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No documento LER PART I L H A R C O P I A R P E N S A R (páginas 122-128)

Alberto do Amaral junior

O

ensino do direito internacional no Brasil é tecnicamente defei- tuoso, metodologicamente confuso e historicamente ultrapas- sado. Refiro-me, como não poderia deixar de ser, à tendência que prevalece nas faculdades de direito e não às saudáveis iniciativas reno- vadoras promovidas pelos jovens professores, em diferentes partes do país, e pelos que demonstram aguda consciência dos vícios que ainda hoje persistem. Algumas características do ensino do direito internacional são semelhantes às do ensino jurídico como um todo, enquanto outras apresentam as especificidades próprias àquela área do conhecimento. Encontram-se, no primeiro grupo, as aulas ministradas no velho estilo coim- brão, baseadas exclusivamente no direito positivo e na transmissão de cate- gorias dogmáticas, que realçam a figura do professor-conferencista e eliminam a participação dos alunos. Preleções monologais veiculam um direito supostamente neutro, coerente e completo, cuja racionalidade não se contamina pelas paixões inerentes à política.

O jurista intenta despolitizar os conflitos transformando-os em questões técnicas passíveis de decisão por critérios presumivelmente lógicos. Veri- fica-se, desse modo, verdadeiro cisma entre a realidade e as normas insti- tuídas para regulá-la. O jurista embrenha-se no emaranhado das regras e só recorre aos fatos para justificar ou corroborar as normas já concebidas. A dinâmica do sistema normativo, estruturada em regras de competência, pretende absorver a mudança social ao filtrar preferências valorativas em normas vinculantes, pela interferência do poder obscurecido e domesticado pelo direito. A separação radical entre o direito e a política converte-se em um dos pilares do conhecimento jurídico tradicional. Prevaleceu, em nossos cursos jurídicos, desde a Independência, a exótica combinação entre o posi- tivismo legalista e um jus naturalismo cristalizado nas instituições.

Nesse contexto, o ensino do direito internacional é parte constitutiva da realidade que formou e informou os operadores do direito em quase dois séculos de história. Se há indissociável conexão entre o ensino jurí- dico e o ensino do direito internacional, existem, contudo, particulari- dades que o singularizam. O direito internacional ocupou, tradicionalmente, posição secundária na grade curricular das faculdades de direito. Era visto como “perfumaria jurídica”, com escassa utilidade prática para quem pretendia exercer, cotidianamente, as diversas profissões jurídicas. Despertava interesse apenas em uma pequena minoria composta por aque- les que desejavam dedicar-se aos estudos diplomáticos ou que nele viam um objeto de interesse acadêmico. A quase totalidade dos estudantes tinha pouca curiosidade pelo direito internacional, que não passava de mero requisito a ser cumprido para a conclusão do curso universitário. Essa situação reflete, diretamente, a posição do Brasil no cenário inter- nacional. País de dimensões continentais com a necessidade de integrar as várias regiões, o governo voltava-se aos problemas internos exceto quando, em circunstâncias excepcionais, a solução das disputas frontei- riças exigiu a ação governamental.

A nossa posição no mundo estava, quase sempre, ausente no debate político doméstico. De costas para os nossos vizinhos, os assuntos inter- nacionais chamavam a atenção de uma pequena elite formada consoante os padrões culturais europeus. O advento da globalização pouco concor- reu para a significativa mudança da situação atual. Ainda não se perce- beu que, em consequência da diluição das fronteiras rígidas entre o interno e o externo, o direito internacional permeia todos os ramos do conhecimento jurídico. Do direito constitucional ao direito administra- tivo, do direito civil ao direito penal, do direito comercial ao direito do trabalho, não é mais possível estudar as instituições jurídicas sem levar em conta a celebração de tratados que internacionalizaram temas domés- ticos e as tentativas que constitucionalizaram questões tipicamente inter- nacionais, como demonstra o art. 4° da Constituição Federal.

Três problemas principais estão na origem do ensino do direito inter- nacional no Brasil do limiar do século XXI: a deficiência técnica, a con- fusão metodológica e a incapacidade para responder aos desafios propostos

pelo mundo globalizado. Do ponto de vista técnico, o ensino não propi- cia aos alunos conhecimento adequado do funcionamento das organiza- ções internacionais, dos meios de solução de controvérsias e da interação entre o direito interno e o direito internacional. Falta marcar com a devida clareza os efeitos sobre o país do descumprimento das decisões vinculantes proferidas no âmbito das organizações internacionais. As aulas transcorrem, em geral, em clima monótono, conduzidas por um pro- fessor que se ocupa em repetir manuais, cuja leitura bem poderia dispensar as exposições. Não se estimula o intercâmbio de opiniões sobre pontos controvertidos que dividem os Estados e os indivíduos em campos anta- gônicos. Os seminários, observados com certo descaso pelos alunos e pro- fessores, têm lugar em salas numerosas, onde a discussão raramente se verifica. Os alunos são levados a memorizar textos doutrinários ou deci- sões jurisprudenciais sem o indispensável uso público da razão por inter- médio da crítica. O incentivo à pesquisa é esporádico e, quando se manifesta, não se dirige a aspectos que promovam a ampliação do conhecimento.

Envolvidos por uma atmosfera em nada atraente e incapazes de rela- cionar os conhecimentos aprendidos com as demais disciplinas, os alu- nos não se sentem motivados ao estudo do direito internacional. No Brasil, a disciplina é ensinada, ainda, segundo uma metodologia confusa, que não capta, de modo epistemologicamente articulado, as especifici- dades que a particularizam e as relações que mantém com as disciplinas afins. Predomina um método que mistura um culturalismo ambíguo à descrição dogmática das regras e instituições, sem a necessária interlo- cução com outros campos do saber. O culturalismo aparece no início do curso pelas referências genéricas aos fatores históricos explicando o nas- cimento e a expansão do direito internacional, bem como, ocasional- mente, durante a análise dogmática para justificar, com grande dose de superficialidade, os vários aspectos da disciplina ministrada. Não se pro- cura formar no aluno o hábito de buscar as causas políticas, sociais e eco- nômicas que ditam a criação das regras jurídicas internacionais e sobre como essas influenciam o comportamento dos seus destinatários. Tudo se passa como se não houvesse uma conexão íntima entre o mundo dos fatos e o mundo das normas.

O forte apelo à dogmática de inspiração europeia, produzida há algu- mas décadas, caracteriza a exposição do professor. Esse fato encerra, na verdade, um paradoxo: o direito internacional é, provavelmente, entre todos os ramos do direito, o que mais sofre a influência da política. Aceita- -se, sub-repticiamente, a tese de que o direito molda, de forma unilateral, a conduta dos Estados, das organizações internacionais e dos indivíduos. Não há, ao mesmo tempo, um debate aprofundado a respeito da natureza do direito internacional e das relações que mantém com a economia, a his- tória e a teoria das relações internacionais. Os professores não costumam focalizar as teorias recentes que, no plano jurídico, abordam a fragmen- tação do direito internacional contemporâneo. O sincretismo metodoló- gico exprime a ausência de um método abrangente e formulado a partir de bases epistemológicas seguras.

O ensino do direito internacional é, ainda, historicamente ultrapassado ao se revelar inadequado para enfrentar as transformações oriundas do processo de globalização. Surtos periódicos de modernização social per- correm a História desde os primeiros agrupamentos humanos. A compres- são do espaço e do tempo, fruto da revolução nas comunicações, distingue o momento presente de todas as épocas históricas anteriores. A globali- zação envolve o alongamento das relações sociais, não mais confinadas ao conjunto das interações humanas no interior de uma única sociedade. Na dialética entre o universal e o particular, eventos distantes modelam acontecimentos locais e são por eles modelados. A desigualdade de poder, a proliferação dos atores internacionais e o multiculturalismo abalaram a concepção clássica do ensino do direito internacional, fundada na igualdade soberana dos Estados. Concomitantemente, o conflito e a coo- peração entre os Estados e as organizações não são objeto de atenção e estudo. O mesmo ocorre com as novas configurações de poder que reú- nem os governos e associações privadas, como sucede na Organização Mundial do Comércio. O ensino do direito internacional não se cons- cientizou de que a eficácia das normas jurídicas apoia-se em ligaduras culturais destruídas com o fim do colonialismo europeu, o aumento do número de Estados, o fortalecimento das organizações não governamen- tais e o aparecimento do indivíduo na cena internacional, que provocaram

a erosão do direito internacional clássico. Em meio à multiplicidade de cul- turas, é urgente estabelecer diálogos interculturais, requisito indispensável para a efetividade do direito existente e das futuras normas que venham a ser criadas.

Não sigo, em minha atividade docente, pelas razões expostas, o padrão utilizado no ensino do direito internacional. Adoto, ao contrário, um modelo socrático, que privilegia o permanente diálogo entre o professor e os estu- dantes. Costumo dividir as minhas aulas em duas partes: na primeira parte discuto, conforme um modelo de perguntas e respostas, leituras previa- mente recomendadas. Desejo, ao sabor de uma reflexão problemática, incentivar o intercâmbio com outras disciplinas da grade curricular e com a história, a economia e a teoria das relações internacionais. Indico que um mesmo problema ou situação fática podem ser vistos sob dife- rentes perspectivas e que a regulação jurídica internacional é apenas uma das maneiras possíveis.

A segunda parte da aula gira em torno da discussão crítica da jurispru- dência internacional. Considero indispensável não apenas o conhecimento das decisões proferidas pelos tribunais e outros meios de solução de con- trovérsias, mas a constatação de que existem múltiplas alternativas para resolver o mesmo conflito. É preciso examinar as consequências advindas da escolha de outras formas de solucionar uma disputa. Procuro também, no decorrer das aulas, valorizar o papel do direito para elaborar e reelaborar as instituições que garantam a governança do mundo globalizado. Realço, sobretudo, a função do direito para delinear a nova arquitetura global.

O ensino do direito internacional no Brasil deve desenvolver nos alu- nos as seguintes habilidades:

1. A compreensão de que as normas internacionais resultam de processos de negociação e barganha que exprimem a política dos Estados. Apesar do avanço do Estado de direito no plano internacional, a política está também presente na aplicação das regras jurídicas internacionais, fato demonstrado pela dificuldade de execução das sentenças da Corte Inter- nacional de Justiça e pelas resistências dos governos dos países desen- volvidos em cumprir as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias

da OMC. Fatores econômicos, sociais e culturais interferem, podero- samente, na eficácia do direito internacional. Sérias dissonâncias cog- nitivas, por exemplo, constituem grave obstáculo para a obediência às normas internacionais.

2. A percepção do abismo entre o excesso de poder e o excesso de impo- tência entre os países e a necessidade de pensar molduras jurídicas que viabilizem a democracia cosmopolita.

3. A consciência da superlatividade dos riscos representados pelos fan- tasmas da destruição nuclear e da hecatombe ambiental.

4. A aptidão para relacionar conhecimentos diversos com o propósito de estimular a criatividade e não apenas a mera reprodução do conheci- mento. A globalização requer um novo tipo de internacionalista que demonstre domínio técnico, capacidade crítica, direção axiológica e possibilidade de formular instrumentos jurídicos novos numa época em que se acentua a perda de legitimidade das instituições concebidas a par- tir da ótica westfaliana.

e A pesquisA em direito internAcionAl

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