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INTERDISCURSO E MEMÓRIA

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É com base no interdiscurso que o sujeito diz de si e das situações que o rodeiam. O interdiscurso disponibiliza o retorno a experiências vividas que afetam o sujeito, significando novamente em uma situação discursiva dada. O sujeito é formado pelos dizeres de outros sobre ele, ainda que a isso ele não tenha acesso. Esse dizer retorna sobre a forma de um pré-construído, de um já-dito. De acordo com Pêcheux

(1988, p. 99), podemos pensar o pré-construído como “o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente em oposição ao que é construído pelo enunciado”.

Orlandi (2000, p. 31) define o interdiscurso como:

[...] aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra.

Ou seja, em um funcionamento discursivo apresentado por um sujeito, o dizer retorna em forma de um pré-construído, um já-dito revelador de uma memória discursiva. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa. São sentidos já ditos em outros momentos, em outros lugares, por outras pessoas, e que permanecem produzindo efeitos. Desse modo, o interdiscurso, ou memória, é tudo que fala antes do sujeito, e o faz pensar que ele é consciente do que diz.

Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. No interdiscurso, diz Courtine (1984), fala uma voz sem nome (ORLANDI, 2000, p. 33-34, grifos da autora).

Vale lembrar que, na concepção de Pêcheux (1999), o conceito de memória não denota acontecimentos, lembranças ou recordações. Trata-se de uma memória de natureza discursiva, de natureza histórico-social e que deve sofrer um apagamento aparente para que o sujeito possa dizer.

Conforme é possível observar, para a AD, o sujeito é constituído através da sua historicidade, pelas suas aderências em outros dizeres, nas vozes de outros interlocutores, marcados pela ideologia, que deslizam sob a luz do acaso, do jogo e dos equívocos. Os efeitos da história é que constituem a memória, no entanto não estamos falando da história como sucessão de fatos já dados, dispostos em seqüência cronológica, “mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam” (ORLANDI, 1996 apud MANZAN, 2005, p. 71). Para a AD, o que interessa não são os fatos, mas a significação que não é entendida como algo exterior, mas significando a historicidade como história do sujeito e do sentido. Dessa forma,

[a]o produzir sentido o sujeito se produz, ou melhor, o sujeito se produz produzindo sentido. É esta a dimensão histórica do sujeito – seu acontecimento simbólico – já que não há sentido possível sem história, pois é a história que provê a linguagem de sentido, ou melhor, de sentidos (MANZAN, 2005, p. 71).

No interdiscurso, a formulação discursiva se dá através de uma relação múltipla com outros discursos, que possibilitam o deslize do dizer e a constituição de outros dizeres. É nessa complexidade de deslize, transformação do dizer, que se processa a historicidade. As palavras significam pela história e pela língua, não é propriedade do sujeito, este “diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele” (ORLANDI, 2000, p. 32), pois os seus dizeres são da ordem de uma construção do inconsciente a qual não tem entrada diretamente.

A possibilidade do discurso se efetiva em uma relação direta entre o já-dito e o que está se dizendo, em que o discurso se concretiza na elaboração (intradiscurso), que é o que estamos dizendo no momento dado. Assim, as formulações que se constituem ao longo da história, memória (interdiscurso) é que tornam possível o sujeito se significar. Então, o dizer se organiza através do jogo da memória (constituição) e da atualidade (formulação) (ORLANDI, 2000).

No interdiscurso, a memória é afetada pelo esquecimento. Segundo Pêcheux (1988), existem dois tipos de esquecimento. O primeiro, também chamado de esquecimento ideológico, é aquele que provoca a ilusão de sabermos do que falamos. Na verdade ele age encoberto por um véu (inconsciente), no sentido que faz acreditar que somos origem daquilo que falamos. Entretanto, somos afetados pela ideologia e pelo inconsciente. Já o segundo, é o esquecimento da ordem da enunciação, que produz a impressão de haver uma ligação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Por esse motivo, acreditamos que o que falamos só pode ser dito de uma maneira e não de outra. O teórico francês define o segundo tipo de esquecimento como o

“esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX, 1988, p. 173, grifos do autor).

Salientamos que os processos do dizer já estão em curso quando nascemos e é o sujeito que entra nesse processo para se constituir. Os discursos não se originam em nós. Mas é nesse jogo entre o diferente e o mesmo, entre o já-dito e o “a se dizer” que os sujeitos e os sentidos se movimentam. A língua e a história são determinantes para que haja sentido e sujeitos. O esquecimento é fundamental para que o sujeito e os sentidos imprimam marcas de pertencimento em uma dada realidade discursiva (ORLANDI, 2000).

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