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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES - CEART PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - MESTRADO

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES - CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - MESTRADO

RODRIGO BENZA GUERRA

O PROFESSOR DIALÓGICO: UM APRENDIZADO A PARTIR DO TEATRO INTERCULTURAL NA AMAZÔNIA PERUANA

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RODRIGO BENZA GUERRA

O PROFESSOR DIALÓGICO: UM APRENDIZADO A PARTIR DO TEATRO INTERCULTURAL NA AMAZÔNIA PERUANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Marcia Pompeo Nogueira

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RODRIGO BENZA GUERRA

O PROFESSOR DIALÓGICO: UM APRENDIZADO A PARTIR DO TEATRO INTERCULTURAL NA AMAZÔNIA PERUANA

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teatro, no Programa de Pós-graduação em Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica – da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Orientador(a): _________________________________________________ Prof. Dra. Marcia Pompeo Nogueira

UDESC

Membro: _________________________________________________ Prof. Dra. Tereza Mara Franzoni

UDESC

Membro: _________________________________________________ Prof. Dra. Marina Henriques Coutinho

UNIRIO

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AGRADECIMENTOS

Obrigado

À Família: Dina, Víctor, Lorena, Jose, Luciano, Eduardo, Guida, Gabriela por todo o apoio incondicional e por me ensinar tanta coisa.

À Márcia Pompeo Nogueira pela guia, a parceria, o carinho. Por me ensinar novos caminhos.

À Família Koerner por me receber no Brasil com tanto carinho e por ser um apoio constante neste processo.

Ao pessoal do PPGT, Sandra, Mila e Francine. Sem elas, a vida seria mais difícil.

Ao pessoal do FOFA pelas danças, os risos, as conversas, a troca.

À Equipe da Universidad Intercultural de la Amazonía (UNIA) principalmente ao Eng. Augusto Montes e a prof. Mónica Yon por todo o apoio na realização do projeto.

Aos participantes das oficinas pela entrega, o carinho, a amizade e por me ensinar a dialogar.

A Capa, Gabriela Perona, Alexander Shimpukat, Jeiser Suarez por estar ai sempre.

A Fidel Tubino, por me ensinar a interculturalidade.

A Tereza Franzoni, Marina Henriques, Tim Prentki, Lucia Mantilla, André Sarturi, Efer Silvano. Aos velhos amigos do Peru e os novos amigos do Brasil. A Catalina e Vicente.

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RESUMO

BENZA, Rodrigo. O professor dialógico: um aprendizado a partir do teatro intercultural na Amazônia peruana. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Teatro – Mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2012.

A presente pesquisa de cunho autoetnográfico, tem foco na minha atuação como professor numa experiência de teatro intercultural na Amazônia peruana. Para tal, realizaram-se duas oficinas de teatro com estudantes indígenas e mestiços da Universidad Nacional Intercultural de la Amazonía (UNIA). O processo culminou com a criação de uma peça de teatro baseada nas vivências dos participantes na universidade. A relação entre interculturalidade e diálogo é vista como estrutural. A forma como se constrói interculturalidade é através do diálogo. Neste sentido, o processo de teatro intercultural exige um professor dialógico. A pesquisa começa por apresentar fundamentos teóricos sobre teatro intercultural, interculturalidade, diálogo e princípios dialógicos da prática pedagógica a partir das teorias de Paulo Freire. Continua contextualizando a situação da população indígena e a educação intercultural na América Latina para focar no contexto específico da UNIA e da experiência realizada. A metodologia de trabalho que foi participativa e dialógica, baseou-se na utilização de jogos, histórias e improvisação, principalmente. A pesquisa culmina com a proposta de alguns elementos que podem ajudar a prática do professor de teatro que procure ser dialógico, tais como partir das vivências dos participantes; procurar gerar questionamentos e elaborar novas narrativas; considerar que o processo pedagógico é um encontro de sujeitos; ressaltar a importância do trabalho em parceria; entre outros. O detalhamento da experiência busca indicar os desafios vivenciados e a sua análise crítica, acredito, pode trazer uma maior compreensão das dificuldades vividas por qualquer professor que busque atuar numa perspectiva dialógica.

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ABSTRACT

BENZA, Rodrigo. The dialogical teacher: learning from intercultural theatre in Peruvian Amazon. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Teatro – Mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2012.

This is an autoethnographic research focused on my work as a teacher in an intercultural theater workshop in the Peruvian Amazon. To this end, there were set two theater workshops with indigenous and mestizo students of the Universidad Nacional Intercultural de la Amazonia (UNIA). The process culminated in the creation of a play based on the experiences of the participants in the university. The relationship between interculturalism and dialogue is seen as structural. Interculturalism is constructed through dialogue. In this sense, the intercultural theater process requires a dialogical teacher. The research begins by presenting the theoretical foundations of intercultural theater, interculturalism, dialogue and dialogic principles of pedagogical practice from the theories of Paulo Freire. Continued contextualizing the situation of indigenous people and intercultural education in Latin America to focus on the specific context of the UNIA and the experience itself. The methodology was participatory and dialogic, based on the use of games, stories and improvisation, mainly. The research culminates in the proposal of some elements that can help the practice of drama teacher who seeks to be dialogical, such as working from the participants’ experiences; seek to generate questions and develop new narratives; consider that the educational process is a gathering of individuals; emphasize the importance of working in partnership, among others. The details of the experience indicate the challenges experienced, and its critical analysis, I believe, can bring a greater understanding of the difficulties experienced by any teacher who seeks to act in a dialogical perspective.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O Hangar...63

Figura 2 – O mosquito...81

Figura 3 – Seguir o líder...81

Figura 4 – Jogo de Confiança...81

Figura 5 – Jogo de Confiança...81

Figura 6 – Transformação do objeto...81

Figura 7 – Ação - Reação...81

Figura 8 – Bukea...83

Figura 9 – El jaguar...84

Figura 10 – Criação de cenas...103

Figura 11 – Ensaio...104

Figura 12 – Ensaio da cena do lixo...104

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAFI Centro Amazônico de Formação Indígena

COIAB Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira CVR Comisión de la Verdad y Reconciliación

EIB Educación Inicial Bilíngüe (Ensino Pré-Escolar Bilíngue) EPB Educación Primária Bilíngüe (Ensino Fundamental Bilíngue) FAO Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação IAA Ingeniería Agroforestal Acuícola (Engenharia Agroflorestal Aquícola) IAI Ingeniería Agroindustrial (Engenharia Agroindustrial)

INEI Instituto Nacional de Estadísticas e Informática OIT Organização Internacional do Trabalho

ONU Organização das Nações Unidas

PCP-SL Partido Comunista del Perú – Sendero Luminoso PUCP Pontificia Universidad Católica del Perú

RIDEI Red Internacional de Estudios Interculturales TED Technology, Entertainment, Design

TfD Teatro para o Desenvolvimento TO Teatro do Oprimido

UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 12

1 TEATRO INTERCULTURAL, INTERCULTURALIDADE E O PROFESSOR DIALÓGICO...26

1.1 TEATRO INTERCULTURAL...26

1.1.1 Eficácia no teatro intercultural...30

1.2 INTERCULTURALIDADE...31

1.2.1 Globalização e desenvolvimento...33

1.2.1.1 Globalização...33

1.2.1.2 Desenvolvimento...34

1.2.2 Interculturalidade, globalização e desenvolvimento...35

1.3 DIÁLOGO...36

1.3.1 Diálogo como formador de identidade...36

1.3.2 Conhecendo o outro no diálogo. Encontro de sujeitos...37

1.3.3 Diálogo Intercultural...39

1.4 O PROFESSOR DIALÓGICO A PARTIR DAS TEORIAS DE PAULO FREIRE...39

1.4.1 Invasão e síntese cultural...40

1.4.2 Praxis: Ação e reflexão...40

1.4.3 Partir dos temas dos participantes...41

1.4.4 Codificação – descodificação: Nomear o mundo...42

1.4.5 Aprendizagem mutua...42

1.4.6 Ponto de partida: o contexto dos educandos...43

1.4.7 Objetivo: Problematizar...44

1.4.8 Autoridade vs. Autoritarismo...44

1.4.9 Postura política do educador...45

1.4.10 Educador diferente dos educandos...45

1.4.11 Compromisso...46

2 CONTEXTO GERAL DA EXPERIÊNCIA...48

2.1 CONTEXO PERUANO: SITUAÇÃO INDÍGENA...48

2.1.1 Povos indígenas e discriminação no Peru...49

(10)

2.1.3 Amazônia peruana e desenvolvimento...52

2.2 EDUCAÇÃO INTERCULTURAL. UMA PERSPECTIVA LATINOAMERICANA...54

2.2.1 Universidade e interculturalidade...56

2.2.1.1 Universidades indígenas...56

2.2.1.2 Universidade intercultural...58

2.3 CONTEXTO DA EXPERIÊNCIA...59

2.3.1 A Universidad Nacional Intercultural de la Amazonía (UNIA)...59

2.3.2 As articulações com a UNIA...61

2.3.2.1 Os preparativos...61

2.3.2.2 O convite...63

2.3.3 Os participantes das oficinas...65

2.3.4 Assistencialismo...68

2.3.5 Compromisso pela oficina...70

3 A EXPERIÊNCIA: TEATRO INTERCULTURAL NA UNIA...72

3.1 A METODOLOGIA DAS OFICINAS...72

3.1.1 Primeira oficina...74

3.1.2 Segunda oficina...73

3.1.3 Histórias...74

3.1.4 Jogos...75

3.1.5 A máscara e o jogo: Caminhos de conhecimento pessoal...82

3.1.5.1 A máscara...82

3.1.5.2 Transformação em animal ou planta...85

3.1.5.3 Complementar a ação...86

3.1.5.4 Se transformar em som...86

3.1.6 Improvisação...88

3.2 CRIAÇÃO DE CENAS: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE...89

3.2.1 Criação de cenas na oficina...90

3.2.1.1 Cenas sobre identidade cultural...91

3.2.1.2 Cenas sobre interculturalidade...94

3.2.1.3 Cenas sobre discriminação. Mestiços versus indígenas...96

3.3 A PEÇA: E VOCÊ? ...98

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3.3.2 Preparação da cena do restaurante e da amizade...100

3.3.3 Preparação da cena do lixo...100

3.3.4 Cansaço e confusão...101

3.3.5 Cena da corrupção...101

3.3.6 Detalhes finais...102

3.3.7 A apresentação...102

3.4 AVALIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA...105

4 O PROFESSOR DIALÓGICO: UM APRENDIZADO A PARTIR DO TEATRO INTERCULTURAL...107

4.1 PARTIR DOS PARTICIPANTES...107

4.2 PRAXIS: AÇÃO E REFLEXÃO...111

4.3 CODIFICAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO ATRAVÉS DA CRIAÇÃO CÊNICA...112

4.4 OBJETIVOS: GERAR QUESTIONAMENTOS, CONHECIMENTO E NARRATIVAS...114

4.4.1 Gerar questionamentos...115

4.4.2 Elaboração de narrativas...117

4.5 ENCONTRO DE SUJEITOS...119

4.6 CONFLITO...120

4.7 TRABALHO EM PARCERIA...121

4.8 ATITUDES NÃO DIALÓGICAS...123

4.9 MINHA IDENTIDADE...123

Encerramento...125

Referências...127

APÊNDICE A – Descrição dos grupos étnicos...136

APÊNDICE B – Histórias...140

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INTRODUÇÃO

Porque você voltou a trabalhar na Amazônia? Perguntou-me Camila, minha esposa, enquanto estava realizando a pesquisa de campo na Amazônia peruana. Esta pergunta, tão acertada quanto difícil de responder, tornou-se muito importante para procurar o caminho da pesquisa que, finalmente, focou-se na minha vivência como professor numa experiência de teatro intercultural na Amazônia peruana.

Nunca tentei disfarçar minha “estrangeirice”, as peculiaridades e particularidades da minha própria identidade cultural que é formada por meu próprio conhecimento, religião, locação, educação, viagens. Pelo contrário, tenho tentado trabalhar através da minha diferença a fim de confrontar outras identidades culturais na Índia com a crença implícita de que estamos conectados através da cidadania e, mais profundamente, através das memórias, as feridas, as possibilidades de uma história compartilhada (BHARUCHA, 1996a, p. 163)1.

Identifico-me com esta citação do Bharucha porque, parafraseando Schechner (2006, p. 1) “quem eu sou não é irrelevante”.

Sou um homem branco, da cidade de Lima, de classe media alta, que forma parte da cultura dominante do país, que estudou em uma universidade privada, que cresceu uma família socialista, que começou a se vincular com a Amazônia e pessoas indígenas aos 17 anos, que gosta de viajar, que se sente mais confortável num boteco de bairro do que em um restaurante chique. Sou professor e diretor de teatro que procura na sua prática gerar pontes entre distintos grupos da sociedade para produzir, através do teatro, conhecimento, reconhecimento e aprendizado tanto deles mesmos quanto do outro, do diferente.

Comecei a viajar pelo Peru desde criança tanto com algum dos meus pais quanto em viagens organizadas por minha escola. Graças a essas viagens, desde pequeno tive contato com pessoas diferentes de mim; pessoas de outras regiões, de outras raças, com outros costumes. Na cidade de Lima, onde nasci e morei a maior parte da minha vida, também tive a oportunidade de conhecer outras realidades, principalmente acompanhando minha mãe no seu trabalho nas favelas e, mais uma vez, com a escola, que nos levava à Favela Huascar, na zona de Canto Grande, no distrito de San Juan de Lurigancho. Foi na creche de Huascar onde “ministrei” minha primeira oficina de teatro, quando tinha 12 anos.

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Na adolescência comecei a viajar mais e percebi uma coisa que me incomodava muito: sempre me perguntavam de onde eu era. Peruano, respondia. Você não parece peruano. Isto me acontece até hoje, mas quando era mais novo o fato de não ser reconhecido como peruano, principalmente por ser branco, me deixava muito incomodado.

No meu segundo ano de faculdade, em 1997, conheci a cidade de Pucallpa, na Amazônia peruana, e o povo Shipibo-Konibo2. Naquela viagem realizada com um grupo formado por um professor e cinco estudantes da universidade, fizemos uma curta visita à comunidade indígena de Puerto Bethel. Na véspera da nossa saída, decidiram nos batizar e nos dar um nome shipibo3. Meu nome é Iskonxeca4. Desde esse momento, gerou-se um forte vínculo com

a Amazônia, principalmente com o povo Shipibo-Konibo.

Esta relação me motivou a querer fazer teatro com shipibos, desejo que se concretizou com o projeto Teatro Intercultural: Ucayali 2006. O produtor do projeto foi Jeiser Suarez, jovem shipibo que tinha conhecido naquela viajem do ano 97. Ele, enquanto estava fazendo o convite para as oficinas do projeto, manifestou que muitos jovens mestiços estavam interessados em participar da experiência. Assim, realizamos o primeiro projeto de teatro intercultural5. Seis meses depois, retornei a Pucallpa com um grupo de 11 estudantes da Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), localizada na cidade de Lima, na qual era professor. Realizamos, então, uma segunda experiência de teatro intercultural. Estas experiências deixaram vários questionamentos e inquietudes que foram amadurecendo ao longo de três anos e que se tornaram o ponto de partida da presente pesquisa.

Teatro intercultural Ucayali 2006

Entre os meses de julho e agosto de 2006 aconteceu o projeto Teatro Intercultural: Ucayali 2006, no qual fizemos oficinas de teatro e artes plásticas, durante três semanas, com jovens shipibos e jovens mestiços, estes últimos, no contexto amazônico, são aqueles que não se

2A etnia Shipibo-Konibo, é uma das maiores da Amazônia peruana e habita, principalmente, as margens do rio Ucayali. É muito conhecida pela qualidade do seu artesanato.

3 Utilizarei o termo

Shipibo ao me referir à cultura Shipibo-Konibo.

4Iskon é o nome de uma ave e xeca de um aroma. Eu ganhei esse nome porque fiquei muito amigo de Ronny, filho do chefe da comunidade. Ele pediu para seu pai que fosse meu padrinho. O nome shipibo de Ronny é também Iskonxeca.

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consideram indígenas e que não falam uma língua indígena. Todos os participantes eram moradores da cidade de Pucallpa, na Amazônia Peruana. A dinâmica da oficina se baseou em jogos e improvisações que exploravam a visão que tinham os participantes sobre sua cultura e a cultura do outro. Este trabalho nos permitiu descobrir os preconceitos que tinham uns dos outros, e gerar um espaço de troca e conhecimento mútuo. Como produto da oficina, foram criadas duas peças teatrais a partir dos interesses dos participantes e das improvisações desenvolvidas durante a oficina. Uma das peças era sobre discriminação e a outra sobre contaminação ambiental.

Na peça sobre discriminação queríamos mostrar distintos aspectos da mesma. Na primeira cena, um jovem shipibo se envergonhava da sua origem e, quando seus amigos descobrem que é shipibo, o rejeitam. Na segunda, um casal de mestiços pede água para uma família shipibo, que nega a petição e o manda embora. Na terceira, um grupo de mestiços e um de shipibos, chegam para habitar o mesmo território. Depois de dividir o espaço e brigarem, se dão conta de que colaborando uns com os outros viverão melhor. Terminam dançando e cantando. Na peça sobre contaminação, se apresentava o desmatamento e a extinção de animais (plantas e animais interpretados pelos atores), a contaminação dos rios, e a contaminação gerada quando lixo plástico é jogado nas ruas ou é queimado gerando uma fumaça tóxica.

Viajamos por uma semana pelo rio Ucayali apresentando as peças em quatro comunidades shipibo e na cidade de Pucallpa. Esta experiência foi o trabalho de campo para meu Trabalho de Conclusão da graduação, intitulado O teatro como ferramenta de comunicação intercultural6(BENZA, 2007). Além disso, fizemos um documentário sobre a experiência intitulado Por el mismo río: Teatro Intercultural7 (BENZA, 2009).

A experiência foi bastante enriquecedora para todos os envolvidos e realmente conseguimos gerar um espaço de conhecimento do outro. Para Ephraín Ramírez e Alexander Shimpukat, dois dos participantes shipibos, era a primeira vez que se davam bem com os mestiços (BENZA, 2009). Segundo Jim Sau García e Vera Ramos, dois participantes mestiços, através dos jogos e improvisações puderam conhecer como são os shipibos e apresentar seus próprios

6O texto do trabalho pode se encontrar em: http://tesis.pucp.edu.pe/repositorio/handle/123456789/393

7O documentário completo pode se ver em :

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costumes já que, apesar de viverem tão perto, o contato é pouco comum (BENZA, 2007). Na sistematização da experiência, cheguei à conclusão de que a melhor forma para as pessoas se conhecerem é a convivência. De fato, o momento em que surgiram mais conflitos foi durante a viagem para a apresentação em comunidades, em função da intensa convivência. Os conflitos, nesta experiência, explicitavam que estava acontecendo um conhecimento real. É importante ressaltar que o conflito é parte de qualquer relação, e o importante não é evitá-lo, mas poder resolvê-lo. O caminho para conhecer o outro, então, seria a convivência. Se esta convivência tem um objetivo concreto e compartilhado, potencia-se a possibilidade de conhecimento porque os envolvidos devem trabalhar juntos e estabelecer processos de negociação. O fato de que esse objetivo era a criação de uma peça teatral foi particularmente proveitoso porque esta partiu das inquietudes, dos desejos, e da imaginação dos participantes. Portanto, a peça pertencia a todos e era parte de todos (BENZA, 2007, p. 118).

Um dos participantes shipibos foi Efer Silvano. Num correio eletrônico que me mandou, em março de 2012, por pedido meu, ou seja, cinco anos depois da experiência, ele ressalta o seguinte:

Foi muito acertado juntar os shipibos e mestiços no projeto de teatro, principalmente pela convivência e, sem dúvida, as viagens [às comunidades] foram uma experiência que marcou muito, já que os shipibos conhecem bem, tanto as nossas comunidades quanto a cidade, mas os mestiços talvez nunca tinham visitado uma comunidade nativa e realmente viver essa magnífica experiência de conhecer uma comunidade, a forma de viver, de trabalhar, de vestir é um jeito bom de trocar conhecimentos e ideias. Como em toda convivência, nem tudo é cor-de-rosa, às vezes havia conflitos, mas, no final, sobressaía a união8. (SILVANO, 2012)

Teatro intercultural 2007

Entre fevereiro e março de 2007, realizei outra experiência de teatro intercultural. Para esta, formaram-se dois grupos. O primeiro estava constituído por jovens de Pucallpa organizados por alguns deles que tinham participado no projeto anterior. O segundo grupo foi formado por estudantes de Estudos Gerais Letras da PUCP. Para este projeto, ambos os grupos assumiram tarefas de organização e coordenação, incluindo a busca de financiamentos para realizá-lo.

8Fue un punto muy acertado juntar a shipibos y mestizos por en proyecto de teatro y sobre todo la convivencia

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A dinâmica das oficinas foi similar à da experiência anterior: dois grupos misturados, ou seja, em cada um dos grupos havia jovens shipibos, mestiços de Pucallpa e mestiços de Lima9. Um desses grupos fazia a oficina de teatro e o outro a de artes plásticas. A ideia era novamente partir da visão das pessoas de cada cultura em relação à do outro, mas isto não foi possível. Os jovens de Lima e os de Pucallpa eram tão alheios uns aos outros que sequer tinham preconceitos elaborados, só ideias vagas de como era o outro. Decidimos então trabalhar a partir do que era comum a todos. Depois de pesquisar sobre o amor, a morte, a felicidade, dentre outros temas, surgiu o tema da migração. Criamos coletivamente uma peça que mostrava este fenômeno em várias escalas. Como disse Alexander Shimpukat (informação verbal)10, um dos participantes shipibos de ambos os projetos, “fomos desenvolvendo a migração: os migrantes [...] da comunidade à cidade, da cidade à capital, da capital ao estrangeiro; por necessidades de trabalho ou estudo”11. A peça começava num terminal que podia ser de ônibus, porto ou aeroporto. A partir desse espaço aconteciam cenas que mostravam distintos aspectos da migração, algumas baseadas em movimento, quase dançadas; uma cena cômica que mostrava as absurdas aventuras de um shipibo na Alemanha; monólogos sobre o tema criados por cada um dos atores, e cenas que mostravam distintos conflitos da migração: que acontece com aquele que vai embora, que acontece com a família que fica, com aquele que vai contra a sua vontade. O tratamento do tema esteve mais focado nos sentimentos dos participantes do que na análise social do fenômeno.

Esta experiência foi particularmente intensa para todos em termos de convivência, principalmente porque, durante uma semana, todos fomos morar juntos numa comunidade para terminar de preparar a peça. Esta convivência, naturalmente, gerou conflitos e momentos tensos. A peça, intitulada ¿Te vas? (Você vai embora?) foi apresentada em comunidades nativas, e nas cidades de Pucallpa e Lima.

Para Lucía Mantilla, uma das estudantes da PUCP que participou da experiência, um dos principais valores do teatro no projeto foi que este gera e precisa de confiança e capacidade de escuta. Estas qualidades permitiram que esse grupo de jovens, de três grupos culturais

9 Na Amazônia peruana, os que provêm de Lima são reconhecidos como mestiços de Lima, que são diferentes dos mestiços das cidades amazônicas.

10 SHIMPUKAT, A. 2011. 11

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diferentes (mestiços de Lima, mestiços de Pucallpa e Shipibos), pudessem se comunicar, se conhecer e criar juntos (informação verbal)12.

Não existe uma sistematização da experiência. Perdi meu diário de campo e, particularmente, ela me deixou totalmente exausto. Acredito que uma das razões desta exaustão diz respeito ao meu papel de mediador e, de alguma forma, guia, de dois (ou três) grupos diferentes. Além disso, eu pertencia a um deles. Este pertencimento me dificultava ter objetividade no trabalho, já que minha relação com o grupo de Lima era mais fluida e, até confortável. Isso sem contar com a imagem que os próprios participantes tinham de mim. Já havia trabalhado com vários dos integrantes do grupo de Pucallpa, e todos reconheciam minha função de coordenador do projeto, porém, eles mesmos me percebiam como pertencente ao grupo de Lima.

Passaram vários anos antes que eu quisesse voltar para trabalhar na Amazônia. As experiências realizadas, principalmente a segunda, haviam me deixado exausto tanto física quanto emocionalmente, e com muitas perguntas e vivências que deviam ser processadas.

Quando elaborei o projeto para a presente pesquisa, estava muito interessado no tema da identidade. Partia da minha própria experiência de não ser reconhecido como peruano, e da constatação feita, na prática, de que muitos indígenas, principalmente habitantes da cidade, sofrem o que poderíamos chamar de uma crise de identidade. Eu queria saber como a prática teatral poderia gerar um espaço apropriado para refletir, definir e reelaborar a identidade em contextos de confluência de culturas diferentes. A minha pretensão era de que, na oficina de teatro, os participantes pudessem identificar os distintos elementos que constituem sua identidade, que conseguissem identificar a origem cultural desses elementos, ou seja, se eles vêm da sua cultura originária ou da cultura ocidental e, dessa forma, reelaborar sua própria identidade a partir da exploração teatral desses elementos, escolhendo quais são importantes para definir quem eles são.

Antes de ir para o trabalho de campo comecei a questionar todos esses princípios. Quais seriam essas caraterísticas e valores da cultura ocidental? Quais os dos povos indígenas que, apesar das suas diferenças, compartilham aspectos em comum? Quais elementos da cultura ocidental poderiam ser apropriados pelas distintas culturas sem que estas perdessem sua

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essência? Quais elementos das culturas indígenas poderiam ser mudados? Seria preciso definir uma cultura de pertencimento? Como saber quais são as características oriundas da cultura indígena e quais as adquiridas no contato com o homem ocidental? E, por fim, comecei a questionar os próprios questionamentos, na medida que obedeciam a concepções de cultura e identidade até certo ponto estáticas.

Eu pretendia que os participantes reconhecessem os distintos elementos que constituiam sua identidade, que reconhecessem a origem cultural destes elementos e que tivessem a liberdade de escolher quais elementos os definiam. Tudo em dois meses! Senti que estava traindo todos meus princípios de trabalho e as razões pelas quais acredito que fazer teatro pode gerar benefícios para as pessoas, tais como trabalhar com o corpo, a construção de um espaço coletivo, não se basear apenas na razão, gerar um espaço de conhecimento do outro, entre outros.

Paralelamente a esses questionamentos, estava experimentando uma insegurança e uma ansiedade pouco comuns sobre a implementação da oficina que faria. Sentia que devia atingir os objetivos da experiência porque havia uma pesquisa em andamento. Percebi então que, para lograr os resultados, podia sacrificar o desenvolvimento natural da oficina. O que era mais importante, a pesquisa ou a oficina? Para Phillip Taylor (2003, p. 120), quando se faz uma avaliação dos processos de teatro aplicado, o importante não é comprovar uma hipótese preconcebida, mas deixar que os dados que surgem da própria experiência gerem a hipótese. Decidi, então, deixar temporalmente de lado a preocupação pela identidade intercultural e me focar no trabalho na oficina.

Pensava que queria entender a identidade intercultural dos participantes, mas terminei procurando entender minha própria identidade. Neste sentido, o objetivo do presente trabalho é propor, a partir de um processo pedagógico de teatro intercultural, elementos para a prática do professor dialógico.

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teatro intercultural e, portanto sobre a interculturalidade; sobre o contexto amazônico e a situação dos indígenas; sobre os princípios dialógicos desenvolvidos por Paulo Freire; e sobre distintos aspectos da prática teatral que procuram gerar um benefício nos participantes a través da vivência gerada pelo teatro. Esta pesquisa parte de minhas inquietudes e questionamentos sobre minha própria prática como professor. Responde a uma necessidade de entender minha própria prática. Por isso, a pesquisa se foca nos aspectos dialógicos do professor, de como a experiência do teatro intercultural motivou a reflexão e, finalmente, à elaboração de uma proposta de elementos que, acredito, devem estar presentes na prática do professor dialógico de teatro.

Para tal, no primeiro capítulo inicio com uma breve discussão sobre o significado do teatro intercultural, posicionando-o enquanto uma tentativa de produzir interculturalidade através da prática teatral. A interculturalidade é entendida como um diálogo entre indivíduos de culturas diferentes e como uma forma de resistir às formas como o desenvolvimento e a globalização são levados na região produzindo, por um lado, processos de assimilação e uniformização cultural e, por outro, situações de exclusão e injustiça. O diálogo, como encontro de sujeitos, se apresenta como uma alternativa às situações de assimetria e injustiça e como fundamento da interculturalidade. A seguir, apresento características da prática pedagógica dialógica a partir da teoria de Paulo Freire tais como partir dos temas dos participantes, o fato de que a aprendizagem é mútua e da importância de aceitar que o professor, que é diferente dos educandos, tem uma postura política.

O segundo capítulo apresenta o contexto no qual se realizou a experiência da pesquisa. Começa com a situação geral dos povos indígenas no Peru, com uma ênfase na situação de discriminação e pobreza em que vivem e como são afetados pelos modelos de desenvolvimento. Depois apresento o contexto específico da experiência, contextualizando a educação intercultural na América Latina, especificamente, a relação da população indígena e a universidade e da criação de universidades interculturais, aprofundando na UNIA onde foi realizada a experiência. O capítulo finaliza com a apresentação do contexto específico da experiência, as articulações com a UNIA, e descrição dos participantes e da sua situação.

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desenvolvimento do trabalho teatral e como caminho de conhecimento pessoal; e improvisações nas quais se trabalharam temas como identidade cultural, interculturalidade e discriminação, importantes para o cotidiano dos participantes. Na descrição da primeira oficina se enfatiza a elaboração de máscaras e na segunda o fato de que houve mais variedade étnica nos participantes e que, a partir das improvisações, se criaram as cenas da peça e você? que foi apresentada no final da segunda oficina..

No quarto capítulo, que inclui as considerações finais, proponho alguns elementos para a prática do professor dialógico a partir da experiência de teatro intercultural e das teorias teatrais e dialógicas. Estes elementos são: partir dos participantes; práxis: ação e reflexão; codificação e descodificação; gerar questionamentos e elaborar novas narrativas; encontro de sujeitos; conflito; trabalho em parceria; atitudes não dialógicas. Culmina o capítulo, e a dissertação, com o que eu mesmo aprendi no processo desde que neste tipo de trabalho, quem eu sou, importa.

Abordagem metodológica: Etnografia e autoetnografia

A etnografia é um método de pesquisa qualitativo que tem como fundamento a relação que se estabelece entre o contexto, os sujeitos pertencentes a esse contexto e o pesquisador. Para Laplantine (2004), “a observação etnográfica é uma busca de relacionar objetos, seres humanos, situações e as sensações que são [...] provocadas no pesquisador”. Pode-se ver nesta definição, de um lado, a importância da percepção do pesquisador e portanto da valoração da subjetividade na pesquisa, e de outro, a importância que as sensações, e não só a análise racional, têm para a pesquisa. Segundo Norman K. Denzin (2006, p. 422)

A etnografia não é uma prática inocente. Nossas práticas de pesquisa são performáticas, pedagógicas e políticas. Através da nossa escrita e nossa fala, nós representamos os mundos que estudamos. Estas performances são confusas e pedagógicas. Elas ensinam aos nossos leitores sobre este mundo e como o percebemos. O pedagógico é sempre moral e político e, ao representar um modo de ser e de perceber, desafia, questiona ou endossa o modo oficial e hegemônico de perceber e de representar o outro.

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Minha posição pode ser facilmente resumida. A pedagogia crítica, contida pela performance (auto) etnográfica e, ao mesmo tempo, através desta, procura quebrar e desconstruir performativamente estas práticas metodológicas e culturais em nome de uma “sociedade mais justa, democrática e igualitária” (Kincheloeand McLaren 2000, 285). Eu quero uma nova tradição de pesquisa qualitativa que seja focada nos temas que vêm desse compromisso (DENZIN, 2006, p. 422, ).

A autoetnografia é uma das formas de estudar a própria prática e é particularmente útil no contexto de pesquisa em artes cênicas. Ela surge nas ciências sociais como um método qualitativo de pesquisa ante a necessidade de valorizar a voz, as experiências e as emoções de um pesquisador que forma parte ativa da realidade que está estudando. Como é comum, não existe consenso na definição do termo, mas, dentre as várias definições apresentadas por Denzin, escolho a de Carollyn Ellis (apud DENZIN, 2006, p. 419): “A autoetnografia é... pesquisa, escrita e método que conecta o autobiográfico e pessoal com o cultural e social. Esta forma [de pesquisa] geralmente desenvolve ação concreta, emoção, personificação, autoconsciência, e introspecção”. Esta metodologia foi muito criticada principalmente pela falta de distância do objeto de pesquisa, porém, segundo Adrián Scribano e Angélica De Sena (2009, p. 6, ), “o pesquisador tem o privilégio e a responsabilidade de ser sujeito e objeto”. Esta dupla situação lhe permite elaborar questionamentos e observações particulares, e ter acesso a um entendimento especial do mundo em estudo, do qual ele é parte. Para os autores, os questionamentos sobre a fiabilidade e seriedade da pesquisa, perdem importância frente ao valor da flexibilidade e das possibilidades do pesquisador, que pode incluir na pesquisa seus sentimentos, seus pensamentos e sua própria prática. Eles agregam que o fato de valorizar a experiência não quer dizer falta de rigor na coleta e tratamento de dados. O importante, segundo os autores, é “utilizar a própria experiência para expandir a compreensão sobre o social” (SCRIBANO; DE SENA, 2009, p. 6).

No contexto das artes cênicas, segundo Denise Coutinho (2012, p. 100),

pesquisas acadêmicas em artes continuam pendendo entre dois eixos: ou se querem científicas, sem apresentar itens tradicionalmente valorizados pelas ciências, [...] ou então desviam-se das questões mais comumente trazidas pelas ciências, ocupando-se em relatar processos ou fragmentos de processos.

Nesta mesma linha, para Merce Saumell (2012, p. 253):

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artística] não permite uma distinção clara entre objeto e sujeito, como aparece na investigação científica tradicional. Ela deve abrir-se a um processo crítico e de interrelação com os outros.

De acordo com Coutinho (2012, p. 100) quando as pesquisas em artes cênicas procuram relatar processos ou fragmentos de processos (segundo eixo), a abordagem metodológica “aproxima-se dos estudos etnográficos e autoetnográficos”. Para Sylvia Fortin (2010, p.90), no contexto das artes cênicas, a autoetnografia “caracteriza-se por uma escrita do eu que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si”. A definição da autora enfatisa o diálogo, a troca que deve se dar entre o mundo interior do pesquisador e a cultura. Fortin (2010, p.91) adiciona que “o praticante pesquisador que se volta sobre ele mesmo não pode ficar lá. Seu discurso deve derivar em direção a outros”. Esses “outros” são tanto os outros participantes da prática estudada, quanto as pessoas que terão acesso ao texto teórico.

Além do questionamento da importância da pesquisa frente à prática, e da metodologia, me fiz outro importante questionamento que foi sobre o que precisamente eu queria pesquisar? O teatro em si, ou os participantes e a sociedade, através do teatro? Por que era importante para mim pesquisar no contexto intercultural? Queria pesquisar a identidade dos participantes ou o impacto da experiência da oficina de teatro nas suas identidades? Durante as primeiras semanas da oficina entrevistei alguns participantes. Eles me falaram sobre sua vida, sua cultura, sua vida na universidade. Pensei então que, se queria fazer uma pesquisa sobre eles, não precisaria do teatro.

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Neste sentido, um processo de pesquisa também poderia ser considerado como mais um elemento destes processos. Inclusive, alguns praticantes e teóricos de teatro colocam a etnografia não só como uma metodologia adequada para estudar processos criativos e pedagógicos de teatro, mas apontam que objetivos de práticas como teatro aplicado e drama, têm princípios de trabalho similares aos da etnografia. Para Kate Donelan (2005, 2008), existem várias semelhanças entre a técnica de drama, usada principalmente na escola, e a etnografia. Segundo ela,

Os etnógrafos descrevem, interpretam e representam práticas culturais cotidianas e padrões de comportamento social, próprios e de outros. De acordo com Ely, os pesquisadores etnográficos trabalham para apresentar os pontos de vista dos participantes, para ver a vida através dos seus olhos e “para atingir essa perspectiva transcendental que engloba múltiplas interpretações” (1991, p.221). Desde meu ponto de vista, estes objetivos também podem ser aplicados ao drama. (DONELAN, 2005, p. 77, )

Para Donelan, os praticantes de drama e os etnógrafos têm em comum a “capacidade de se identificar com o ponto de vista do outro”, tendo em conta que, assim como o praticante de drama deve gerar empatia com os papeis e personagens representados, o etnógrafo o faz com “as perspectivas e experiências daqueles a quem está estudando” (DONELAN, 2005, p. 77). Outra característica comum é que ambos precisam ter uma perspectiva dupla e simultânea ou, como disse Burton (apud DONELAN, 2005, p.78, ) “o participante observa e, ao mesmo tempo, é parte de um ambiente dinâmico”. Assim, ele tem que se envolver em uma realidade, em uma cultura, e ao mesmo tempo ter uma perspectiva distanciada para enxergar os acontecimentos. De acordo com a autora, se dá outro ponto de encontro quando em trabalhos artístico/pedagógicos, os professores artistas buscam brindar aos participantes uma experiência na qual possam aceder a “perspectivas e pontos de vista múltiplos”, do mesmo modo como o etnógrafo busca encontrar significados culturais através das vozes dos envolvidos no universo do estudo:

A capacidade de se projetar imaginariamente dentro de uma situação e se identificar com outra perspectiva possibilita que pessoas explorem a experiência humana no drama; possibilita que um professor de drama compreenda as experiências de seus alunos e isto permite ao etnógrafo observar a vida através dos olhos daqueles que ele está estudando”. (DONELAN, 2008 p.165)

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afirma que os etnógrafos acreditam que uma das bases da vida social das pessoas é que os indivíduos interpretam permanentemente seu mundo e, portanto, uma pesquisa sobre esse mundo deve ter em conta as ditas interpretações. Este aspecto se relaciona com o objetivo que, segundo ele, têm os processos do teatro aplicado: “ajudar as pessoas a refletir criticamente sobre o tipo de sociedade na qual vivem” (TAYLOR, 2003, p.1, ). Para ele, a condição de aplicado deste teatro se dá porque a forma artística se converte em um agente transformador no qual participantes e público, se colocam em situações diretas e imediatas onde podem testemunhar, confrontar e desconstruir aspectos de suas ações e das dos outros (TAYLOR, 2003, p.xx). O teatro aplicado de Taylor e a etnografia teriam em comum a tentativa de entender a realidade a partir do ponto de vista dos indivíduos e sua interpretação do mundo. Desta forma, as técnicas utilizadas por Donelan e Taylor apontam para um trabalho de pesquisa coletivo que procura um conhecimento do indivíduo e sua relação com a sociedade.

As técnicas etnográficas de trabalho e o teatro que procura gerar um impacto nos participantes e seu contexto, portanto, têm muitos elementos comuns que podem ser muito proveitosos para a experiência tanto dos participantes quanto do pesquisador.

Para a coleta da informação da pesquisa utilizei, principalmente, dois instrumentos etnográficos: diário de campo e entrevistas. No diário registrei tanto o andamento de cada um dos encontros das oficinas, descrevendo os jogos utilizados e as improvisações, quanto minhas próprias impressões do trabalho do dia. Além disso, colocava minhas reflexões sobre a experiência e o contexto no qual estava desenvolvendo a experiência. Todas as entrevistas foram gravadas em vídeo e contam com o consentimento explícito dos entrevistados para utilizar seus depoimentos na pesquisa. Nas entrevistas dos participantes das oficinas, as perguntas eram bastante gerais. Naquelas realizadas no início da experiência, pedia para eles falarem sobre eles mesmos, sua cultura e sua experiência na universidade. Nas entrevistas posteriores, pedi para eles descreverem o trabalho que estávamos desenvolvendo nas oficinas e suas próprias impressões, principalmente.

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comunidades, para a qual precisavam da disponibilidade das pessoas, portanto entendiam perfeitamente minha petição.

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1. TEATRO INTERCULTURAL, INTERCULTURALIDADE E O PROFESSOR DIALÓGICO

1.1 TEATRO INTERCULTURAL

A forma mais divulgada de teatro intercultural, de certa forma, limita-se a experiências nas quais se utiliza um texto criado em uma cultura diferente, misturam-se manifestações culturais estéticas diversas, ou são experiências nas quais existe participação de artistas de diferentes culturas, cada um deles oferecendo suas próprias manifestações culturais. Esta visão está focada no espetáculo e procura gerar uma estética exótica composta por elementos culturais diferentes.

Para Patrice Pavis (1999, p. 210) “não se poderia falar em teatro intercultural como gênero estabelecido ou uma categoria claramente definida, porém, no máximo, como um estilo ou uma prática de jogo teatral aberta a diversas fontes culturais”. Para ele, esta é uma tendência que se refere mais à encenação do que à escrita dramática. Segundo o autor, a história da encenação intercultural começa ao início do século XX quando artistas como Meyerhold e Artaud se servem de tradições orientais para seu teatro. Nos anos sessenta e setenta, continua Pavis, encenadores como Brook, Mnouchkine, Schechner e Barba utilizaram como fonte as técnicas de práticas não ocidentais, assim como encenadores japoneses, como Suzuki, utilizaram dramaturgia ocidental para seu trabalho. De acordo com Pavis (1999, p. 210-211), este teatro tem uma “preocupação de um confronto, de um intercâmbio ou de uma hibridação das diversas culturas”.

Pavis (1996, 1999) foca sua análise na utilização de referentes culturais, principalmente de culturas orientais, por parte da produção teatral ocidental, principalmente europeia. Boa parte da teoria sobre teatro intercultural está concentrada neste tipo de práticas. Eugene Van Erven, figura importante na teoria sobre teatro comunitário, reconhece que a postura sobre teatro intercultural apresentada por Pavis é a majoritária, mas identifica outra perspectiva baseada em um trabalho mais enraizado no povo:

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Algumas das práticas que procuram gerar grandes produções a partir da estética de culturas diferentes são criticadas porque, mais do que um intercâmbio respeitoso entre indivíduos de culturas diferentes através da performance, em ocasiões se apresenta, através desta, uma interpretação específica sobre os costumes de uma determinada cultura, ou se realiza uma apropriação de elementos de uma cultura, por parte de praticantes de teatro do mainstream, mantendo uma relação colonialista. Rustom Bharucha (2000, p. 1) utiliza o exemplo da montagem Os Iks de Peter Brook que esteve baseada num estudo antropológico feito por Colin Turnbull sobre “uma tribo africana que tem sido desumanizada pela fome e deslocamento”. Segundo Bharucha (2000, p. 2) “Os Iks, com seu uso chic do balbuciado não verbal para sugerir a primitivização dos ‘nativos’ africanos, seguramente entrará na história do teatro intercultural como um exemplo paradigmático da primordialização do Outro como um objeto antropológico”.

Neste mesmo sentido, Kate Donelan apresenta uma crítica feita por Maria Shevtsova (1997) deste tipo de práticas:

Praticantes interculturais como Brook e Schechner são criticados por ignorar os contextos econômico e político dos projetos interculturais, e por ‘saquear’ técnicas de performances não-ocidentais sem respeitar as especificidades das culturas locais das quais surgiram. (DONELAN, 2005, p. 34)13.

Não considero que as produções que procuram utilizar distintas influências culturais para criar um espetáculo sejam, per se, desrespeitosas das culturas, nem acho que todas as produções e experiências interculturais desenvolvidas por criadores como Peter Brook ou Richard Schechner, por exemplo, possam ser consideradas como tais. Aliás, considero que seu trabalho é muito importante e é um referencial significativo para mim. Porém, é importante mencionar que existem posturas divergentes sobre o que significa o teatro intercultural e gostaria de deixar claro que minha posição frente a ele se afasta destas práticas que procuram gerar grandes espetáculos exóticos utilizando estéticas de culturas diferentes. No teatro intercultural ao qual faço referência, gera-se um encontro entre pessoas de culturas diferentes estabelecendo um diálogo através da arte. Este processo, segundo Rustom Bharucha (2000, p. 3), não se limita ao entendimento de outras culturas, mas à interação entre elas através das

13 Donelan (2005) apresenta distintas posturas da relação entre teatro e interculturalidade no capítulo

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disciplinas e linguagens específicas do teatro. Para tal é útil a definição de performance intercultural integradora apresentada por Richard Schechner (2006, p. 304),

A [performance intercultural] integradora está baseada no princípio de que pessoas de diferentes culturas podem não só trabalhar juntas com sucesso, mas harmonizar diferentes estéticas, sistemas sociais e de crenças, criando fusões ou híbridos que constituem um todo unificado. Este não é um caso de uma cultura ou gênero performático absorvendo ou subjugando outros [...] mas de gerar algo novo a partir da base do respeito mútuo e a reciprocidade.

Nesse sentido, o teatro intercultural a que me refiro, aproxima-se da proposta integradora de Schechner, e está mais ligado ao princípio do trabalho intracultural desenvolvido por Bharucha (2000, p. 63), no qual, através do teatro, procura-se “criar novas possibilidades de interação e troca dentro e através da riqueza de tradições ‘vivas’ a partir de marcos temporais e contextos culturais muito diferentes”. Bharucha (2000, p. 62) está mais interessado no contato de grupos culturais que interagem numa mesma região dentro das fronteiras nacionais, do que nas experiências que procuram encontrar o exótico distante para desenvolver novas estéticas.

A forma como a australiana Kate Donelan descreve seu trabalho em parceria com uma professora artista da Quênia num processo de drama intercultural numa escola na Austrália, é um bom exemplo deste outro teatro intercultural: “Nós tentamos desenvolver conhecimentos compartilhados ao mesmo tempo que reconhecíamos as diferenças entre nós e entre os diversos estudantes que participaram da experiência” (DONELAN, 2005, p. 63).

Dentre os principais valores do teatro intercultural como um espaço de encontro entre os diferentes estão seu caráter lúdico, desde que brincar é natural a toda cultura; o fato de utilizar distintas linguagens: oral, visual, cinética; e sua capacidade de estabelecer um contato e uma troca não só a nível racional, mas também sensitivo. Nas conclusões de uma pesquisa anterior sobre teatro intercultural também a partir de uma experiência na Amazônia peruana (BENZA, 2007), coloco o seguinte sobre as vantagens do teatro para a comunicação intercultural:

• Utiliza tanto o pensamento racional quanto o metafórico e sensível na sua relação. Portanto permite que o expressado tenha mais receptividade.

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• No processo de ensaios e criação de um espetáculo, permite que surjam ideias, sensações, que de outra forma continuariam escondidas.

• O trabalho é muito divertido. Portanto, o ambiente motiva a explorar distintas formas de comunicação intercultural.

• Durante as apresentações, a comunicação com o espectador é direta e muito simples. Isto permite que a mensagem tenha mais chances de chegar no seu destino.

• Gera um espaço diferente de convivência (BENZA, 2007, p. 117).

A melhor forma de conhecer o diferente é a convivência. Se esta tem um objetivo, ou seja, se os participantes procuram construir algo juntos, esta convivência se potencializa. Se o objetivo é a criação de uma peça teatral, a convivência é mais intensa porque o produto a construir nasce dos próprios participantes, das suas ideias, sensações e emoções (BENZA, 2007, p. 117-118).

Nesse sentido, o filósofo intercultural Fidel Tubino, me diz o seguinte: “O que me parece importante no teu trabalho de teatro intercultural é que é uma experiência de diálogo, de sensibilidades, não de racionalidades, e acho que esse nível é o fundamental, o outro é um derivado” (TUBINO, 2012b).

De acordo com Tim Prentki e Jan Selman (2000, p. 54-55) as razões principais para utilizar o teatro para a mudança são: “[Sua] natureza criativa, sua efemeridade, flexibilidade, receptividade, sua ‘vida’, sua capacidade para refletir e simbolizar realidades culturais”. Nesta mesma linha, Segundo Kate Donelan (2005, p. 66), a partir de Jonathan Neelands, “no drama14, os jovens podem desafiar imagens estereotipadas e se deslocarem para além de percepções deles mesmos, restritas, e social e culturalmente definidas”. A autora adiciona que o trabalho com o drama “permite aos estudantes se engajarem em experiências sociais diferentes desde uma variedade de perspectivas, e desempenhar e descobrir caminhos alternativos para eles se entenderem a si mesmos e seu mundo” (DONELAN, 2005, p. 67).

A definição de Van Erven (2001, p. 3) sobre o teatro comunitário, também resulta útil porque pode-se dizer que o teatro intercultural e o teatro comunitário têm princípios semelhantes

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como o fato do conteúdo e/ou a forma partirem dos participantes, ou a forma dialógica de trabalho:

em primeiro lugar, privilegia a fruição artística e o fortalecimento dos seus participantes da comunidade. Seu material e estética sempre surgem diretamente (se não exclusivamente) ‘da’ comunidade, cujos interesses tenta expressar. O teatro comunitário, aliás, é uma forma artística poderosa que permite que grupos de pessoas silenciosos (ou silenciados) incluam suas vozes às crescentemente diversas e intrinsecamente inter-relacionadas, culturas locais, regionais, nacionais e internacionais.

1.1.1 Eficácia no teatro intercultural

Existem práticas teatrais que são influenciadas pelo princípio dialógico desenvolvido pelo educador brasileiro Paulo Freire e que compartilham distintos aspectos com o teatro intercultural. Os objetivos específicos e nomes com que se apresentam são variados15, mas as une o princípio de aproveitar as características do teatro para desenvolver experiências que gerem benefícios nas pessoas e nas sociedades. Estas práticas partem da premissa de que todas as pessoas têm o potencial e a possibilidade de fazer teatro (Jhonston, 1998; Prentki e Selman, 2000; Taylor, 2003; Nichollson, 2005; Boal, 2010)16. Como afirma Chris Jhonston (1998, p. 3), o teatro não discrimina porque não existe uma condição física ou mental que impeça a possibilidade de participar dele.

Segundo Judith Ackroyd (2000, p. 5)

o teatro tem sido percebido como uma ferramenta perigosa para muitos que ocupam posições de poder. […] O poderoso potencial do teatro para influenciar, para gerar consciência, para informar, ou seja, para transformar, é e tem sido amplamente assumido.

Neste sentido é útil a descrição de Richard Schechner sobre os conceitos de eficácia e entretenimento a partir da pesquisa – em conjunto com o antropólogo Victor Turner - sobre o teatro e o ritual. Schechner (2006, p. 70-80) afirma que a diferença entre teatro e ritual é que o primeiro é realizado para entreter e a principal característica do segundo é sua eficácia, ou seja, a intenção de gerar uma mudança, uma transformação. Porém, não os coloca como opostos, mas como extremos de uma mesma linha contínua (continuum), afirmando que todo teatro tem um grau de eficácia e todo ritual um grau de entretenimento. Schechner não limita

15 Teatro em comunidade, Teatro para o desenvolvimento, Teatro aplicado, Teatro do Oprimido, Teatro popular, dentre outros.

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o continuum à relação entre teatro e ritual. Por exemplo, também pode se traçar um continuum entre o teatro e eventos públicos tais como manifestações de rua (Schechner, 2012, p. 97, 101). Para Jan Cohen-Cruz (2008, p. 118), uma das características do teatro baseado na comunidade é a hifenação, que têm a ver com seu caráter dual entre o ritual/eficácia e arte/entretenimento apresentado no continuum proposto por Schechner. Nesse sentido, objetivos como gerar nos participantes experiências positivas ou utilizar o teatro como meio de alfabetização, obedeceriam ao caráter hifenado da performance baseada na comunidade (COHEN CRUZ, 2008, p. 119).

De acordo com Donelan (2005, p. 258) o antropólogo Victor Turner acreditava que o teatro é um meio importante para a transmissão da interculturalidade: “ele considera ‘a representação e performance de experiências dos outros culturalmente transmitidas’ como a base para o entendimento imaginativo e a comunicação ‘transcultural’”.

O objetivo do teatro intercultural é gerar questionamentos através do contato e conhecimento do outro, do diferente, na experiência teatral, produzindo, neste encontro, novas narrativas. O teatro intercultural, como qualquer tipo de teatro, procura entreter, e sua eficácia, que neste caso é de grande importância, está orientada à produção de interculturalidade, ou seja, do diálogo entre sujeitos de diferentes culturas, através da experiência teatral.

A produção do diálogo no teatro intercultural pode se dar de formas muito diferentes. Por exemplo, se um grupo teatral de uma cultura se apresenta para outra, já poderia se produzir um diálogo intercultural entre os artistas e o público17. Porém, para este trabalho, estou me centrando em uma experiência na qual pessoas de culturas diferentes participam de um processo pedagógico de teatro intercultural, conhecendo-se e se reconhecendo, produzindo diálogo e, portanto interculturalidade.

1.2 INTERCULTURALIDADE

A interculturalidade, assim como os próprios conceitos de cultura e identidade, pode ter muitos significados, entretanto pode se dizer que o conceito faz referência a um intercâmbio, uma interação, um diálogo entre pessoas pertencentes a diferentes culturas. Segundo Xavier

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Etxeberria (2001, p. 18), “na interculturalidade a palavra chave é diálogo”. Esta constitui a principal diferença com o multiculturalismo, percebido como a “coexistência de distintas culturas num espaço real, mediático ou virtual” (RODRIGO, 1997, p. 13), como “justaposição de etnias ou grupos numa cidade ou nação” (CANCLINI, 2004, p. 14). O que propõe o multiculturalismo é a convivência das culturas, mas não a interação delas, portanto, no multiculturalismo “a palavra chave é respeito” (ETXEBERRIA, 2001, p. 18) já que os membros de uma cultura devem respeitar os costumes dos da outra sem necessariamente interagir com eles.

A interculturalidade pode ser interpretada também como a relação entre culturas existentes, ou como a elaboração de propostas que possam diminuir as assimetrias culturais que possibilitem procurar soluções consensuadas ou inclusive como “revalorização de identidades étnicas” (TUBINO, 2003a, p. 4), para colocar alguns exemplos. Por causa dessa possibilidade de receber diferentes interpretações, devemos estar cientes de que cada indivíduo que estabelece uma relação intercultural pode ter uma definição própria da interculturalidade, e é por isso que “são estes os chamados à interpretação do intercultural, mas justamente como sujeitos implicados e não como objetos observados” (FORNET-BETANCOURT, 2002, p. 158).

Para Alessandra Dibós (2005, p. 3), existem cinco elementos principais que constituem o conceito de interculturalidade: sua natureza inconclusa, seu enfoque crítico das estruturas de poder, sua consciência histórica, sua disposição dialógica, sua abertura e o caráter solidário para com o outro. A interação entre estes elementos em diferentes graus permite que situações de interculturalidade possam ser desenvolvidas a partir do seu carácter inconcluso, mas sempre desde o diálogo e a solidariedade, levando em conta o contexto particular na qual a relação está acontecendo.

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diferentes que gera trocas que necessariamente não estão livres de conflito, nem de assimetria: “independentemente do caráter conflitivo, violento e injusto da relação, quando se encontram grupos de origens culturais diferentes se produz aprendizado – e aprendizado de ambas as partes” (ANSIÓN, 2007, p. 42). Porém, é importante levar em conta que para lograr desenvolver a interculturalidade é necessário, ao mesmo tempo, diminuir as injustiças (ETXEBERRIA, 2001, p. 30).

Na conjuntura atual esta assimetria entre culturas está inserida nos processos de globalização e desenvolvimento.

1.2.1 Globalização e desenvolvimento

1.2.1.1 Globalização

Os processos da globalização, guiados principalmente pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (PEREZ, 2003, p. 133), estão baseados na contradição. Eles homogenizam ao mesmo tempo em que geram novas desigualdades (CANCLINI, 2004, p.95) e fortalecem as identidades locais (DEGREGORI, 2001, TUBINO, 2003a;). Universalizam (valores, direitos) ao mesmo tempo em que uniformizam, gerando “um mundo monocórdio e infantil” (MAALOUF, 2007, p.117), e inevitavelmente têm conotações diferentes se vistos a partir dos países do norte ou dos países do sul18 (SALAS, 2003, p. 4).

A globalização nos permite, por um lado, acessar uma grande quantidade de conhecimento; conhecer outras realidades e culturas, ampliando nossa visão do mundo; nos comunicarmos com maior facilidade; tendo, inclusive, o potencial de incentivar a escolha das identidades. Por outro lado, a assimetria da influência dos países e culturas mais poderosas sobre as mais fracas é uma característica muito marcante da globalização que, por isso, é percebida como um processo de ocidentalização (SEN, 2007, 170). Como disse Stuart Hall (2003, p. 74):

As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países pobres, do “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global”

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das novas redes de comunicação. Jeans e abrigos – o “uniforme” do jovem na cultura juvenil ocidental – são tão onipresentes no sudeste da Ásia quanto na Europa ou nos Estados Unidos.

Para Milton Santos (2002, p. 19) as “tentativas de construção de um mundo só sempre conduziram a conflitos porque se tem buscado unificar e não unir”. Segundo o autor, ao invés de buscar criar um sistema de relações que procure um benefício “do maior número”, tem se construído um sistema hierárquico que procura perpetuar as relações de dominação “em benefício de alguns”, e é esta a “situação que impera em todo o mundo”. Nessa mesma linha, segundo Tubino (2003b, p. 167) vivenciamos uma globalização econômica que tem por lógica a acumulação de capital, lógica que é perversa porque gera desejos que não pode satisfazer. Esta lógica está ligada aos modelos de desenvolvimento implementados no mundo na modernidade.

1.2.1.2 Desenvolvimento

A palavra desenvolvimento é complexa porque, dependendo do contexto, pode ter significados muito diferentes e até opostos. Mas, neste momento me refiro ao contexto mundial que divide o mundo entre países “desenvolvidos” e “sub-desenvolvidos” ou como se chama hoje, tentando ser mais inclusivo, “em desenvolvimento”. O princípio básico é que esses países, dentro dos quais se encontra o Peru, deveriam ter como objetivo atingir o “desenvolvimento”, medido principalmente a partir da economia do mercado, segundo o modelo dos países “desenvolvidos”19.

Segundo Carlos Iván Degregori (2001, p. 88), o desenvolvimento era percebido como um processo de modernização e, portanto, a tradição e a modernidade eram excludentes. Para Juan Ansión (2003, p. 7) a visão eurocêntrica do desenvolvimento supunha “etapas” que todo país deveria percorrer para alcançar um objetivo único. Segundo o autor, esta visão já foi flexibilizada e questionada, principalmente por pensadores dos países industrializados, mas os “políticos do sul” (América Latina) continuam utilizando o modelo moderno: uniformização destrutora de ecossistemas e do campo, procurando modelos de alta produção sem levar em conta as tecnologias ancestrais, e crescimento incontrolável de megalópoles. Portanto, continua Ansión (p. 8), os políticos e a maioria das pessoas não compartilham essa crítica dos modelos de desenvolvimento da modernidade. Aliás, as vantagens do mito do

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desenvolvimento não chegaram aos mais pobres, os quais ainda procuram o acesso a serviços básicos como “água, eletricidade, estradas, escolas e aparelhos eletrônicos” (ANSIÓN, 2003, p. 7).

De acordo com Milton Santos (2002, p. 18-19) o discurso do desenvolvimento está sendo substituído pelo da competitividade, a qual, segundo ele, "é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária, conduzida, na prática pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, e com o apoio, as vezes ostensivo, de intelectuais de dentro e de fora da Universidade".

1.2.2 Interculturalidade, globalização e desenvolvimento.

Encontramos então uma tendência homogeneizante levada pelo pensamento moderno que gera, por um lado, benefícios importantes como universalizar a proposta dos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, dilui as diferenças culturais entre as pessoas. Segundo Tubino (2003b, p. 167) os intentos de assimilação levados pelos meios de comunicação, e os intentos de modernização em contextos pós-coloniais geraram efeitos adversos, como, entre outras coisas, o ressurgimento dos fundamentalismos político-religiosos tais como o islâmico e o cristão. Por seu lado, os projetos nacionais sempre foram feitos desde a perspectiva da cultura dominante (TUBINO; ZARIQUIEY, 2007, p. 99) e contribuíram neste intento homogeneizador através de políticas de alfabetização universal na língua dominante, implementadas pelo sistema educativo (KOGAN; TUBINO, 2001, p. 56). Sobre este ponto, Stuart Hall (2003, p.49-50) aponta o seguinte:

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernácula como meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessas e de outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade.

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Fuller (2004, p. 5) a proposta intercultural deve partir de uma “descolonização” na qual os “grupos subalternos” devem reclamar o direito a acessar os conhecimentos universais ao mesmo tempo que recuperam seus conhecimentos ancestrais. Aliás, continua Fuller, esta não deve partir daquela visão “etnocêntrica” do homem moderno que “identifica o homem ocidental com o universal, a razão e o saber” colocando as outras culturas à margem.

Para Ansión (2003, p. 13) o modelo de desenvolvimento encontra seu limite ao não conseguir frear a destruição do planeta, e propõe que uma política de desenvolvimento deva estar baseada numa

política cultural orientada à criação de condições para um diálogo em condições de igualdade, que potencie as diferenças em lugar de ignorá-las ou pretender eliminá-las, que nos faça, por exemplo, a pergunta conjunta de como podemos ao mesmo tempo transformar o mundo e estar em diálogo harmônico com ele.

A globalização e as políticas de desenvolvimento homogeneizantes precisam de uma reflexão dialógica, própria da interculturalidade. Para Miquel Rodrigo (1997, p. 20),

os contatos entre culturas tem sido durante tempo demais um espaço de confronto. A interculturalidade pretende que, quanto antes, transformem-se num espaço de negociação que deve tender a ser um espaço de cooperação, para acabar sendo simplesmente um espaço de humanização.

A interculturalidade não é uma relação em abstrato, sequer é estritamente uma relação entre culturas, ela só é possível na relação entre pessoas, e a forma de se relacionar interculturalmente é o diálogo.

1.3 DIÁLOGO

1.3.1 Diálogo como formador de identidade

Imagem

Figura 1 O Hangar
Tabela 2: Lista de participantes da 2ª oficina
Figura 8 Bukea
Figura 9 El jaguar
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