, 1980)

8 Citação original: “The function of real things is therefore to concretize or “reveal” life in its various aspects. […] We dwell poetically

Gibson (1966, 1979). Em sua ‘psicologia ecológica’, Gibson procura compreender a interação entre as pessoas e o ambiente.

Nós agimos no mundo explorando suas potencialidades [affordances] físicas – as propriedades funcionais percebidas de objetos, lugares e eventos em relação a um observador. Potencialidades geram relações complementares – oportunidades de ação oferecidas pelo ambiente a um dado organismo. A percepção existe apenas na medida em que percebemos potencialidades (GIBSON, 1979).

A teoria das affordances9 de Gibson estabelece que as coisas são experimentadas

interativamente, como existentes para os seres humanos ao comunicarem suas ‘possibilidades-de-ação’. Percebemos as ‘coisas-no-mundo’ não como formas abstratas que necessitam ser decodificadas, mas como potenciais ‘utilizáveis’, 'extensões-corpo-ação’ que já imaginamos como empregar. “O mundo se apresenta como aquilo que é e não é consumível, e como tal presta-se às minhas ações” (TONKINWISE, 2014). O comportamento emerge a partir de um conjunto de recursos de tarefas potenciais que incluem o corpo, o ambiente e o cérebro (SHAPIRO, 2010). É a ideia da cognição corporificada, tratada anteriormente.

Affordances podem ser entendidas, assim, como propriedades funcionais perceptíveis e acionáveis, que são apreendidas por um indivíduo ao agir no mundo; e as potencialidades do próprio sujeito agente. “O ambiente oferece informação rica e variada, que somos capazes de usar para produzir todos os tipos de comportamentos complexos”. Em essência, importa saber o que o ambiente oferece para ação (GIBSON, 1966, 1979).

Em outras palavras, affordances “denotam todos os comportamentos possíveis (forma) que confirmam o que o usuário espera do objeto (significado)” (KRIPPENDORFF, 1989). Na prática, significa dizer que entendemos que há objetos dos quais podemos beber, como copos, canecas e xícaras; entendemos que podemos sentar em coisas como sofás e cadeiras, e que é possível manter gatos e coelhos como animais de estimação em casa, mas raramente elefantes ou focas. Essas informações abstratamente codificadas orientam nossas ações no mundo. Portanto, ao nos depararmos com um copo de vinho, embora nunca tenhamos visto este exemplar em particular antes, podemos reconhecê- lo como tal pela maneira como se encaixa em nosso modelo – como uma instância da classe abstrata

de copos e recipientes de bebida. “Objetos são “informações físicas”, e referem-se à relação ecológica entre um organismo e seu ambiente” (DOURISH, 2004).

Quando em uso, a ferramenta é uma espécie de extensão da mão, quase um anexo a esta ou parte do próprio corpo do usuário, e assim não mais uma parte do ambiente. Mas quando não está em uso, a ferramenta é simplesmente um objeto destacado do ambiente, que se pode pegar e é portátil, certamente, mas é externo ao observador. [...] Quando consideramos as affordances das coisas, escapamos da dicotomia filosófica [objetivo e subjetivo] (GIBSON, 1979).

É importante ressaltar que a categorização é contextual e as propriedades não são fixas, dependem da relação sujeito-objeto. Ou seja, uma pedra pode ser um objeto em dado momento de interação, ou um periférico, que fica em segundo plano no ambiente, em outro. A percepção varia também em função do observador. A mesma pedra pode ser vista como um míssil ou como um peso de papel, dependendo do contexto (GIBSON, 1979; NORMAN, 2009). Para Krippendorf (1989), “a totalidade do que significa algo para alguém consiste na soma total de seus contextos imagináveis”. O autor ilustra com o exemplo de uma faca: pode ser usada para cortar algo, abrir uma caixa, apertar um parafuso, espetar um pedaço de fruta de um jarro ou limpar as unhas. No contexto da fabricação é um custo, no de vendas tem valor de mercado, no de um roubo, uma ameaça.

Essa teoria tem sido muito utilizada no design de sistemas de informação, na medida em que é possível organizá-los de modo a comunicar as affordances ou potencialidades de cada funcionalidade, e as interações que permitem. Nesse sentido, affordance seria a oportunidade relacional que surge entre as habilidades do corpo e características do mundo; portanto, podem ser modificadas de duas formas: alterando recursos disponíveis no ambiente, ou habilidades estendidas do usuário (OVERHILL, 2012).

Outra abordagem psicológica muito utilizada no design de interfaces, sejam gráficas ou tangíveis, é da Gestalt. A teoria considera o todo na análise do fenômeno comportamental, apresentando uma perspectiva sistêmica para a compreensão das características comuns da percepção, compreendida em termos de processos subjacentes organizados para ajudar o sujeito a significar o mundo. O desafio de design de um sistema passa não somente por apresentar as informações necessárias para a realização de tarefas e objetivos, mas por apresenta-las de maneira a facilitar a percepção. Na prática, a Gestalt oferece um conjunto de princípios que descrevem noções como frente/fundo, agrupamento, simetria, e outras abstrações (KOHLER, 1947; SOEGAARD, 2014; STERNBERG, 2011).

um conjunto dinâmico de elementos que se combinam para formar uma experiência de interação significativa. Pelo efeito Gestalt, reduzimos a realidade combinando todos os elementos de uma ‘forma’ e a simplificamos, independentemente da sua complexidade subjacente, de maneira imediata e natural, pois é perceptual.

Norman (2009) acredita que as interações cotidianas com objetos sejam, em grande parte, intuitivas: “encontramos dezenas de milhares de objetos diferentes ao longo de nossas vidas, mas na maioria dos casos, sabemos exatamente o que fazer com eles, sem instrução ou qualquer hesitação”. A grande questão do design, segundo o autor, é deixar claros o leque de operações possíveis, o progresso da ação e a mudança ocorrida, para evitar frustrações com objetos cotidianos.