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INTERFACES ENTRE O LETRAMENTO DO EDUCANDO/DO EDUCADOR

Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade.

Paul Ricoeur

No Brasil42, nos últimos vinte anos, tem sido cada vez mais frequente a discussão acerca do conceito de letramento pelo fato de dizer respeito tanto às questões de proficiência na língua materna quanto às questões culturais, sociais e políticas presentes na linguagem cotidiana.

Nesse período, notamos que os sentidos do letramento transformaram-se em função das necessidades sociais e dos estudos acadêmicos em torno do conceito. Um breve olhar sobre o percurso histórico dessas mudanças revela momentos marcantes que merecem destaque.

Em 1986, Mary Kato, em seu livro No mundo da escrita, apresenta o termo letramento como sinônimo de uma formação na área de linguagem que visa tornar o “sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade individual de crescer cognitivamente e para atender às várias demandas de uma sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de comunicação” (KATO, 1993, p. 7).

Essa concepção de letramento questionava os projetos em língua materna que não garantiam a formação dos cidadãos letrados, isto é, que não garantiam o domínio da norma- padrão ou da língua falada culta, entendido como consequência do letramento.

Quase dez anos depois, em 1995, Tfouni publica a obra Letramento e alfabetização, na qual evidencia as relações entre alfabetização e letramento nos processos de aquisição da

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Não trataremos das discussões que ocorrem há mais tempo na Inglaterra, Estados Unidos e França em torno da noção de letramento pela limitação do escopo deste trabalho.

língua escrita. Nessa obra é destacado o conceito de letramento como consequência das práticas sociais de leitura e escrita que geram mudanças na sociedade, ou seja, trata-se de uma abordagem que se situa no âmbito social, superando a visão de alfabetização tomada em âmbito individual:

proponho mostrar que o termo “iletrado” não pode ser usado como antítese de “letrado”. Isto é, não existe, nas sociedades modernas, o letramento “grau zero”, que equivaleria ao “iletramento”. Do ponto de vista do processo sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades industriais modernas são “graus de letramento”, sem que com isso se pressuponha sua existência (TFOUNI, 2002, p. 23).

Após análise das perspectivas a-históricas e históricas de letramento, principalmente de tradição norte-americana, percebe-se que há uma ênfase quase unânime na existência de uma relação de causa e efeito entre aquisição da escrita e o aparecimento do raciocínio lógico. Contudo, o acompanhamento de adultos não-alfabetizados em processo de aquisição da língua escrita revelou que

a eficácia histórica da escrita está ligada a um processo de produção de sentidos, que se tornam permanentes e que acabam criando mecanismos de inclusão e exclusão; um jogo ideologicamente regido, em que o “mais fraco” (antropologicamente falando) nunca leva vantagem (TFOUNI, 2002, p. 83).

Na mesma época, Kleiman publica a obra Os significados do letramento: uma

perspectiva sobre a prática social da escrita na qual explica que o termo letramento passou a

ser utilizado para separar os estudos sobre o impacto social da escrita e os estudos sobre alfabetização. Apresenta uma definição apoiada nas práticas sociais de leitura e escrita, sobretudo em situações de ensino e aprendizagem da língua escrita.

As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita (KLEIMAN, 1995, p. 19).

Pouco tempo depois, em 1998, são reunidos três artigos de Soares, produzidos na década de 90, no livro Letramento: um tema em três gêneros, que enfatiza a natureza

complexa e multifacetada do letramento, por ser, ao mesmo tempo, resultado da ação de ensinar e de aprender a escrever, o estado ou condição que um indivíduo ou grupo social adquire em consequência das práticas sociais de leitura e escrita.

O esforço que também realiza para distinguir alfabetização de letramento permitiu identificar as seguintes características específicas, associadas a cada termo, como destacamos no Quadro 3, a seguir.

Quadro 3 – Letramento e Alfabetização

LETRAMENTO ALFABETIZAÇÃO

• Corresponde ao exercício efetivo e

competente da tecnologia da escrita tanto na produção quanto na compreensão de textos.

• Ocorre em situações reais de uso da linguagem

(práticas de interação).

• Visa democratizar a vivência de práticas de uso

da leitura e da escrita.

• Atende a diferentes finalidades, por isso é

preciso garantir:

⇒ Situações de interação pelas quais o sujeito

busca causar efeito sobre o outro;

⇒ Situações voltadas para a construção e

sistematização do conhecimento;

⇒ Situações voltadas para a expressão de si

mesmo;

Situações que permitam automonitoramento

das ações.

• Permite ao sujeito reconstruir a invenção social

que é a escrita.

• Corresponde ao PROCESSO pelo qual se adquire

uma TECNOLOGIA: a escrita alfabética e as habilidades para ler e para escrever.

• Envolve conhecimentos e destrezas variados.

• Requer memorização das convenções existentes

entre letras/sons.

• Promove a comparação entre palavras e

significados.

• Exige conhecimento do funcionamento do

alfabeto.

• Requer domínio do traçado das letras.

• Exige aprender o uso de instrumentos específicos:

⇒ Lápis, canetas, etc.

⇒ Papéis, cadernos, etc.

⇒ Outros materiais que os substituam, incluindo

computador.

Tal distinção aponta que mais do que alfabetizar é necessário que o professor organize suas práticas pedagógicas de forma a garantir o desenvolvimento do letramento dos alunos e não apenas o domínio de uma técnica de leitura e escrita.

Como vemos, o neologismo letramento, embora proveniente de literacy43, pode ser tomado em diferentes perspectivas, entre as quais destacaremos cinco abordagens:

1. Perspectiva individualista-restritiva – diz respeito à aquisição da leitura e da escrita, sendo quase sinônimo de alfabetização, por isso está relacionado ao processo de escolarização;

2. Perspectiva tecnológica – diz respeito aos usos da leitura e da escrita, o que remete aos processos civilizatórios e ao desenvolvimento tecnológico das sociedades;

3. Perspectiva cognitivista – diz respeito ao aprendizado obtido a partir das atividades mentais, o que pressupõe conhecimentos específicos e apropriados ao desenvolvimento de habilidades por cada indivíduo;

4. Perspectiva social – diz respeito ao conjunto de práticas sociais, culturais, plurais, formais ou cotidianas, em que os indivíduos se envolvem de diferentes formas e precisam fazer uso de habilidades e conhecimentos para responder às demandas do contexto social;

5. Perspectiva socioantropológica – diz respeito ao estado ou condição de quem não sabe ler o mundo e expressar-se nele, mas exerce as práticas sociais “linguageiras” que interferem significativamente na construção dos bens culturais e simbólicos fabricados na sociedade.

Essa última perspectiva nos possibilita propor que a evolução do termo letramento, voltado para o desenvolvimento dos alunos, está diretamente relacionado a práticas pedagógicas realizadas em sala de aula, o que, portanto, remete-nos ao letramento do professor e as interfaces que estabelece com o letramento dos alunos.

Tomar o professor como agente de letramento significa associá-lo a uma nova identidade profissional que exige reposicionamentos sociais, contínua qualificação das

competências de leitura e escrita e investimento em práticas culturais diversificadas. Ao recuperar a função de mediador semiótico das aprendizagens dos alunos, o professor necessita engajar-se em ações que favoreçam o avanço dos sujeitos em formação para complexos níveis de apropriação de conhecimentos.

Como agente social que trabalha com sujeitos histórica e socialmente constituídos, terá que articular os interesses partilhados pelos membros de um grupo, visando organizá-los para uma ação conjunta, que pelo discurso realize novos movimentos sociais tanto coletiva quanto individualmente.

Ao mobilizar os recursos do grupo e ao promover estrategicamente a participação de todos, segundo as suas capacidades, em prol dos objetivos coletivos, o agente de letramento ajuda, como ator social que é, a criar contextos para que outros atores que se engajarão em atividades relevantes para o grupo venham a se constituir (KLEIMAN, 2006, p. 422).

A continuidade dos estudos ao longo dos anos possibilitou vincular os estudos sobre letramento ao desenvolvimento de tecnologia digitais de leitura e escrita, chegando a propor reflexões acerca das práticas de linguagem que venham a favorecer o letramento na cibercultura.

Em uma perspectiva socioantropológica, como já apontamos, as práticas sociais que acontecem dentro e fora da sala afetam alunos e professores de diferentes formas, mas são interdependentes. Como a constituição dos sujeitos se dá a partir das relações estabelecidas com os bens culturais e simbólicos fabricados na sociedade, as práticas pedagógicas constituem tanto o sujeito-aluno quanto o sujeito-professor.

As posições assumidas pelos sujeitos por meio da linguagem estão associadas ao momento sócio-histórico em que se situam e são determinadas pelas relações de poder, que estabelecem o que pode ser dito e quem está autorizado a dizer. Ao realizar escolhas linguístico-discursivas, os sujeitos mobilizam conceitos, selecionam pontos de vista, articulam

diferentes conhecimentos e, principalmente, constroem efeitos de sentido, que indicam os graus de letramento.

Os letramentos, dessa maneira, podem ser tomados como lugares de negociação e de transformação, que estão associadas a identidades culturais particulares. Assim sendo, se os professores realizam atividades limitadas pelo número, pela qualidade das fontes de pesquisa e pela análise das situações educacionais, como as que se encontram em livros didáticos, restringem as possibilidades de intervenção no processo de formação dos alunos, de construção de conhecimentos, de significação dos acontecimentos, pois agem de acordo com uma formação discursiva que apenas reproduz os conteúdos pedagógicos institucionalizados.

Para que as subjetividades dos alunos sejam provenientes de processos dinâmicos, renovados, alternativos de compreensão da realidade e de participação na sociedade, é fundamental que os professores, entre outras ações, diversifiquem as propostas de compreensão e produção de textos, visando provocar dispersão e rarefação de sentidos.

Capítulo III

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS SELECIONADOS PARA O TRABALHO

A consciência surge como a qualidade de perceber ordem nas coisas.

Stephen L. Collins