• Nenhum resultado encontrado

1 TEATRO INTERCULTURAL, INTERCULTURALIDADE E O PROFESSOR

1.2 INTERCULTURALIDADE

A interculturalidade, assim como os próprios conceitos de cultura e identidade, pode ter muitos significados, entretanto pode se dizer que o conceito faz referência a um intercâmbio, uma interação, um diálogo entre pessoas pertencentes a diferentes culturas. Segundo Xavier

Etxeberria (2001, p. 18), “na interculturalidade a palavra chave é diálogo”. Esta constitui a principal diferença com o multiculturalismo, percebido como a “coexistência de distintas culturas num espaço real, mediático ou virtual” (RODRIGO, 1997, p. 13), como “justaposição de etnias ou grupos numa cidade ou nação” (CANCLINI, 2004, p. 14). O que propõe o multiculturalismo é a convivência das culturas, mas não a interação delas, portanto, no multiculturalismo “a palavra chave é respeito” (ETXEBERRIA, 2001, p. 18) já que os membros de uma cultura devem respeitar os costumes dos da outra sem necessariamente interagir com eles.

A interculturalidade pode ser interpretada também como a relação entre culturas existentes, ou como a elaboração de propostas que possam diminuir as assimetrias culturais que possibilitem procurar soluções consensuadas ou inclusive como “revalorização de identidades étnicas” (TUBINO, 2003a, p. 4), para colocar alguns exemplos. Por causa dessa possibilidade de receber diferentes interpretações, devemos estar cientes de que cada indivíduo que estabelece uma relação intercultural pode ter uma definição própria da interculturalidade, e é por isso que “são estes os chamados à interpretação do intercultural, mas justamente como sujeitos implicados e não como objetos observados” (FORNET-BETANCOURT, 2002, p. 158).

Para Alessandra Dibós (2005, p. 3), existem cinco elementos principais que constituem o conceito de interculturalidade: sua natureza inconclusa, seu enfoque crítico das estruturas de poder, sua consciência histórica, sua disposição dialógica, sua abertura e o caráter solidário para com o outro. A interação entre estes elementos em diferentes graus permite que situações de interculturalidade possam ser desenvolvidas a partir do seu carácter inconcluso, mas sempre desde o diálogo e a solidariedade, levando em conta o contexto particular na qual a relação está acontecendo.

Um dos aspectos mencionados por Dibós que considero muito relevante é a crítica às estruturas de poder, que se apresentam como assimetria e inclusive como opressão e discriminação. Os processos interculturais estão inseridos em sistemas que geralmente apresentam desigualdades tanto nas relações culturais quanto entre os indivíduos. Inclusive, isto pode ser visto nos governos do sistema liberal, que, como apontam Liuba Kogan e Fidel Tubino (2001, p. 58), com sua suposta neutralidade e “políticas de dignidade igualitária” o que fazem é reproduzir a hegemonia da cultura dominante e assimilar nesta as outras culturas. Para Juan Ansión (2007, p. 40) a interculturalidade é a relação entre pessoas de culturas

diferentes que gera trocas que necessariamente não estão livres de conflito, nem de assimetria: “independentemente do caráter conflitivo, violento e injusto da relação, quando se encontram grupos de origens culturais diferentes se produz aprendizado – e aprendizado de ambas as partes” (ANSIÓN, 2007, p. 42). Porém, é importante levar em conta que para lograr desenvolver a interculturalidade é necessário, ao mesmo tempo, diminuir as injustiças (ETXEBERRIA, 2001, p. 30).

Na conjuntura atual esta assimetria entre culturas está inserida nos processos de globalização e desenvolvimento.

1.2.1 Globalização e desenvolvimento 1.2.1.1 Globalização

Os processos da globalização, guiados principalmente pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (PEREZ, 2003, p. 133), estão baseados na contradição. Eles homogenizam ao mesmo tempo em que geram novas desigualdades (CANCLINI, 2004, p.95) e fortalecem as identidades locais (DEGREGORI, 2001, TUBINO, 2003a;). Universalizam (valores, direitos) ao mesmo tempo em que uniformizam, gerando “um mundo monocórdio e infantil” (MAALOUF, 2007, p.117), e inevitavelmente têm conotações diferentes se vistos a partir dos países do norte ou dos países do sul18 (SALAS, 2003, p. 4).

A globalização nos permite, por um lado, acessar uma grande quantidade de conhecimento; conhecer outras realidades e culturas, ampliando nossa visão do mundo; nos comunicarmos com maior facilidade; tendo, inclusive, o potencial de incentivar a escolha das identidades. Por outro lado, a assimetria da influência dos países e culturas mais poderosas sobre as mais fracas é uma característica muito marcante da globalização que, por isso, é percebida como um processo de ocidentalização (SEN, 2007, 170). Como disse Stuart Hall (2003, p. 74):

As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países pobres, do “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global”

18 Apesar de que nem todos os países do hemisfério Norte sejam ricos e os do Sul pobres, existe uma convenção aceita de forma genérica na qual os países do Norte seriam os chamados desenvolvidos, começando pelos Estados Unidos e os países do Sul, os que estão “em desenvolvimento”.

das novas redes de comunicação. Jeans e abrigos – o “uniforme” do jovem na cultura juvenil ocidental – são tão onipresentes no sudeste da Ásia quanto na Europa ou nos Estados Unidos.

Para Milton Santos (2002, p. 19) as “tentativas de construção de um mundo só sempre conduziram a conflitos porque se tem buscado unificar e não unir”. Segundo o autor, ao invés de buscar criar um sistema de relações que procure um benefício “do maior número”, tem se construído um sistema hierárquico que procura perpetuar as relações de dominação “em benefício de alguns”, e é esta a “situação que impera em todo o mundo”. Nessa mesma linha, segundo Tubino (2003b, p. 167) vivenciamos uma globalização econômica que tem por lógica a acumulação de capital, lógica que é perversa porque gera desejos que não pode satisfazer. Esta lógica está ligada aos modelos de desenvolvimento implementados no mundo na modernidade.

1.2.1.2 Desenvolvimento

A palavra desenvolvimento é complexa porque, dependendo do contexto, pode ter significados muito diferentes e até opostos. Mas, neste momento me refiro ao contexto mundial que divide o mundo entre países “desenvolvidos” e “sub-desenvolvidos” ou como se chama hoje, tentando ser mais inclusivo, “em desenvolvimento”. O princípio básico é que esses países, dentro dos quais se encontra o Peru, deveriam ter como objetivo atingir o “desenvolvimento”, medido principalmente a partir da economia do mercado, segundo o modelo dos países “desenvolvidos”19.

Segundo Carlos Iván Degregori (2001, p. 88), o desenvolvimento era percebido como um processo de modernização e, portanto, a tradição e a modernidade eram excludentes. Para Juan Ansión (2003, p. 7) a visão eurocêntrica do desenvolvimento supunha “etapas” que todo país deveria percorrer para alcançar um objetivo único. Segundo o autor, esta visão já foi flexibilizada e questionada, principalmente por pensadores dos países industrializados, mas os “políticos do sul” (América Latina) continuam utilizando o modelo moderno: uniformização destrutora de ecossistemas e do campo, procurando modelos de alta produção sem levar em conta as tecnologias ancestrais, e crescimento incontrolável de megalópoles. Portanto, continua Ansión (p. 8), os políticos e a maioria das pessoas não compartilham essa crítica dos modelos de desenvolvimento da modernidade. Aliás, as vantagens do mito do

19

desenvolvimento não chegaram aos mais pobres, os quais ainda procuram o acesso a serviços básicos como “água, eletricidade, estradas, escolas e aparelhos eletrônicos” (ANSIÓN, 2003, p. 7).

De acordo com Milton Santos (2002, p. 18-19) o discurso do desenvolvimento está sendo substituído pelo da competitividade, a qual, segundo ele, "é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária, conduzida, na prática pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, e com o apoio, as vezes ostensivo, de intelectuais de dentro e de fora da Universidade".

1.2.2 Interculturalidade, globalização e desenvolvimento.

Encontramos então uma tendência homogeneizante levada pelo pensamento moderno que gera, por um lado, benefícios importantes como universalizar a proposta dos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, dilui as diferenças culturais entre as pessoas. Segundo Tubino (2003b, p. 167) os intentos de assimilação levados pelos meios de comunicação, e os intentos de modernização em contextos pós-coloniais geraram efeitos adversos, como, entre outras coisas, o ressurgimento dos fundamentalismos político-religiosos tais como o islâmico e o cristão. Por seu lado, os projetos nacionais sempre foram feitos desde a perspectiva da cultura dominante (TUBINO; ZARIQUIEY, 2007, p. 99) e contribuíram neste intento homogeneizador através de políticas de alfabetização universal na língua dominante, implementadas pelo sistema educativo (KOGAN; TUBINO, 2001, p. 56). Sobre este ponto, Stuart Hall (2003, p.49-50) aponta o seguinte:

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernácula como meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessas e de outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade.

Para os excluídos do sistema dominante, o esforço de lograr a inclusão significa ao mesmo tempo “a perda de componentes tão importantes para a realização pessoal e coletiva como a língua, as crenças, as noções de qualidade de vida, os vínculos sociais, a relação com o território, etc” (LÓPEZ SORIA, 2011). Ante os processos de homogeneização e exclusão a interculturalidade se apresenta como uma alternativa de atuação. Mas, como disse Norma

Fuller (2004, p. 5) a proposta intercultural deve partir de uma “descolonização” na qual os “grupos subalternos” devem reclamar o direito a acessar os conhecimentos universais ao mesmo tempo que recuperam seus conhecimentos ancestrais. Aliás, continua Fuller, esta não deve partir daquela visão “etnocêntrica” do homem moderno que “identifica o homem ocidental com o universal, a razão e o saber” colocando as outras culturas à margem.

Para Ansión (2003, p. 13) o modelo de desenvolvimento encontra seu limite ao não conseguir frear a destruição do planeta, e propõe que uma política de desenvolvimento deva estar baseada numa

política cultural orientada à criação de condições para um diálogo em condições de igualdade, que potencie as diferenças em lugar de ignorá-las ou pretender eliminá- las, que nos faça, por exemplo, a pergunta conjunta de como podemos ao mesmo tempo transformar o mundo e estar em diálogo harmônico com ele.

A globalização e as políticas de desenvolvimento homogeneizantes precisam de uma reflexão dialógica, própria da interculturalidade. Para Miquel Rodrigo (1997, p. 20),

os contatos entre culturas tem sido durante tempo demais um espaço de confronto. A interculturalidade pretende que, quanto antes, transformem-se num espaço de negociação que deve tender a ser um espaço de cooperação, para acabar sendo simplesmente um espaço de humanização.

A interculturalidade não é uma relação em abstrato, sequer é estritamente uma relação entre culturas, ela só é possível na relação entre pessoas, e a forma de se relacionar interculturalmente é o diálogo.